SAMBA
PRA MINHA ESPERANÇA
Segunda-feira
chuvosa em Porto Alegre. Acordei dentro de um cinza chumbo, levei os filhos ao
colégio, voltei pra dar uma ordem na casa, sem saber por onde começar, as horas
corriam. Almoço, filho no oftalmologista, a chuva seguia... Três da tarde, olho
no relógio aflita, trânsito trancado. Minha amiga Bárbara e eu, estamos em cima
do laço, preparando a Noite da Palavra, um projeto bonito, com poemas no varal,
atrizes lendo textos de escritores, shows...
A
chuva no para-brisa me dando angústia, ainda tinha que voltar pra casa a tempo
de passar roupas, a louça toda do dia anterior ainda estava suja na pia. O
filho menor querendo um técnico para o computador que estragou e o tempo
voando. Entramos juntas no asilo Padre Cacique, cheguei a comentar que não era
o dia ideal para irmos a um lugar triste, mas a Bárbara não queria nem saber,
não havia mais tempo, teríamos nessa tarde, que falar com um pessoal da melhor
idade, que faz uma roda de samba segundas-feiras ali. Entramos. Cheiro de hospital. Alguns velhos
pelo pátio, a chuva não colaborando em nada.
Estão lá embaixo no porão- diz a moça.
No porão, penso eu, meio deprimente o local. Descemos e, de repente, um
samba zuniu pelas frestas da porta. Fomos recepcionados pelo seu Luiz e seu
melhor sorriso, pedindo que passássemos com um gesto largo do braço. Em
segundos esqueci que estava num porão, num asilo, esqueci que era segunda
–feira e que chovia. Lá dentro, treze pessoas faziam o melhor samba de raiz,
com cabelos brancos, firmes no cavaquinho, viola gemendo, cuíca e bandolim. Ali
não existiam velhos, tinha suingue, ziringuidum, balacobaco... Os olhos de todos sorriam, o samba contagiava.
Fez-se madrugada naquela
tarde. Fez-se estrelado o céu. Ali era lugar de
namoros, de chapéus de malandros, eu estava na Lapa. Éramos chamadas nos cantos, nos despejavam
currículos, queriam mostrar seus talentos. Todos, todos ali tinham vida
ensolarada, fora do porão também. Ministravam oficinas de teatro, música,
dança, faziam filmes, apresentavam-se em aniversários, se apaixonavam. A Bárbara caiu no samba, entre aplausos. Logo
estávamos as duas, inseridas no grupo, fazendo uma percussão bonita, ela com um
chocalho, eu com um pandeiro. Esquecemos a hora, só iríamos pra casa quando a
estrela d´Alva no céu despontasse. “ A noite é criança, o samba é menino e a
dor é tão velha que pode morrer”. Minha alma de boemia me trancava naquele
lugar, me senti num bar, onde adoro estar. Me senti numa noite de verão, numa
gafieira. Aquela gente ágil e mágica me fez tão bem que esqueci a pia cheia de
louça, que esqueci o computador estragado. Naquele lugar, vi que a velhice pode
ser boa, boa sim. Colágeno para o
espírito, exercício pra alma é do que precisamos. Com eles aprendi que só
envelheceremos se permitirmos.
Quando
saímos de lá, a chuva seguia, a tarde insistia. Quando passamos perto da janela
do porão, ouvi a voz da Ilma cantando: “Bate outra vez, com esperanças o meu
coração...” Misturei com a chuva meu
sorriso cúmplice e o fim de tarde alaranjou.
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