sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

CARTA A MEU PAI - Crônica de Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)

CARTA A MEU PAI

Os mugidos cessavam de me assombrar quando a Radio El Mundo entrava em la noche. Os Love is a many splendored thing, Embraceable you, Perfidia, Cheek to cheek, The man I love me fascinavam no escuro do quarto rústico de onde eu ouvia compridos suspiros que hoje me parecem de amores perdidos na curta juventude.

Aprendi a gostar de música boa, música de pessoas apaixonadas sem saber se por alguém, algo, tudo, todos.

Tu eras assim, ensinavas coisas grandiosas sem as conhecer. Despertar o bom gosto musical não foi a única coisa, embora isso, a meu ver, tenha sido muito.

Tinhas o estranho-louco hábito de recolher cenas emocionantes de filmes, de livros, da vida. Depois as contavas para mim, o que me viciou em colecioná-las também e, além disso, e mais grave, ensinou-me a pensar através de cenas, legando-me o temível pensamento fragmentado.

Tu me ensinaste a contar histórias nessa ânsia de partilhar com os outros os pequenos contos que a vida nos entrega prontos para o papel. Me deixaste a triste-louca mania de criar mundos alternativos e lembrar ações comoventes ou espetaculares.

Contavas que Saint Exupéry, o autor de O pequeno príncipe que, como tu, gostava de pilotar aviões, em visita à Argentina convidou a moça de mais rara beleza para ir conversar perto das estrelas.

Eras estudante e te aproximaste de uma jovem que caminhava pelas ruas de Porto Alegre. Como é teu nome? Melanie Klein. Acompanhaste-a até a porta de casa e aguardaste alguns minutos ansiando por revê-la. Foste surpreendido
por uma ambulância que estacionava em frente à casa da moça e uma gritaria que te fez deixar o local às pressas.

Durante a II Guerra Mundial, um oficial alemão se asilou na cabanha de teu pai. As crianças não podiam aproximar-se do quarto dele, mas todas as tardes o rapaz saía a correr no campo perseguindo os avestruzes. Num entardecer povoado de arrulhos de pombas e relinchos de cavalos, estacionou em frente à casa um Ford 38 e alguns homens que falavam outro idioma levaram o oficial Hans Langsdorff, sobrinho do Comandante do Cruzador Graff Von Spee.

Rodrigo Diaz de Vivar deu de beber a um leproso quando cavalgava pelo seu desterro em meio a um bosque longínquo. O homem agradeceu-lhe, chamando-o de El Cid. El Campeador perguntou-lhe como sabia seu nome. “Por que só há um homem na Espanha capaz de afrontar um rei e dar água a um leproso”.

A música pela qual te apaixonaste no teu último verão era um revival da época da minha adolescência: Killing me softly with his song. Chegaste a minha casa tentando cantarolar a melodia e me perguntaste como se chamava. O que significava? Que loucura, tu disseste e deixaste minha casa murmurando: matando-me suavemente com sua canção.

No dia 7 de setembro do penúltimo ano do século, deitaste entre rendas e flores com as quais te enfeitou tua filha favorita que tem nome de música de Tom Jobim, que se chamava Antônio, como tu. Tua bisneta de quatro anos, te olhou muito séria e disse pensativa: ele não devia ter ficado cansado. Hoje, oito meses depois, li cedo nos jornais que outro amigo teu ficara cansado. Ele dirigiu meu time muitas vezes e, não sei por que, só hoje, depois de tua partida me permiti chorar de saudades. Ballvé era presidente do Internacional quando, certa vez, o Ferro Carril de Uruguaiana veio à capital e tomou dezesseis gols. Eu era jovem e quis afrontar o nosso conterrâneo que permitiu essa humilhação aos nossos jogadores. Me contaste o apelido de infância dele e eu liguei, quase sem voz de tanta revolta, mas consegui chamá-lo de orelha de ventilador. Ah, nosso Ferro Carril estava vingado: orelha de ventilador!


Teus netos, filhas e amigos choraram muito a tua partida, mas tua bisneta traduziu da melhor forma o sentimento que eu não consegui expressar: tu não devias ter ficado cansado, afinal, eras a única pessoa que sabia me abraçar quando eu perdia a capacidade de carregar toda a dor do mundo.

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