sábado, 21 de novembro de 2015

O VAZIO AO LADO - Conto de Marga Cendón (Uruguaiana, RS)

O VAZIO AO LADO

Mortas as palavras, garganta seca, restava esperar que a escuridão os conduzisse ao sono. Era quase verão e a desesperança tinha atravessado três estações para chegar ao limite do cansaço. E sendo a realidade das faces comprometedora e demasiado fria, deram-se as costas para o equilíbrio da estranha balança que os sustentava. Já não eram senão o vulto opaco que o tempo tatuara na memória; um copo pela boca à espera da última gota. E o silêncio, a pesar sobre os pesares.


Mas naquela noite, instante suspenso de uma tormenta, algo incomum atravessou os anteparos. Desvelada, a dormência se fez movimento e em busca de trégua, navegou os lençóis. O coração disparou, faltou o ar, sumiu o chão. E como náufragos, boiaram sob o céu constelado em busca de um único gesto que os salvasse. As mãos, até então recolhidas, deslizaram. Pétala de delicada textura, a pele cedeu aos afagos. E o vazio ao lado se dissipou.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

LEITURA DE UM AMOR - Conto de Marcelo Meira (Rio de Janeiro, RJ)

LEITURA DE UM AMOR


Certa vez, eram tempos de guerra e eu tinha uma namorada em San Miguel, mas estávamos em Saigon. Um dia, daquela forma clássica, ela revelou outros conceitos amorosos, pois "o mundo havia mudado e as coisas não eram mais como antigamente”, ou ela não era ou nunca foi. Definitivamente, apesar desse mundo infinito, não... não quanto a este tema, pois o amor, em sua bilateralidade, não possui época nem tempo. Não podia me tornar insubmisso à vida que vivi. Muitas vezes nosso olhar se forma a partir de leituras poéticas, conversas filosofadas na adolescência ou, simplesmente, por um filme romântico que marcou nossa existência. Não... não me peça a vida levando para longe as chaves do meu quartel. É que elas servem tanto para abrir quanto para fechar correspondências de amor.

terça-feira, 17 de novembro de 2015

PARA ONDE VAI O AMOR... - Crônica de Maria Clara Prati (Porto Alegre. RS)

PARA ONDE VAI O AMOR QUE NÃO SE REALIZA?

É muito difícil orientar os filhos sobre relações amorosas. Com o advento da independência financeira da mulher, cada vez menos papai e mamãe sugerem que a filha ou filho termine o namoro com aquele moço ou moça porque não é do mesmo nível social, não vai ter condições de dar o conforto com o qual ela está acostumada, ou, no caso do rapaz, a esposa não vai saber se comportar diante dos amigos dele.

Graças a Deus, porque ainda existem pais que fazem isso, por falta de capacidade de observação já que nas suas próprias famílias devem existir tios e tias que casaram com quem os papais e mamãe faziam gosto e o escolhido se revelou um incapaz para construir uma vida produtiva, enquanto que a filha sofreu muito ao desistir de um namorado de juventude porque não tinha eira nem beira e hoje vê uma amiga com ele, um sucesso na profissão em que pouco a pouco conseguiu se firmar, os filhos tendo acesso às melhores escolas, os melhores cursos, viagens e, o que é mais importante, dando valor para tudo porque sabem que pai e mãe lutaram para conseguir proporcionar aquela vida para eles.

Há poucos dias eu e uma amiga conversávamos sobre a neta de uma conhecida nossa que foi proibida de namorar um moço porque ele não pertencia a uma das famílias mais prestigiadas de Erechim ou Passo Fundo, não recordo a cidade. O jovem era pianista de um conjunto local, não conseguiu ir para a

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

O PIANO - Conto de Augusto Cruz (Salvador, BA)

O PIANO

Em Aracaju, na Rua de Estância, quando o ponteiro maior do relógio indica alguns minutos restantes para as 17h, ao invés de as janelas das casas cinquentenárias se fecharem para evitar os mosquitos, são abertas e umas carinhas, de gente mais velha, timidamente aparecem, seguidas de um cruzar de braços e um olhar fixo na janela azul da casa de número 31, bem no meio da rua.

Quase que pontualmente às 17h a janela azul se abre e os rostos ansiosos dos vizinhos dão lugar a faces relaxadas.

Surgem os primeiros acordes de uma valsa brasileira e um “ahhhhh” em algum lugar da rua é abafado pelo som do piano que vocifera sua alegria da janela recém-aberta.

O mendigo Paulão, que habitualmente passa pela rua para receber uma sopa de D. Nazinha, rodopia até a casa dela e abre o sorriso de poucos dentes, muito menos por causa da sopa aguada e muito mais para a música que o arrepia.

D. Irá, D. Nair e D. Marizete, cada uma em sua janela, enxergam os espectros de seus filhos, que infelizmente já enterraram, bailando elegantes no meio da rua, devidamente acompanhados de novas noras e a cada rodada um aceno para a mãe orgulhosa.

Seu Hamilton, um copo de cerveja em uma mão e uma flor na outra, cruza a via pública rindo, assobiando, esquecendo que já morreu há anos.

E os exibidos da casa 27, João e Zuleika, 52 anos de casados e ainda “vivinhos da silva” e

MAMÃE, MINHA BOA CONSELHEIRA - Conto de Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)

MAMÃE, MINHA BOA CONSELHEIRA

Porto Alegre, 12 de junho de 2.020

Amado filho Cristiano:

Mamãe ficou muito triste com tua última mensagem, por isso te escreve ao invés de simplesmente pegar o telefone.
Contas que aos trinta e oito anos cansaste de procurar um amor que te complete, as mulheres não querem compromisso, usam e abusam dos teus sentimentos. Sinto imensamente que assim seja, querido filho, mas devo dizer-te que os homens, através dos séculos, cavaram suas próprias sepulturas. Hás de perguntar-me por quê. Qual a tua culpa em relação ao comportamento das mulheres?
Tu, talvez não a tenhas, mas deixa a mamãe contar o que passou durante a tua infância e juventude. Talvez a história de vida da mamãe, que não é diferente da história de suas amigas, te ajude a meditar sobre esse tema tão difícil que é o das relações amorosas.
Chegou um tempo em que tua mãe cansou de recomeçar infinitas vezes novas histórias de amor com príncipes encantados e passou a escolher pessoas que aparentemente não oferecessem perigo.
Tua mãe era jovem e bela quando conheceu Amaury. Ele era um militante político. Fisicamente ele lembrava uma figura de revista argentina que divertia mamãe na infância: Doña Tremebunda. O homem era de uma gordura descomunal e caminhava balançando a parte traseira como a personagem da charge. Pois não é, meu filho, que ele se considerava o centro dos interesses femininos e relegava esta que te escreve a um plano secundário, dedicando-lhe escassa atenção?
Quando o político deixou mamãe, ela sofreu muito, tendo que procurar auxílio de um psiquiatra para se refazer emocionalmente.
Refeita, tua mãe conheceu um homúnculo de cabelos grisalhos e semi-longos. Mamãe saía com ele fazendo a maior ginástica para não ser vista por conhecidos

NEGO CUNDUNGA - Conto de Jorge Silveira Wernz (Alegrete, RS)

NEGO CUNDUNGA (Campereada 1998)
Rincão de são Miguel e seus personagens

Tez completamente negra, esguio, talvez 1,80m de altura (não sei se por eu ter apenas 9 anos o via tão alto), queixo excessivamente proeminente, dentes alvos, apesar do inseparável palheiro, e um constante sorriso aberto que permitia, mesmo a quem não o quisesse, ver o róseo de suas gengivas, céu da boca e língua. Esse era o "Nego Cundunga", o "Tio Cundunga",alegria do Rincão.
Os 74 Km de estrada do local, por apresentarem horrível trafegabilidade, deixavam apenas o "tilburi" como meio de transporte aos fazendeiros ,nos idos de 1950.Já o transporte de carga era feito pelos carroções do "Nego Cundunga". Mantimentos, sementes, rações e toda a sorte de necessidades chegavam até o fundo do Rincão nos três carroções puxados por quatro cavalos cada um, guiados pela habilidade do "Nego" e seus filhos.
Quando chegava de viagem na cidade, trazia e entregava aos fazendeiros as listas de necessidades, que tinham uma semana ( seu descanso no povo), para providenciar a entrega das mesmas para seu retorno ao Rincão.
Segundo ele mesmo contava, saia de Alegrete por volta da meia-noite, fazendo seu primeiro pouso e troca de cavalos no seu compadre "Tolentino", bem na famosa porteira preta. Dali seus carroções entravam ruidosamente até uma certa altura do Rincão da Palma, o que lhe permitia, falhar um pouso e retornar ao primeiro para seguir viagem, que não era curta.
Uma das paradas obrigatórias dos carroções era na estância São Jorge, de propriedade de meu avô Joaquim Antonio da Silveira de onde não se enxergava a estrada, o que não impedia que os cães de longe pressentissem e acusassem

O VOO DO MARAGATO - Conto de Athos Ronaldo Miralha da Cunha (Santa Maria, RS)

O VOO DO MARAGATO

Agripino Saraiva, peão de estância aposentado e maragato flor de guasca, acalentava o sonho de viajar de avião. Nem que fosse uma vez, não queria morrer sem embarcar numa “geringonça daquelas” – como se referia à aeronave. Não tinha medo, pois quem montou em baguais e peleou no ferro branco não poderia ter medo das alturas.

Como todo índio grosso, moldado a facão nas lides do campo, não entendia dessas tecnologias de compras pela internet. Pensava que era só chegar ao aeroporto e comprar uma passagem, como fazia quando queria visitar umas primas em São Borja. Ia até a rodoviária e no guichê adquiria o bilhete. Mas avião era diferente, tinha que ser pela internet.

A solução foi recorrer ao Agripininho – o filho, embora com 28 aninhos, era chamado de Agripininho – que conhecia bem essas modernidades e vivia mexendo num aparelhinho preto cheio de letrinhas. Agripininho levou um susto quando o pai falou que queria viajar para o Rio de Janeiro. Depois dos argumentos que ele não conhecia ninguém na Cidade Maravilhosa e a violência campeava frouxa, bala perdida e sequestros, o velho Agripino mudou de ideia. Iria a Brasília. Novamente o filho argumentou que ele não tinha amigos e nem

domingo, 15 de novembro de 2015

PELAS RUAS - Crônica de Marga Cendón (Uruguaiana, RS)

PELAS RUAS

Estou só e não estou. Ando pela alameda que margeia o rio e a paisagem me retém. Por alguns instantes, sou parte das pontes e das paredes dos velhos edifícios. Numa esquina, um homem magro de olhos profundos traz uma canção do passado – “La bohème, la bohème Ça voulait dire on est heureux” - Sigo cantando. A cidade é imensa e há muito a percorrer. O museu, a catedral, a torre. Encho os olhos nas elegantes vitrines da avenida mais famosa do mundo. O Arco marca o fim do caminho e tomo outra via. A rua vai se estreitando e das sacadas, pendem gerânios coloridos. É primavera e o vento anuncia a proximidade da noite. “Bonjour! Place de Clichy, s`il vous plaît”, digo gastando meu repertório enquanto ajeito o cinto de segurança. As luzes começam seu espetáculo, tudo se enche de brilho. Estou só e não estou... A bordo de um táxi, minha mão se aquece entre as mãos do meu amor.

Paris, 24 de maio de 2015


(publicada no Jornal Leôncio do centro de Letras de Paranaguá, PR)