CARTA
A MEU PAI
Os
mugidos cessavam de me assombrar quando a Radio El Mundo entrava em la noche.
Os Love is a many splendored thing, Embraceable you, Perfidia, Cheek to cheek,
The man I love me fascinavam no escuro do quarto rústico de onde eu ouvia
compridos suspiros que hoje me parecem de amores perdidos na curta juventude.
Aprendi
a gostar de música boa, música de pessoas apaixonadas sem saber se por alguém,
algo, tudo, todos.
Tu
eras assim, ensinavas coisas grandiosas sem as conhecer. Despertar o bom gosto
musical não foi a única coisa, embora isso, a meu ver, tenha sido muito.
Tinhas
o estranho-louco hábito de recolher cenas emocionantes de filmes, de livros, da
vida. Depois as contavas para mim, o que me viciou em colecioná-las também e,
além disso, e mais grave, ensinou-me a pensar através de cenas, legando-me o
temível pensamento fragmentado.
Tu
me ensinaste a contar histórias nessa ânsia de partilhar com os outros os
pequenos contos que a vida nos entrega prontos para o papel. Me deixaste a
triste-louca mania de criar mundos alternativos e lembrar ações comoventes ou
espetaculares.
Contavas
que Saint Exupéry, o autor de O pequeno príncipe que, como tu, gostava de
pilotar aviões, em visita à Argentina convidou a moça de mais rara beleza para
ir conversar perto das estrelas.
Eras
estudante e te aproximaste de uma jovem que caminhava pelas ruas de Porto
Alegre. Como é teu nome? Melanie Klein. Acompanhaste-a até a porta de casa e
aguardaste alguns minutos ansiando por revê-la. Foste surpreendido
por uma
ambulância que estacionava em frente à casa da moça e uma gritaria que te fez
deixar o local às pressas.
Durante
a II Guerra Mundial, um oficial alemão se asilou na cabanha de teu pai. As
crianças não podiam aproximar-se do quarto dele, mas todas as tardes o rapaz
saía a correr no campo perseguindo os avestruzes. Num entardecer povoado de arrulhos
de pombas e relinchos de cavalos, estacionou em frente à casa um Ford 38 e
alguns homens que falavam outro idioma levaram o oficial Hans Langsdorff,
sobrinho do Comandante do Cruzador Graff Von Spee.
Rodrigo
Diaz de Vivar deu de beber a um leproso quando cavalgava pelo seu desterro em
meio a um bosque longínquo. O homem agradeceu-lhe, chamando-o de El Cid. El
Campeador perguntou-lhe como sabia seu nome. “Por que só há um homem na Espanha
capaz de afrontar um rei e dar água a um leproso”.
A
música pela qual te apaixonaste no teu último verão era um revival da época da
minha adolescência: Killing me softly with his song. Chegaste a minha casa
tentando cantarolar a melodia e me perguntaste como se chamava. O que
significava? Que loucura, tu disseste e deixaste minha casa murmurando: matando-me
suavemente com sua canção.
No
dia 7 de setembro do penúltimo ano do século, deitaste entre rendas e flores
com as quais te enfeitou tua filha favorita que tem nome de música de Tom
Jobim, que se chamava Antônio, como tu. Tua bisneta de quatro anos, te olhou
muito séria e disse pensativa: ele não devia ter ficado cansado. Hoje, oito
meses depois, li cedo nos jornais que outro amigo teu ficara cansado. Ele
dirigiu meu time muitas vezes e, não sei por que, só hoje, depois de tua
partida me permiti chorar de saudades. Ballvé era presidente do Internacional
quando, certa vez, o Ferro Carril de Uruguaiana veio à capital e tomou
dezesseis gols. Eu era jovem e quis afrontar o nosso conterrâneo que permitiu
essa humilhação aos nossos jogadores. Me contaste o apelido de infância dele e
eu liguei, quase sem voz de tanta revolta, mas consegui chamá-lo de orelha de
ventilador. Ah, nosso Ferro Carril estava vingado: orelha de ventilador!
Teus
netos, filhas e amigos choraram muito a tua partida, mas tua bisneta traduziu
da melhor forma o sentimento que eu não consegui expressar: tu não devias ter
ficado cansado, afinal, eras a única pessoa que sabia me abraçar quando eu
perdia a capacidade de carregar toda a dor do mundo.
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