segunda-feira, 16 de novembro de 2015

O PIANO - Conto de Augusto Cruz (Salvador, BA)

O PIANO

Em Aracaju, na Rua de Estância, quando o ponteiro maior do relógio indica alguns minutos restantes para as 17h, ao invés de as janelas das casas cinquentenárias se fecharem para evitar os mosquitos, são abertas e umas carinhas, de gente mais velha, timidamente aparecem, seguidas de um cruzar de braços e um olhar fixo na janela azul da casa de número 31, bem no meio da rua.

Quase que pontualmente às 17h a janela azul se abre e os rostos ansiosos dos vizinhos dão lugar a faces relaxadas.

Surgem os primeiros acordes de uma valsa brasileira e um “ahhhhh” em algum lugar da rua é abafado pelo som do piano que vocifera sua alegria da janela recém-aberta.

O mendigo Paulão, que habitualmente passa pela rua para receber uma sopa de D. Nazinha, rodopia até a casa dela e abre o sorriso de poucos dentes, muito menos por causa da sopa aguada e muito mais para a música que o arrepia.

D. Irá, D. Nair e D. Marizete, cada uma em sua janela, enxergam os espectros de seus filhos, que infelizmente já enterraram, bailando elegantes no meio da rua, devidamente acompanhados de novas noras e a cada rodada um aceno para a mãe orgulhosa.

Seu Hamilton, um copo de cerveja em uma mão e uma flor na outra, cruza a via pública rindo, assobiando, esquecendo que já morreu há anos.

E os exibidos da casa 27, João e Zuleika, 52 anos de casados e ainda “vivinhos da silva” e
apaixonados, dançam coladinho em sua calçada.

O dono da padaria da esquina sai de detrás do balcão gritando: “Fascinação! Fascinação!” todo dia era isso! Pedia a mesma música para o piano, por que lembrava de sua Joana. E cantava alto, desafinado, desentoado e às lágrimas sobre os sonhos lindos que sonhou...

O piano seguia seu curso natural e diário de trazer esperança e felicidade à Rua de Estância. Cada janelinha aberta com sua dona ou dono, em cada pessoa viva ou não que dançava na calçada ou no asfalto, até que pela luz dos olhos meus e a luz dos olhos teus resolveram se encontrar, alguém grita, como sempre: “vai começar a novela!”

O piano para!


E aí a fome volta ao mendigo que sorve sua sopa. As mães sem filhos não têm tempo nem de dizer adeus aos fantasmas que retornaram para o além. Os exibidos se recolhem sem ao menos se dar as mãos. As janelas se fecham e quem passar pela Rua de Estância, nesse instante, não imaginaria a festa que acabou subitamente, pois só veria, pelas frestas das portas, as manchas da luz azul das televisões.

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