O SILÊNCIO DE
AURORA
Sentada no
peitoril da janela, espiava o movimento da rua. Da cozinha vinha o burburinho
de louças, panelas, algumas risadas. E o tempo se preparando para desabar. Com o coração aos pulos, ela suplicava por um
milagre. Como contar que não haveria casamento? Preferia morrer esturricada por
um raio. Se o pai fosse vivo, é certo que a confortaria, mas a mãe, capaz de
não sobreviver ao desgosto.
Quando alguém tocava
no assunto da festa, era como se metessem o dedo numa ferida aberta: ela tremia
e enxugava o suor da testa com as costas da mão. Ninguém percebia seu
desespero.
De repente ouviu
a mãe gritar:
–Justino,
Leozinho! Está na hora do trem! Vão lá pra estação ajudar seu Eurico com as
malas.
Viu as cabeças
dos dois irmãos passarem rente ao muro em direção à estação e teve vontade de
dizer que não fossem. Eurico não vinha.
Sua desgraça
começara logo pela manhã ao buscar o vestido de noiva na costureira...
–Aurora, teu
vestido ficou uma beleza, mas preciso te contar uma coisa.
–Fale, dona
Marietinha.
–Teu noivo, o
Eurico, vai se casar amanhã. Com outra.
–Que é isso! De
onde a senhora tirou uma coisa dessas?
–Olha, minha
filha, Deus sabe que eu não queria te dar esta notícia, mas é a pura verdade. E
já tem tempo que eu sei, me faltou foi coragem.
–Não é possível!
Amanhã é o meu casamento. Ele chega hoje no trem das seis.
–É uma professora
de Cruz Alta, menina! Gente de dinheiro! Foi a Donga que fez o vestido. E ficou
tão horrorizada que roubou este retrato pra te mostrar. Lê o que está escrito e
vê se reconhece a letra.
Aurora viu
Eurico no terno de linho, chapéu de feltro, o jeitão boa pinta. E no verso, a
dedicatória: “Para minha noiva Beloní, em sinal do meu apreço”. Não tinha
dúvida... a letra era dele.
Voltou pra casa
aos frangalhos e desde então estava ali, muda, sem forças sequer para pendurar
o vestido.
A parentada de
São Vicente chegando de bando no Cacequi para ajudar nos preparativos: doces de
calda, batatas cozidas, galinhas depenadas; guardanapos branquinhos cobrindo
tachos de pães e o bolo decorado no capricho. A casa em reboliço, as tias ainda
envolvidas nos bordados. A faceirice da mãe em casar a filha mais velha com um
homem bom...
E ela, Aurora,
com uma faca cravada nas costas pela traição de Eurico e sem dizer uma palavra.
Quando ouviu o
apito do trem, suspendeu a respiração. Fechou os olhos. E com os dedos
entrelaçados, começou a rezar baixinho. A voz de dona Marietinha ecoando no
pensamento atrapalhava a concentração: “Teu noivo, o Eurico, vai se casar amanhã.
Com outra”.
Ficou assim até
escutar passos na calçada. Abriu os olhos: duas malas passavam rentes ao muro,
sustentadas pelas cabeças de Leozinho e Justino. E mais atrás, metido no terno
de linho, Eurico tirava o chapéu para cumprimentar a vizinhança.
Ela pulou a
janela, correu para ele que a esperou de braços abertos.
O que se ouviu a
seguir foi o som de duas bofetadas e o choro convulsivo de Aurora.
–Meu bem, se
acalme! O que foi que eu fiz de errado?– dizia Eurico alisando a vermelhidão das
bochechas.
“Ataque de
nervos do casamento”, cochichavam os mais chegados. “Dê uma água com açúcar”. Nada
adiantava.
Horas e horas
mais tarde, já bem calma, ela abraçou o noivo. E no silêncio daquele abraço enterrou
Beloní.
E nos cinquenta
anos que se seguiram, Eurico jamais conseguiu arrancar de Aurora a razão do tal
ataque. Nem o motivo das bofetadas.
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