sábado, 3 de outubro de 2015

MISSIONEIRO FAKE - Crônica de Athos Ronaldo Miralha da Cunha (Santa Maria, RS)

MISSIONEIRO FAKE

Ao chegar ao hotel, em frente ao mar de Copacabana, fui muito bem recebido pelos atendentes. Diga-se, bem demais.
Como todo bom carioca, pessoas educadíssimas no trato com os turistas. Apressavam-se em abrir as portas do elevador, ofereciam cafezinho, cumprimentavam com esmero, muita atenção e delicadeza. Mas todo esse tratamento exacerbado tinha uma explicação.
Lá pelo terceiro ou quarto dia, um dos atendentes chegou pedindo desculpas e perguntou se eu era pastor. Por alguns instantes fiquei meio apreensivo, pois uma estampa de pastor não é o perfil que imaginaria para mim. Mas em poucos segundos deduzi o motivo da pergunta. O rapaz olhava constantemente para um botton na lapela do blazer.
Uso regularmente a Cruz de Caravaca, Cruz de Lorena ou, como conhecemos aqui por essas bandas, Cruz Missioneira. Aquela com dois braços. Comprei esse botton quando visitei as ruínas de São Miguel das Missões. Um lugar mítico, muita energia vinda do passado. Um lugar que nos coloca em reflexão. Passeio fundamental para quem é oriundo das Missões ou para qualquer brasileiro que se interessa pela história.
Na lapela do meu casaco eu faço um rodizio de bottons: Cruz de Caravaca, taça do mundial, mascote do Inter e o pin de prata da Caixa para eventos corporativos. Devo confessar que minha lapela já foi bem mais política, mas hoje não vejo motivos, acho que o desencanto é maior. E na lapela do blazer tem prioridade a Cruz Missioneira.

CIDADELA - Crônica de Carlos Emilio Faraco (São Paulo, SP

CIDADELA

Estranhei quando bateste à porta fora de hora...
Nunca vinhas durante o dia, por medo de encontrar a casa povoada de passados que foram só meus.
Aos poucos tirei os retratos de cima dos móveis, porque os rostos pareciam te fixar - confessaste olhando para o mesmo chão em que procuravas passos antigos.
Embora eu te garantisse que passos não duram tanto tempo, achavas que eles são a assinatura perene de quem perambula à vontade pela casa do outro. E que nunca morrem.
Depois, joguei fora os quadros comprados em Veneza, pois odiavas o fato de meus olhos terem possuído a cidade em outra companhia, apesar de eu ter te garantido  que Veneza é impossuível por quaisquer olhos, sós ou acompanhados.
Ultimamente, as asas da minha respiração nem ousavam grandes voos, para evitar que tu me imaginasses inspirando as impressões digitais deixadas pela casa por outras mãos, o perfume esparzido no ar por outro corpo.  Sem contar que eu já havia tido o cuidado de alisar todos os tecidos, pois bastava uma dobra antiga para imaginares que ela escondia enredos.

Não estranhei quando bateste a porta fora de hora...

A CUIA - Conto de Dôra Borges (Belo Horizonte, MG)

A CUIA

Ao lado da casinha de taipa, a água cristalina escorria na bica feita de bambu cortado ao meio e deslizava para o riacho corrente, formando um lago mais à frente, no descampado da mata cerrada. O sol a pino estilava brilhos cintilantes das grossas gotas d´água que batiam nas pedras e repicavam, formando um sutil arco-íris em sua transparência esverdeada pelos arbustos que ladeavam o corte do barranco úmido. Era prenúncio de primavera e um florido ipê amarelo se despetalava sobre o telhado de palhaça do casebre do caboclo Terêncio, um jovem e forte homem, à procura de um tesouro para ofertar à Maria, sua paixão resguardada.
Sentado ao lado da bica, ele ouve um pássaro cantador que, incessantemente, entoava o seu forte canto de conquista. Era domingo e, no povoado distante, o sino repicava na capela do Bom Senhor, onde por certo as andorinhas alvoroçadeiras se debandavam da torre, assustadas com as badaladas estridentes.
Por aquelas bandas de Minas, o garimpo era a única esperança de que no brilho da cuia, a vida pudesse ter outra sorte. Rêncio, como era chamado pelos irmãos, levanta o chapéu velho de feltro, limpa o suor que lhe escorre pela testa e espia a corredeira chegando ao lago. Aperta os olhos para quebrar a claridade que lhe ofusca as vistas. Na mão direita, segura uma cuia feita de cabaça madura, já meio embolorada pelo tempo, com a qual costumava pegar lambaris no riacho. Envolto em pensamentos descompromissados, beirando a sonhos, olha para o fundo do poço de águas límpidas e vê num ponto reluzente, de brilho forte, resplandecente pelos raios de sol que penetravam água adentro. De sobressalto, misturando esperança com coragem, o caboclo saiu apressado com a sua cuia e mergulhou fundo em busca daquele tesouro errante. Mas no caminho tinha uma pedra... e num choque violento, o ouro se perde nas profundezas do barro sangrento. A cuia leve dançava na correnteza e seguia o seu curso. Naquele instante, o brilho da riqueza foi ofuscado pela dor e desilusão do caboclo sonhador. Terêncio volta à bica, lava a mágoa e novamente assenta naquela pedra a escutar o canto, que agora lhe parece tão triste, do pássaro conquistador.  Por anos a fio, ele continua ali, olhando as águas ribeirinhas à procura da sua cuia...

Na cidade ainda pacata, o sino da igreja do Bom Pastor não toca mais.

O caboclo jaz na mata, sonhando com Maria e esquecendo o ouro das Gerais.

CAFÉ GOSTOSO COM MUITO AMOR - Conto de Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)

CAFÉ GOSTOSO COM MUITO AMOR

Ele defendia as relações abertas, se queixava dos meus ciúmes. Um dia ele foi embora e eu não entendia por quê. No momento em que ele decidiu separar de mim, eu estava muito bêbada e, quando voltei à sobriedade, ele permaneceu irredutível.
Entrei numa depressão que me imobilizava. Fazia terapia três vezes por semana e tomava remédios para amenizar o sofrimento.
Chegou a época de eleições. Como eu tinha participação política, algumas amigas atraíram reuniões para a minha casa e, quando percebi estava envolvida com o comitê de um candidato do interior.
Apareceram pessoas daquela cidade e, entre elas, o presidente da Casa do Estudante. Vinte e um anos, cabelos cacheados, cigarro aceso para se sentir mais à vontade ou mais velho.
A reunião terminou e ele permaneceu, creio que esperando por alguém que telefonaria. Conversamos sobre a terra natal dele que eu chamarei de Nova Alegria. Era uma cidade onde predominava a colonização alemã. Banda na praça festejando o Dia do Motorista, comida farta preparada pela muter, cortinas xadrezes arrematadas por babados. Mas não era uma localidade muito pequena, havia uma universidade, movimento sindical e estudantil, bares e restaurantes sofisticados reunindo pessoas bonitas e vestidas com as roupas da moda.
Vez por outra, eu lembrava que o motivo pelo qual nos reuníamos era um candidato a deputado. Aquele movimento em minha casa, o telefone chamando me traziam pouco a pouco de volta para o mundo vivo. Marcelo era lembrado como aqueles namorados que idealizamos na adolescência, que só trazem paixão e prazer. Eu me entusiasmava cada vez que começavam a distribuir as tarefas do comitê e fazia jogos secretos enquanto aguardava o meu nome no mesmo grupo de trabalho que o dele. Marcelo-Lya, Marcelo-Lya, Marcelo-Lya... os dedos cruzados, o pensamento firme, o coração batendo forte.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

FLORES TARDIAS - Conto de Valéria Surreaux (Uruguaiana, RS)

FLORES TARDIAS

Alice distribuía fotografias emolduradas pela parede da casa. Ela, menina na primeira comunhão; ela, casando bela, com o vestido feito em São Paulo pela estilista de sua mãe; também debutando no Clube Comercial, em bailes de carnaval com as amigas. Ela, em viagens tantas com os filhos nos braços. Alice e seus vestidos impecáveis, sua piteira e os leques vindos da Espanha. Alice, sentada no sofá, não cansava de olhar as fotografias, fumando seu cigarro, um grande cinzeiro inox na sua frente, bermuda vermelha, camiseta de propaganda das tintas Renner. As mãos despidas, os olhos rasos. Quando um dos filhos entrava, apontava para a parede e dizia rindo, "Para eu não esquecer de quem eu fui", como se justificando.

Alice, na sua solidão, às vezes perguntava aos filhos quem compareceria ao seu velório, porque, afinal, não tinha mais amigos. Desde que perdera dinheiro e prestígio, a campainha parou de tocar, o telefone emudeceu e quando tocava, ela dizia direto: "Fala meu filho amado".

Os filhos riam. Maria Isabel pegava na sua mão e dizia "Que preocupação mais sem fundamento, preocupação póstuma", ela ria junto. Joaquim Francisco entrava na brincadeira e dizia que o seu José da farmácia iria. Ela concordava meio reticente, e completava: "talvez o Airton do armazém da esquina também, e o seu Laurindo..." (Que sempre parava para conversar sobre o tempo enquanto ela varria a calçada). Depois dizia: "Com vocês, minha nora, e meu genro talvez mais algum parente vá, não é? E meus vizinhos. Acho que pode chegar a quase dez pessoas." Depois limpava com a barra da camiseta uma lágrima que a traíra.

DOMINIQUE - Conto de Paulo Ras (Paranaguá, PR)

DOMINIQUE

Dominique. Era assim que a gorducha chamada Jandira gostava de ser chamada. Tinha obsessão pela França. Achava elegante e chique. Falava com sotaque francês, mas nunca tinha saído do vilarejo em que nascera. Mudou-se para a capital. Virou prostituta. Dizia que viveu por anos em Paris, trabalhou em várias casas noturnas de Pigalle e teve clientes importantes, todos amantes das carnes avantajadas. Usava decotes menores que os seios. Extravagante. Beirando o bizarro.
Dominique.
Era assim que gostava de ser chamada.
Na primeira noite Dominique causou furor. Os seios fartos, o fogo, a obsessão por sexo. As gargalhadas eram ecos na casa.
- Mon chéri... Merveilleux...
E dá-lhe gemidos.
E na segunda, na terceira, na quarta, no primeiro mês.
- Mon chéri...
Gemia a Dominique.
E o caixa tilintava. Fazia sucesso. Voluptuosa nas camas. Fama instantânea. Todos queriam Dominique, a gorducha francesa. Ela falava do Moulin Rouge, Zahia Dehar e de uma certa Madame Mimi, mulher misteriosa que ela dizia ter sido a mentora nas artes do amor.

MEU AVÔ, MAIS MOÇO QUE EU - Crônica de Tunico Fagundes (Uruguaiana, RS)

MEU AVÔ, MAIS MOÇO QUE EU...!

Caminho na madrugada chuvosa, os relâmpagos clareiam as paredes da sala enquanto mais uma vez, "campereio" lembranças na noite que vai passando.
As fotografias "me olham" da parede enquanto penso no quanto elas se eternizam no instante em que são captadas, a imagem paralisa o tempo e ele não consegue envelhecer o retrato.
Meu avô me olha sorrindo, me dou conta que hoje ele é mais moço que eu, até parece que ele se diverte pensando: "Viu, agora és tu o mais velho "!
Me surpreendo com essa realidade, afinal sempre o achei velho com seus cabelos muito brancos e sua bondade alegre de avô
O espelho mostra em mim rugas, que meu avô não tinha, divulga o tempo que já passei que é um tempo superior, ao tempo que ele viveu.
Fico pensando no que ele estaria pensando na hora do instantâneo, o que estaria vendo? Para onde estaria olhando? De que ou de quem estaria lembrando? O que será que fez, logo depois do retrato? Caminhou ali pelo centro ou foi para o café falar de futebol, sua grande paixão? Será que teria algum compromisso naquela hora? O retrato me olha sorridente enquanto devaneio, imagino, especulo o tempo, mas este, não me responde nada.
Sigo caminhando pela casa e o retrato na parede permanece o mesmo, sereno, sorridente, presente e muito amigo, sinto como se ele me entendesse, me escutasse e acolhesse com tranquilidade minhas perguntas, fica claro que ele entende meus silêncios, minha introspecção, sabe da minha vontade de ter convivido mais com ele, de conversar mais, de dividir mais, acarinhar, dizer o quanto eu o queria e admirava.
Quem sabe agora ele está pensando: "Esse guri envelheceu e está ficando caduco"!

Normal que pense assim afinal, meu avô agora é mais moço que eu!

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

MARIA PEGA 7 - Conto de Dôra Borges (Belo Horizonte, MG)

MARIA PEGA 7 

Esse era o seu nome: Maria pega 7. As crianças a chamavam apenas de “pega 7”, mas nunca sabiam ao certo porque tinha esse nome. Ela morava na Rua João Reis, numa casinha branca simples, com dois cômodos, de chão batido, janelas azuis e telhado enfumaçado pela fuligem do fogão à lenha. Na frente da casa tinha um terreno elevado, que escorria para a rua sem calçamento. Ao lado da porta havia uma roseira de rosas claras, um pé de arruda, uma moita de espada de São Jorge e alecrim, que era para espantar o “maloiado”, como ela mesma dizia. A escada de acesso à sala-dormitório, era cavada no chão duro, com alguns poucos degraus. Um portão e uma cerca de taquaras separavam o misterioso mundo daquela velhinha, com aparência de bruxa dos contos de fadas, das crianças que brincavam e jogam bola na rua. O maior desafio para a garotada era ir buscar a bola no quintal dela, caso o chute fosse mais forte, o que não era raro acontecer.

Maria teria mais de cem anos, nas suas contas, e apenas um dente grande do lado debaixo, com o qual mascava fumo sem parar. Usava o mesmo vestido todos os dias. Um vestido cumprido, que ia quase até a canela, feito de saco de linhagem branca, e já bem encardido, com um bolso enorme na frente, onde ela colocava os pedaços de fumo, uma caixa de fósforo, algumas chaves velhas e mais alguma coisa que precisasse, no decorrer do dia. A casa era muito simples e na sala  ficava uma cama improvisada com troncos e um velho colchão de capim, encapado por tecido riscado de cores fortes, em tons avermelhados e azulados, bastante gasto. O travesseiro estava amarelado e era recheado de painas já bem esfareladas.  Logo acima da cama havia uma prateleira, um baú velho, uma lamparina, um chapéu de palha, dois quadros de fotos antigas, um oval e outro quadrado, com fotos de parentes que já não viviam mais e, curiosamente, uma bandeira  do Divino, com as fitas de papel de seda bem desbotadas. No colo ela sempre trazia um gato meio remelento, o seu maior companheiro dos últimos tempos. Ela mesma cozinhava as suas refeições e vez ou outra fazia uma espécie de bolo. As mães sempre advertiam seus filhos para não comerem nada lá, pois que as suas vistas eram fracas e as vasilhas mal lavadas.

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

DESCARTE - Conto de Nara Accorsi ( Porto Alegre, RS)

DESCARTE

O quarto era pequeno. Muito pequeno. A janela de venezianas azuis estava entreaberta, para que o sol se deitasse sobre os lençóis gastos, porém limpos. O criado mudo, o abajur de miçangas coloridas e a imagem da santa. Tudo era simples, mas arrumado com cuidado. No tapete puído repousavam chinelos delicados de pés pequenos. O armário de duas portas, em pinho, e a penteadeira. No espelho oval, dependurados recortes com fotos de artistas; o terço de contas em madeira e fitinhas do Senhor do Bonfim. Paredes todas nuas, manchadas de mofo junto ao teto, e uma cadeira.

A porta se abre e Dora aparece. Os cabelos ainda estão molhados e a pele, fresca e morena, brilha no vestido leve de algodão estampado. Com passos decididos, entra e vai direto à gaveta da mesinha de cabeceira. Como de costume, consulta a caderneta detendo-se por segundos em busca da página dobrada. Encontra o que procura na letra delicada que mostra o apontamento. Precisa se apressar.

SENTINELA - Conto de Gilka Coimbra (Uruguaiana, RS)

SENTINELA

Ao errar pelas lentas galerias do antigo prédio, um sopro de ar frio lambeu os dedos que guardavam a chave. Acelerou o passo e só o silêncio preenchia o intervalo seco do andar. Na outra mão, a filha menor com quem fizera o mesmo trajeto, toda a semana, no último ano. Naquele dia, por três vezes errou o caminho que pensava saber de cor e, por três vezes, determinada, reiniciava a busca até que avistou o que procurava. Segurou firme a mão da criança. Carregava-a consigo para garantir o retorno e a lucidez cada vez mais escassa.

Aproximara-se da porta, alisou a saia, e girando a chave preparou-se para entrar. Deixou a filha do lado de fora, no corredor, com um livrinho de história nas mãos, e recomendou que não se afastasse. Teve a impressão de que a menina ia chorar. De uns tempos para cá percebia sinais de entendimento no rosto da criança. Desviou daqueles olhos espichados em sua direção e fechou a porta antes que ela pudesse dizer qualquer coisa. A brisa gelada e o cheiro amadeirado, que escapulia pela estreita passagem, anteciparam a presença, acelerando o desejo. Trancando a porta, acendeu a luz.

– Pensei que você não viria. Hoje tenho pouco tempo – disse-lhe o homem recostado na cama.
Com os olhos envenenados de lágrimas, foi em sua direção, desabotoando a blusa.

Do outro lado, como sentinela em lenta espera, a menina transformava-se num grande olho mágico, espiando a vida pelo avesso.

terça-feira, 29 de setembro de 2015

UM JOÃO QUASE NINGUÉM - Conto de Marga Cendón (Uruguaiana, RS)

UM JOÃO QUASE NINGUÉM

Era um pobre diabo a quem a vida, sendo mais salgada que doce, transformara numa espécie de tapera humana. Calado, barba crescida, olhar pregado no vazio. De dia, a lida dissimulava as amarguras e o entretinha enquanto o sol durasse. À tardinha, passo encurtado, preparava o mate, ligava o rádio; esperava a hora da Ave Maria. Depois, resmungando com fantasmas, afogava a saudade num liso de canha. Assim vivia João, um ninguém que o acaso abortara naquelas paragens. Filho, não se sabe de quem. Diziam os mais antigos ser cria enjeitada do patrão, mas ao certo não se afirmava. Quando a mãe morreu deixaram que ficasse. E passado os anos, já homem feito, continuava por lá. Era de confiança, braço direito do dono das terras.
Quase nunca se afastava, mas aos domingos, metido na única roupa de passeio, tomava o rumo da vila com o propósito de encher a cara. Foi numa dessas que conheceu Anita. “Uma belezura” comentava a rapaziada. No inicio, João não encarava, só espiava de rabo de olho. Mas quando bem reparou, nunca mais foi o mesmo.

O PECADO DE BEATRIZ - Conto de Leonardo Cendón Ávila (uruguaiana, RS)

O PECADO DE BEATRIZ

A mão de Beatriz, entre firme e delicada, agarrava com gana o negócio a sua frente. O corpo retesado, a face corada, mal disfarçando a excitação e aquela timidez faceira de ninfeta. Ofegante, ouvia o coração disparar enquanto a respiração pesada fazia abrir e fechar o peito como fole de acordeão e os seios insinuarem-se por baixo da blusa fina. O homem a encarava de cima para baixo com um meio sorriso, divertido e desafiador, cofiando o bigode ralo. Aparentava seguro e altivo como já tivesse visto mil garotas naquela exata posição. Ele em pé, ela sentada sobre os calcanhares, as pernas grossas encolhidas. Arrepiada em toda geografia de seu corpo jovem e bem fornido que habitava os sonhos de puberdade dos colegas da escola. Beatriz segurava e admirava com desejo e surpresa aquilo que lembrava-lhe um gordo salame ou uma banana caturra, embora lhe parecesse muito mais apetitoso.
Hipnotizada, sentia nos dedos gelados de nervosismo o calor daquela coisa roliça e comprida, que dava a impressão de pulsar e crescer ao seu toque. Sabia que já tinha ido longe demais, mas toda relutância era vã diante de seus anseios mais primitivos e a voz sedutora do homem que lhe encorajava, quase sussurrando:

O ALEMÃO - Conto de Marcelo Meira (Rio de Janeiro, RJ)

O ALEMÃO
A realidade era macabra e corria um boato, entre as fortificações, que a derrota seria inexorável e não teriam como voltar. Então, em certos momentos, ele ficava quietinho, com as mãos no capacete e rezava. No entanto, e não poucas vezes, se punha de pé na trincheira de rochas abrindo, submetralhadora ao ombro, cerrada descarga contra os aliados. Em outras ocasiões, descia calmamente até o rio para aplacar a sede, sobraçando a arma e indiferente aos projéteis que lhe zuniam em torno. 

TECEDURA - Conto de Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)

TECEDURA

Nosso quarto situava-se a vinte passos do templo cor de sol poente. Havia música no ar produzida por um móbile gigante elaborado em metal, pela agitação das fitas com toda a espécie de mantras escritos em sânscrito amarradas a postes, pelos rosnados e latidos dos cães e por aqueles pássaros que deixam os ninhos nas horas mais inesperadas e frias buscando outras paragens.
Às três horas e trinta minutos acordei, compreendendo logo que não poderia ficar na cama até o horário em que minhas companheiras levantariam. Caminhei até o banheiro, depois sentei nos degraus do alpendre, enrolada num cobertor. A pequena cidade iluminada estava coberta por nuvens azuis e rosadas, como se sobrevoássemos aquele local.
O frio intenso e a possibilidade do encontro com um cão que estranharia aquele único ser humano acordado àquelas horas me recomendava prudência e eu permanecia a me satisfazer com a paisagem, com os sons e com a ideia de estar presente naquele lugar. Passados alguns minutos, observei que a minha visão estava transfigurada: como se tudo estivesse por trás de uma tela diáfana, raiada por estrias cintilantes. A dez passos, uma árvore coberta de frutas amarelas. Não haveria perigo em caminhar até ela e colher uma tangerina. Descobrira que fruta era aquela, muito fria e orvalhada. Um pássaro bateu asas e deixou seu ninho na tangerineira. Aquele gesto que me proporcionava prazer e fascínio, causava medo e desabrigo para um outro ser. Os mantras tremularam mais adiante e eu me encorajei a me aproximar deles. Nada poderia me prejudicar num lugar tão encantado. Cobri a cabeça e me aproximei dos escritos sagrados. Não importava que eu não soubesse pronunciá-los, desconhecesse os significados. Me acenavam como se tivessem muito o que contar. Desci mais degraus no terreno acidentado e fui reverenciar aquelas faixas coloridas. Minhas orações da infância não bastavam e, no meu desconhecimento da filosofia oriental, segui um rito que brotou de mim.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

MISTER KING - Conto de P Gualberto Tort (Brasília - DF)

MISTER KING

Quando Mister King lutava, ficava cego. Não via o sangue. Sabia apenas que tinha de continuar, feito um trator, e partia para cima do adversário com uma gana de morte. Calçar as luvas de boxe sempre foi um ritual; ele crescia por dentro. As pupilas dilatavam, o peito abria, os músculos ficavam tensos e um ódio estranho surgia ninguém sabe de onde, alimentando um violento desejo de vitória. Só parava quando era impedido pelo juiz e voltava a si apenas quando o técnico invadia o ringue para celebrar com ele o nocaute. Agora segura a vassoura com as mesmas mãos que fizeram Gorila, vinte quilos maior, cair no chão feito um saco de cimento. Fosse naqueles tempos, os capangas do Jorge não falariam com ele daquele jeito.
 Tá escutando, velho? O patrão quer te ver hoje lá no escritório.
 O que ele quer? Já expliquei que meu ordenado atrasou. Pago ele assim que receber.
 Teu ordenado não é problema dele. O dinheiro que tu tá devendo é.
O capanga que falava mais era um nanico. Procurava compensar a baixa estatura com um tom de voz arrogante.
 Olha, fala pro Jorge…
 Que Jorge? Não conheço nenhum Jorge.
Mister King respirou fundo, apertou o cabo de vassoura até sentir os ossos das mãos doerem.
 Fala pro Vampiro que vou dar um jeito. Até segunda eu…
 Não sou teu moleque de recado, velho. Se tu não tem a grana agora, vai ter que te explicar pro patrão no escritório. Oito horas. Ouviu?
 Eu não sou surdo.
 Não é mas quer ficar. Não banca o valentão comigo, que não respeito cabelo branco. Oito horas no escritório. Ou eu mesmo te arrasto pra lá, tá entendendo?

MEDO DE AVIÃO - Conto de Athos Ronaldo Miralha da Cunha (Santa Maria, RS)

MEDO DE AVIÃO

O avião taxiava preparando para a decolagem. Ao meu lado um netinho e na poltrona seguinte a vovozinha do netinho.
A velhota deveria ser “marinheira” de primeira viagem, pois debulhava um terço. Só se ouvia o psiupsiupsiupsiupsiupsiu... dos lábios. Quase que a velha teve um troço quando o piá fez a seguinte pergunta.

– Vovó! Titanic era avião ou navio?

CONTAGEM REGRESSIVA - Conto de Márcio Estamado (Álvares Machado, SP)

CONTAGEM REGRESSIVA

Quando faltava meia hora para a meia-noite, Júlio desceu as escadas. Os cabelos alinhados com gel. Bermuda e camisa brancas. Viu seu rosto queimado de sol ainda uma vez mais no espelho, as olheiras profundas que destacavam olhos verdes e cansados. Pela aparência, não adiantou muito esticar a sesta até mais tarde. Todos já o esperavam no grande salão do andar térreo. Foi recebido com saudações efusivas, incluindo as dos subordinados que, durante o ano inteiro, mal disfarçaram o desejo de tomar o seu posto.
Os minutos pareciam não passar. Ele esfregava as mãos, sorria sem graça e ouvia, sem prestar atenção, as conversas ao redor. Olhou o relógio, impaciente. Quinze minutos.
-Júlio, e o champanhe, homem?
Justamente o maior puxa-saco da empresa. Júlio apontou um grande recipiente com gelo, cheio de bebidas dos mais variados teores alcoólicos.
-Júlio, esse ano promete, hein? Essa tua política de expansão é de arromba, cara! Ninguém vai resistir...ah!ah!ah!
Dois tapinhas nas costas selaram aquela intervenção grosseira. Cinco minutos. Taças dispostas na mesa. E a ansiedade o invadiu. À meia-noite, o primeiro a abraçar Júlio foi um office-boy, rapaz promissor, talvez o único ali com alguma modéstia. Os que estavam mais sóbrios estranharam quando Júlio prolongou o abraço ao garoto, chorando convulsivamente.
-Foi um ano de muitas conquistas pra ele. Está emocionado com razão.
Lágrimas ainda escorriam por seu rosto ao receber uma ligação no celular.
-Senhor Júlio? É do hospital. Acabamos de desligar os aparelhos.

E o colorido dos fogos riscou o céu estrelado.

A PRECIPITADA - Conto de M. Luiza Bueno Benevides ( Brasília-DF)

A PRECIPITADA

Como começava um período de experiência num novo trabalho, deu segmento à ideia de comprar uma televisão, à prestação. Mas, da loja não tinha como levar a televisão para casa, pois andava de ônibus.
Pediu então à colega de serviço que tinha um irmão que tinha um carro que a ajudasse a levar a televisão para casa.
Os irmãos foram com ela até à loja e de lá, com a televisão no carro apertado, até o bairro afastado em que ela morava.
Depois, em casa, ela notou que faltava na sua bolsa uma nota de dez reais. Lembrou-se de que, na situação de entrar e sair com a TV do carro, não reparara na sua bolsa. Achou então que a amiga, com a oportunidade que se fizera, roubara sua nota − talvez até combinada com o irmão.
No outro dia, no emprego, já chegou contando como tinha sido roubada.
A colega acusada era antiga funcionária da firma, de vida muito sofrida, quase sem oportunidade de ajudar as pessoas mais pobres que ela. Como os outros, assustou-se com a forma com que fora agradecido o favor que fizera.

A diretora da firma achou por bem que a nova funcionária não cumprisse todo o período de experiência. Dispensou-a, sem nem se interessar em como ela se arranjaria com as prestações que assumira na compra da TV.

A SAÍDA - Microconto de Carlos Emilio Faraco (São Paulo, SP)

A SAÍDA

Cansado de rimar "caminho" com "sozinho", Lupércio passou a andar de motoneta.