segunda-feira, 16 de novembro de 2015

O VOO DO MARAGATO - Conto de Athos Ronaldo Miralha da Cunha (Santa Maria, RS)

O VOO DO MARAGATO

Agripino Saraiva, peão de estância aposentado e maragato flor de guasca, acalentava o sonho de viajar de avião. Nem que fosse uma vez, não queria morrer sem embarcar numa “geringonça daquelas” – como se referia à aeronave. Não tinha medo, pois quem montou em baguais e peleou no ferro branco não poderia ter medo das alturas.

Como todo índio grosso, moldado a facão nas lides do campo, não entendia dessas tecnologias de compras pela internet. Pensava que era só chegar ao aeroporto e comprar uma passagem, como fazia quando queria visitar umas primas em São Borja. Ia até a rodoviária e no guichê adquiria o bilhete. Mas avião era diferente, tinha que ser pela internet.

A solução foi recorrer ao Agripininho – o filho, embora com 28 aninhos, era chamado de Agripininho – que conhecia bem essas modernidades e vivia mexendo num aparelhinho preto cheio de letrinhas. Agripininho levou um susto quando o pai falou que queria viajar para o Rio de Janeiro. Depois dos argumentos que ele não conhecia ninguém na Cidade Maravilhosa e a violência campeava frouxa, bala perdida e sequestros, o velho Agripino mudou de ideia. Iria a Brasília. Novamente o filho argumentou que ele não tinha amigos e nem
parentes em Brasília. Então, o Agripino tirou a carta da manga.

– Tenho sim, a Dilma. Vou visitar a presidente.

– Tá delirando, velho. Desde quando tu conhece a Dilma?

– Ora, lutamos juntos contra os milico. Tá feito, vou ver a Dilma. Pode comprar.

Outro obstáculo para a compra da passagem foi no momento de colocar o número do cartão de crédito para finalizar a compra.

– Que cartão?

Situação resolvida com o número do cartão do genro.

Agripino vestiu a melhor bombacha e se apresentou totalmente pilchado na estação rodoviária. A guaiaca forrada – era um cara prevenido –, uma mala de garupa, chapéu, bota e espora. Claro, estreando um lenço vermelho que enchia o peito. Não adiantou o Agripininho indagar sobre as esporas, que ele não iria passar no detector de metais. A resposta foi taxativa dizendo que não sabia andar de botas sem as esporas.

– Eu não tiro as esporas nem para dormir...

Estava cheio de recomendações. Quando o ônibus chegar em Porto Alegre, não deveria descer, pois o final da linha era no aeroporto. Chegando lá deveria procurar a moça da Azul para fazer o check in para embarque.

– Pra que cheque se paguei em dinheiro pro Arnaldo – o genro –, não foi Arnaldo?

– Isso não vai dar certo... seja o que Deus quiser – comentou o genro.

– Pai, não esqueça, chegando no aeroporto procure a moça da Azul. Ela vai ajudar o senhor. Ah! Leve esse celular, se precisar falar comigo, abra a tampinha e aperte o número dois, entendeu?

– Claro, aperto o número dois.

A entrada de Agripino no aeroporto Salgado Filho foi triunfal. Um autêntico gaúcho devidamente vestido com a indumentária tradicional foi motivo de atenção. Foram várias fotos, selfies solicitadas por pessoas das mais diversas localidades. Estranhou aquela vareta com uma máquina fotográfica na ponta. Achou meio afrescalhada – coisa de cola-fina –, mas não quis passar por grosso da fronteira e foi curtindo seu momento de celebridade, bombeando, disfarçadamente, a tal moça da Azul. Batia esporas pelo aeroporto.

Depois de algumas idas e vindas conversando com tudo que era moça de azul pelo saguão do aeroporto, uma alma caridosa tentou ajudar nosso “marinheiro de primeira viagem”.

– Deixa eu ver o seu voucher.

– Vou, tchê. Para Brasília! – falou de pronto.

– Aquele papelzinho... o bilhete impresso.

–Ah! – buscou o papel no bolso da guaiaca.

Agripino descobriu naquele momento que seu voo era da Azul e que deveria se deslocar para o outro terminal do aeroporto. A contragosto, por conta da palavra terminal, aceitou a indicação do vigilante, que o acompanhou até a parada do ônibus que conduz os passageiros ao terminal da Azul. Agripino chegou batendo esporas diante do guichê da Azul para fazer o check in.

– Bagagem de mão? – pergunta a atendente.

– Só a mala-de-garupa, guria.

Polêmica no embarque: as esporas de prata.

Os policiais ficaram divididos em deixar embarcar com as esporas – espora poderia ser usada como arma? – mas diante da indumentária e autenticidade do gaúcho e da relíquia de prata concordaram, mas teria que levá-las na mala-de-garupa. Agripino fechou o cenho e coçou o bigode. E o policial indicou que colocasse tudo que tivesse de metal na bandeja. Agripino colocou a guaiaca, chapéu, esporas, um relógio – ômega ferradura – falou em alto e bom som. E um par de alianças, pois era um viúvo saudoso da esposa.

Ao cruzar a porta detectora de metais, buzinou o alarme. Agripino tirou um colarzinho com a cruz missioneira e uma pulseirinha. Novamente a porta acusou a presença de metais.

– Tem certeza que o senhor não tem nada mais de metal?

– Ah, sim – e puxou a faca da bota, uma solingen com cabo de prata. – Meu bisavô degolou muito chimango com ela em 93.

Após o breve momento de pânico por conta de uma faca o policial tenta manter a calma.

– Senhor...

– Agripino Saraiva, seu criado.

– Seu Agripino, o senhor não poderá embarcar com essa faca. É proibido qualquer tipo de objeto que perfura e corta a bordo da aeronave. O senhor está entendendo? Para embarcar terá que abandonar a sua faca naquele recipiente.

Quando Agripino tomou ciência que perderia a faca, que não a teria mais de volta, foi taxativo.

– Não senhor, não vou deixar a faca de meu bisavô em lugar nenhum. Essa joia que degolou chimangos em 93. Mas de jeito nenhum. Bem capaz!

Os policiais foram irredutíveis eram as normas a serem seguidas, não adiantou o missioneiro argumentar que estava viajando para se encontrar com a presidente Dilma, que haviam lutados juntos nos tempos dos milicos no poder. Com a faca, não embarcava. Também falou que era amigo de infância do governador. Foram parceiros de pescarias lá nas barrancas do rio Uruguai em São Borja. A resposta era sempre a mesma: com a faca, não embarcava.

Agripino estava perdendo a paciência.

– Mas que cambada de chimangos – murmurou para si e chairou a faca no próprio braço. Hesitou uns momentos e guardou a solingen na bota.

Suas expectativas foram desmoronando por conta da faca de prata do bisavô, o degolador da campanha de 93. Saiu esbravejando pelo saguão do aeroporto e entrou num táxi.

– Toca para a casa do governador...

– O palácio Farroupilha?

– Onde o governador mora?

Não abriu a boca durante toda a corrida. Pagou o taxista com moedas de um real e postou-se em frente ao palácio. Estava em dúvida, pois o guri era um simples amigo lá das missões e agora estava ostentando num palácio. Mas entrou, batendo esporas, porta adentro. Em segundos foi interpelado por dois seguranças. Novamente alguns empurrões de parte a parte e o Agripino se acalmou.

– Quero falar com o governador.

– O governador só recebe com hora marcada.

– Ô... chimanguinho – em tom irônico –, o senhor não está entendendo, eu quero falar com o governador.

– O senhor que não está entendendo, o governador só recebe pessoas que estão na agenda.

– Diz para o teu patrãozinho que Agripino Saraiva quer falar com ele.

– O governador só recebe pessoas que estão na agenda.

– Meu caro, nós fomos amigos de infância lá em São Borja. Nós fomos amigos, muito mais que amigos, quase irmão, eu, o governador e o irmão dele, o Adelminho. Nós pescamos no rio Uruguai.

– Gauchão, que eu saiba o governador não é de São Borja, é de Caxias do Sul e não tem um irmão chamado Adelminho.

– O ignorante – Agripino estava possesso. – Todo o Brasil sabe que o governador Tarso nasceu em São Borja... taipa!

– Só tem um detalhe, o sabichão, o nome do governador é Sartori. Tarso é ex-governador. Palhaço!

– Bah!

Com alguns safanões os seguranças colocaram o missioneiro porta afora do palácio.

– Vá procurar a tua turma!

Agripino sentou-se em um banco da praça em frente ao palácio e discou o número dois no celular. Seguindo orientações de Agripininho se precisasse falar com ele ou precisasse de ajuda.

– Alô, Agripininho? Estou aqui em frente a casa do governador, pode vir aqui me buscar?

– !?.


Agripino pegou umas laranjas da mala-de-garupa descascou com a faca de prata do bisavô degolador de chimangos e ficou saboreando a doçura da vida em frente ao palácio Farroupilha.

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