segunda-feira, 16 de novembro de 2015

NEGO CUNDUNGA - Conto de Jorge Silveira Wernz (Alegrete, RS)

NEGO CUNDUNGA (Campereada 1998)
Rincão de são Miguel e seus personagens

Tez completamente negra, esguio, talvez 1,80m de altura (não sei se por eu ter apenas 9 anos o via tão alto), queixo excessivamente proeminente, dentes alvos, apesar do inseparável palheiro, e um constante sorriso aberto que permitia, mesmo a quem não o quisesse, ver o róseo de suas gengivas, céu da boca e língua. Esse era o "Nego Cundunga", o "Tio Cundunga",alegria do Rincão.
Os 74 Km de estrada do local, por apresentarem horrível trafegabilidade, deixavam apenas o "tilburi" como meio de transporte aos fazendeiros ,nos idos de 1950.Já o transporte de carga era feito pelos carroções do "Nego Cundunga". Mantimentos, sementes, rações e toda a sorte de necessidades chegavam até o fundo do Rincão nos três carroções puxados por quatro cavalos cada um, guiados pela habilidade do "Nego" e seus filhos.
Quando chegava de viagem na cidade, trazia e entregava aos fazendeiros as listas de necessidades, que tinham uma semana ( seu descanso no povo), para providenciar a entrega das mesmas para seu retorno ao Rincão.
Segundo ele mesmo contava, saia de Alegrete por volta da meia-noite, fazendo seu primeiro pouso e troca de cavalos no seu compadre "Tolentino", bem na famosa porteira preta. Dali seus carroções entravam ruidosamente até uma certa altura do Rincão da Palma, o que lhe permitia, falhar um pouso e retornar ao primeiro para seguir viagem, que não era curta.
Uma das paradas obrigatórias dos carroções era na estância São Jorge, de propriedade de meu avô Joaquim Antonio da Silveira de onde não se enxergava a estrada, o que não impedia que os cães de longe pressentissem e acusassem
sua chegada, o que alvoroçava os peões que diziam:
-Aí vem o "Nego Cundunga"...
Pela primeira vez após ouvir tantos comentários à beira do fogo, eu via chegar os carroções. Ao vê-los, correu-me um arrepio, finalmente ia ver de perto tão afamado personagem do Rincão.
Carroças colocadas à sombra, cavalos desatrelados e apos refrescar , lombos lavados carinhosamente.
A tudo eu assistia, ansioso para ouvir suas peripécias de viagem. Como ele tinha coisas mais importantes a fazer, ignorou-me. Foi fazer um relatório ao meu avo e entregar as encomendas ao caseiro
Com a chegada dos carroções, pude entender porque o chamavam "alegria do Rincão", pois traziam brim, chitas, rendas, brilhantina, fumo, "amor gaúcho", enfim tudo o que era necessario para que peões e prendas se "pilchassem" melhor para os bailes de rancho ou para os namoricos de Domingo a tarde.
Após três dias da feliz novidade para mim, vi que na recolhida da tarde(hora que trazem os cavalos do potreiro), vieram os cavalos dos carroções. Perguntei ao capataz por quê.
Respondeu-me que os cavalos iam ficar presos para "adelgaçar", pois Tio Cundunga iria sair de madrugada grande.
À noite, apos a janta, ele foi despedir-se de meu avô e de mim, dizendo que ia até o fim da rota troncal e voltava por ela à Alegrete.
Acordei cedo no dia da partida, pra ver se ainda assistia o atrelar, mas "que puxa" saiu mesmo de madrugada grande.

Por muitas outras férias, a chegada dos carroções aconteceu, sempre cercada da mesma expectativa e alegria e eu até hoje me surpreendo de ouvido alerta, esperando ver surgir dos fundos da "São Jorge" o "Nego Cundunga" com seu sorriso de orelha a orelha e seu comboio de alegrias e lembranças.

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