sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

O LEITOR - Crônica de Gustavo Ventura Gomes (Porto Alegre, RS)

O LEITOR

Saí para o lanche as 17 hrs de uma tarde ensolarada, antecipada no horário de verão. A brisa incessante provocava um frescor suave. Mesmo assim, movimentava as plantas do entorno, num farfalhar digno de orquestra. O verão chegará logo. Fiz a opção mais comum para o lanche. Com dois envelopes de ‘clube social’ trazidos de casa, atravessei até o outro lado do shopping e pedi o de sempre, um expresso na Praver. Voltei e fui ao refeitório dos funcionários no subsolo, junto a garagem. Lá há uma boa mesa, microondas e pia. Também uma boa janela, que nos serve um pouco de jardim e um canto de céu. A opção incomum é caminhar uma quadra e sentar-se na padaria Bassani para comer uma fatia de marta-rocha ou um pedaço de batata doce assada na hora com um “cortado” servidos no balcão.

Ainda atravessando o shopping, indo buscar o tal café, vejo sentado na mesa externa da loja de chocolates, um senhor bem velho, magro e muito alto, com sua bengala sustentando suas duas mãos, uma sobre a outra, em posição de escuta, imóvel, com a atenção ao que lhe era lido pelo outro homem ao seu lado. Presto atenção e penso ser o pai do Fábio, amigo fotógrafo, que foi muito amigo da Ventura Livros. Quando volto com o café para descer as escadas que me levarão ao refeitório, caminho mais pausadamente, equilibrando o café quente. Chego a pensar em me fazer lembrar, afinal era seu Luigi del Re, que tantas vezes frequentou a livraria no tempo da Andradas, no número 1332. É fácil recordar o Fábio apresentando seu pai que depois virou frequentador da livraria. Homem alto e de passos rápidos,
mesmo se utilizando da sempre presente bengala. Autor do livro ‘Pelos caminhos da Patagônia’,de relatos da região argentina e de admiráveis desenhos de focas e gaivotas a mão livre. Descubro agora um outro livro seu, o romance “Bruno e os elefantes-marinhos”, pela editora Record. No romance, o autor conta a história daquele pedaço de tempo em que filhos idolatram os pais, que amam incondicionalmente os filhos, e tudo parece perfeito e absurdamente promissor, até que... O futuro é interrompido. (O Estado do Paraná - 14/01/2007 )

“Ler o livro de Luigi Del Re é lutar com nossos próprios fantasmas, eventualmente realidades. É doloroso, mas não opressivo, é de fazer refletir, mas sem amargura. Não é um livro sobre a morte: é uma obra sobre o amor de um pai. E, como tal, faz parte dos livros que devem ser lidos porque, de certa forma, tornam a gente melhor”, diz Lya Luft, escritora.

Luigi Del Re é italiano e mora no Brasil há 58 anos. Publicou, na Itália, Attesa a Guatambú (Mondadori, 1983) e, no Brasil, Pelos caminhos da Patagônia (Editora Mercado Aberto, 1994), “Bruno e os elefantes-marinhos”- editora Record Está com 92 anos. Importante ainda dizer, que Luigi traduziu para o português o livro “É isto um homem?”, de Primo Levi, editora Rocco. Importante texto de testemunho de outro italiano escritor, sobrevivente de Auschwitz, Primo Levi:

“As portas foram trancadas imediatamente, mas o trem só partiu à noite. Soubemos com alívio qual era nosso destino: Auschwitz. Um nome que, para nós, nada significava, mas que deveria corresponder a algum lugar deste mundo.(...) Pela fresta, alguns nomes conhecidos e outros estranhos de cidades austríacas, Salzburg, Viena; depois, tchecas; por fim, polonesas. Na noite do quarto dia, o frio ficou mais pungente, o trem corria entre escuros pinheirais sem fim, sempre subindo. A neve era alta. deveríamos estar em uma linha secundária, pois as estações eram pequenas e quase desertas. Ninguém tentava mais comunicar-se com o mundo externo, sentíamo-nos “do outro lado”. Houve uma longa parada na campina aberta; logo a marcha recomeçou, lenta, lentíssima, até que o comboio parou definitivamente, no meio da noite, numa planície escura e silenciosa.” , “É isto um homem?”.

Resolvo não interromper seu Luigi e o filho que lia ao pai em italiano numa condição fraterna admirável.


Desci as escadas e tirei a caneta do bolso.

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