A GAVETA DA
ALEGRIA
Essa é uma
gaveta que precisa ser aberta de tempos em tempos. Não vai estar sempre
escancarada, pois falsearia o equilíbrio das coisas. Alguns conseguem deixá-la
entreaberta num movimento repetitivo de abre e fecha, só para não lacrá-la de
vez. Para alguns acontece – o lacre –, mas não para quem tem histórias na
família para lembrar e contar. Na minha, os primos quando se encontram, somos
como sonâmbulos da existência, descendo sempre e sempre em busca dessas jazidas
que nos identificam e nos unem.
Num desses
encontros apareceu a história de duas tias-avós que foram retirar os ossos de
um irmão do jazigo da família – três andares, subterrâneos, contendo de cada
lado três covas – não era tão suntuoso como aqueles das famílias mais abastadas
da região, mas era bem localizado, logo ali no terceiro corredor à direita do
portão principal. A bisavó sempre dizia: “Nossa família a vida toda morou a uma
quadra da Praça Central da cidade, só o que me faltava agora é deixar minha
gente ficar na periferia do cemitério para toda a eternidade”.
Às irmãs mais
moças cabia aquela tarefa desagradável, remover o que sobrava dos falecidos mais
antigos e abrir uma vaga para o próximo enterro. Há tempos ninguém morria, mas
tio Feliciano andava prometendo, portanto só para prevenir era hora de levar os
ossos do irmão, enterrado no último pavimento rente ao chão, para a parte
superior do Jazigo, onde se localizava
o ossário.
Uma delas sentou
na pontinha do jazigo vizinho para descansar as pernas, enquanto o trabalho
demorado estava em andamento, quando comentou: “de que morreu mesmo?” A outra
impressionada respondeu: “Como podes não lembrar? Ataque fulminante do coração”
– ao que o coveiro retrucou imediatamente: ”Desculpa senhora, mas pelo que vejo
aqui, esse morreu foi afogado. O caixão está cheio d’água”.
A oralidade das
histórias contadas em família tem esse dom, não são esquecidas, pelo contrário
são enriquecidas de detalhes, diminuindo o limite entre o trágico e o cômico.
Outro dia,
fiquei sabendo de um tio com Alzheimer que quando vinha a Alegrete hospedava-se
na casa de uma sobrinha para revisão e exames médicos. A sobrinha amorosa
estranhou a ausência depois de certo tempo e resolveu ligar. O filho atendeu:
“O pai está bem, mais esquecido… mas, espera, vou te passar com ele”. “Olga, minha sobrinha, ando meio fraco da
cabeça, mas quero saber se tu és loira ou morena?” A sobrinha bem humorada
responde, prontamente. “Sou linda, morena, do tipo que nem vem mais”. O velho
tio nervoso pergunta ao filho: “Dagoberto, podes me levar no Alegrete? Eu preciso
me lembrar dessa sobrinha”.
Desde cedo
nascem histórias para alegria dessa gaveta. Lembro bem de algumas que me foram
contadas e de uma delas gosto muito.
A história de um
menino que para ir ao matiné da 1h da tarde – a melhor das sessões da gurizada,
apelidada de “matinédobatepé” –, precisava antes dar lustre aos sapatos do pai.
Num Domingo, o rapazinho distraído atrasou-se. O pai disse que não poderia ir
ao cinema. O guri então se apressou o mais que pode e foi lustrar o par de
sapatos. Feita a tarefa estava liberada a saída e, na corrida chegou a tempo
para o início do filme. Quando o pai chegou ao quarto, encontrou os dois pés de
sapato perfilados lado a lado em cima de uma banqueta. Um brilhava como novo, o
outro tinha um bilhete em cima: “Pai, esse pé não pega lustro”.
É sempre bom
contar ou ouvir histórias, nelas as recordações se estabelecem como quadros num
cenário. Não contadas, a memória corre
riscos: não respira. Histórias de
família – se forem tristes adquirem no mínimo a paz da melancolia. Se não, seu
valor evocador e sua simplicidade resgatam imagens guardadas no fundo de nós
mesmos. Profundidade e superfície encontram-se e quebram o lacre, libertam a
gaveta que está cheia de ficar vazia e como num privilégio ela transborda
mundos imaginados na audácia dos devaneios – pura alegria.
“A gaveta da alegria já está cheia
de ficar vazia”
Haicai de Alice Ruiz,
do livro Yuuka
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