sexta-feira, 30 de outubro de 2015

A GAVETA DA ALEGRIA - Crônica de Gilka Coimbra (Uruguaiana, RS)

A GAVETA DA ALEGRIA
                                                                                       
Essa é uma gaveta que precisa ser aberta de tempos em tempos. Não vai estar sempre escancarada, pois falsearia o equilíbrio das coisas. Alguns conseguem deixá-la entreaberta num movimento repetitivo de abre e fecha, só para não lacrá-la de vez. Para alguns acontece – o lacre –, mas não para quem tem histórias na família para lembrar e contar. Na minha, os primos quando se encontram, somos como sonâmbulos da existência, descendo sempre e sempre em busca dessas jazidas que nos identificam e nos unem.

Num desses encontros apareceu a história de duas tias-avós que foram retirar os ossos de um irmão do jazigo da família – três andares, subterrâneos, contendo de cada lado três covas – não era tão suntuoso como aqueles das famílias mais abastadas da região, mas era bem localizado, logo ali no terceiro corredor à direita do portão principal. A bisavó sempre dizia: “Nossa família a vida toda morou a uma quadra da Praça Central da cidade, só o que me faltava agora é deixar minha gente ficar na periferia do cemitério para toda a eternidade”.

Às irmãs mais moças cabia aquela tarefa desagradável, remover o que sobrava dos falecidos mais antigos e abrir uma vaga para o próximo enterro. Há tempos ninguém morria, mas tio Feliciano andava prometendo, portanto só para prevenir era hora de levar os ossos do irmão, enterrado no último pavimento rente ao chão, para a parte superior do Jazigo, onde se localizava
o ossário.

Uma delas sentou na pontinha do jazigo vizinho para descansar as pernas, enquanto o trabalho demorado estava em andamento, quando comentou: “de que morreu mesmo?” A outra impressionada respondeu: “Como podes não lembrar? Ataque fulminante do coração” – ao que o coveiro retrucou imediatamente: ”Desculpa senhora, mas pelo que vejo aqui, esse morreu foi afogado. O caixão está cheio d’água”.

A oralidade das histórias contadas em família tem esse dom, não são esquecidas, pelo contrário são enriquecidas de detalhes, diminuindo o limite entre o trágico e o cômico.

Outro dia, fiquei sabendo de um tio com Alzheimer que quando vinha a Alegrete hospedava-se na casa de uma sobrinha para revisão e exames médicos. A sobrinha amorosa estranhou a ausência depois de certo tempo e resolveu ligar. O filho atendeu: “O pai está bem, mais esquecido… mas, espera, vou te passar com ele”.  “Olga, minha sobrinha, ando meio fraco da cabeça, mas quero saber se tu és loira ou morena?” A sobrinha bem humorada responde, prontamente. “Sou linda, morena, do tipo que nem vem mais”. O velho tio nervoso pergunta ao filho: “Dagoberto, podes me levar no Alegrete? Eu preciso me lembrar dessa sobrinha”.

Desde cedo nascem histórias para alegria dessa gaveta. Lembro bem de algumas que me foram contadas e de uma delas gosto muito.

A história de um menino que para ir ao matiné da 1h da tarde – a melhor das sessões da gurizada, apelidada de “matinédobatepé” –, precisava antes dar lustre aos sapatos do pai. Num Domingo, o rapazinho distraído atrasou-se. O pai disse que não poderia ir ao cinema. O guri então se apressou o mais que pode e foi lustrar o par de sapatos. Feita a tarefa estava liberada a saída e, na corrida chegou a tempo para o início do filme. Quando o pai chegou ao quarto, encontrou os dois pés de sapato perfilados lado a lado em cima de uma banqueta. Um brilhava como novo, o outro tinha um bilhete em cima: “Pai, esse pé não pega lustro”.

É sempre bom contar ou ouvir histórias, nelas as recordações se estabelecem como quadros num cenário.  Não contadas, a memória corre riscos: não respira.  Histórias de família – se forem tristes adquirem no mínimo a paz da melancolia. Se não, seu valor evocador e sua simplicidade resgatam imagens guardadas no fundo de nós mesmos. Profundidade e superfície encontram-se e quebram o lacre, libertam a gaveta que está cheia de ficar vazia e como num privilégio ela transborda mundos imaginados na audácia dos devaneios – pura alegria.  

                                      “A gaveta da alegria já está cheia de ficar vazia”
Haicai de Alice Ruiz, do livro Yuuka

                                                               

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