quinta-feira, 5 de novembro de 2015

O SILÊNCIO DE AURORA - Conto de Marga Cendón (Uruguaiana, RS)

O SILÊNCIO DE AURORA 

Sentada no peitoril da janela, espiava o movimento da rua. Da cozinha vinha o burburinho de louças, panelas, algumas risadas. E o tempo se preparando para desabar.  Com o coração aos pulos, ela suplicava por um milagre. Como contar que não haveria casamento? Preferia morrer esturricada por um raio. Se o pai fosse vivo, é certo que a confortaria, mas a mãe, capaz de não sobreviver ao desgosto. 

Quando alguém tocava no assunto da festa, era como se metessem o dedo numa ferida aberta: ela tremia e enxugava o suor da testa com as costas da mão. Ninguém percebia seu desespero.

De repente ouviu a mãe gritar:

–Justino, Leozinho! Está na hora do trem! Vão lá pra estação ajudar seu Eurico com as malas.  

Viu as cabeças dos dois irmãos passarem rente ao muro em direção à estação e teve vontade de dizer que não fossem. Eurico não vinha.

Sua desgraça começara logo pela manhã ao buscar o vestido de noiva na costureira...

–Aurora, teu vestido ficou uma beleza, mas preciso te contar uma coisa. 

–Fale, dona Marietinha.

–Teu noivo, o Eurico, vai se casar amanhã. Com outra.

–Que é isso! De onde a senhora tirou uma coisa dessas?

–Olha, minha filha, Deus sabe que eu não queria te dar esta notícia, mas é a pura verdade. E já tem tempo que eu sei, me faltou foi coragem.  

–Não é possível! Amanhã é o meu casamento. Ele chega hoje no trem das seis.

–É uma professora de Cruz Alta, menina! Gente de dinheiro! Foi a Donga que fez o vestido. E ficou tão horrorizada que roubou este retrato pra te mostrar. Lê o que está escrito e vê se reconhece a letra.


Aurora viu Eurico no terno de linho, chapéu de feltro, o jeitão boa pinta. E no verso, a dedicatória: “Para minha noiva Beloní, em sinal do meu apreço”. Não tinha dúvida... a letra era dele.

Voltou pra casa aos frangalhos e desde então estava ali, muda, sem forças sequer para pendurar o vestido.

A parentada de São Vicente chegando de bando no Cacequi para ajudar nos preparativos: doces de calda, batatas cozidas, galinhas depenadas; guardanapos branquinhos cobrindo tachos de pães e o bolo decorado no capricho. A casa em reboliço, as tias ainda envolvidas nos bordados. A faceirice da mãe em casar a filha mais velha com um homem bom...

E ela, Aurora, com uma faca cravada nas costas pela traição de Eurico e sem dizer uma palavra.

Quando ouviu o apito do trem, suspendeu a respiração. Fechou os olhos. E com os dedos entrelaçados, começou a rezar baixinho. A voz de dona Marietinha ecoando no pensamento atrapalhava a concentração: “Teu noivo, o Eurico, vai se casar amanhã. Com outra”. 

Ficou assim até escutar passos na calçada. Abriu os olhos: duas malas passavam rentes ao muro, sustentadas pelas cabeças de Leozinho e Justino. E mais atrás, metido no terno de linho, Eurico tirava o chapéu para cumprimentar a vizinhança. 

Ela pulou a janela, correu para ele que a esperou de braços abertos.

O que se ouviu a seguir foi o som de duas bofetadas e o choro convulsivo de Aurora. 

–Meu bem, se acalme! O que foi que eu fiz de errado?– dizia Eurico alisando a vermelhidão das bochechas.

“Ataque de nervos do casamento”, cochichavam os mais chegados. “Dê uma água com açúcar”. Nada adiantava.

Horas e horas mais tarde, já bem calma, ela abraçou o noivo. E no silêncio daquele abraço enterrou Beloní.


E nos cinquenta anos que se seguiram, Eurico jamais conseguiu arrancar de Aurora a razão do tal ataque. Nem o motivo das bofetadas.          

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