QUANDO SOAM AS
HORAS
Saturnino
Câmara, vinte e seis anos, solteiro, desempregado, cor parda, natural de
Uruguaiana, domiciliado na rua Desembargador André da Rocha, número 8,
apartamento 44, nesta capital. O comissário interrompe a datilografia, o homem
é muito confuso, melhor retirar a filiação e os dados restantes da carteira de
identidade.
O interrogado
veste camisa de flanela marrom, desbotada, calça cinzenta em tergal lustroso,
cinto de couro gasto, as iniciais SC na fivela dourada, calçados Passo Doble.
Só responde o essencial. Há quatro dias na cidade, não conhece ninguém. Se
arrepende por ter falado demais na terceira noite em Porto Alegre. Vai contar
desde o começo.
Primeiro dia.
Chega à estação ferroviária ainda de noite. Toma um ônibus para o centro. Desce
numa praça, uma sacola de curvim marrom contendo muda de roupa, três carteiras
de cigarro, um radinho de pilha, avios de mate e uma faca Coqueiro do velho
Saturnino, avô dele. Com um papel escrito por um conhecido, pede informações
até dar naquele endereço da André da Rocha com a Lima e Silva, em cima do
açougue. O quarto é de fundos, pequeno, não tem janela, mas pode deixar a porta
aberta. É um domingo fresco e seco. Passa o dia lendo anúncios de empregos.
Serviço de pedreiro é com ele mesmo. Quando o pai vendeu o bolicho ele já tinha
coisa de dez ou onze anos. Foi trabalhar em obra, carpiu terrenos, transportou
mudanças, fez todo o
tipo de trabalho. Agora a população anda assustada com a
calamidade pública, ninguém mais dá serviço.
O comissário
interrompe. Só interessa o que aconteceu aqui. Quem não tem antecedentes fica
dispensado de contar historinhas.
Só à noite ele
observa o quarto. Cama patente, cômoda de madeira escura, relógio de parede
muito velho sobre a cabeça dele. Pega no sono cedo, parece que ainda balança no
trem. Doze badaladas. Um líquido salgado respinga o rosto. Atravessa a área de
serviço até o banheiro. Olha no espelho. O líquido é vermelho, está machucado?
Nem sinal de ferimento. Lava o rosto e volta para a cama. De manhã cedo ouve
barulho de xícaras, a senhoria arruma a mesa sem despregar os olhos do jornal.
Que monstro, ela diz, esquartejou a pobre da moça em doze pedaços. Avenida dos
Estados, 2002, Zona Norte. E diziam que Uruguaiana era uma cidade violenta,
Saturnino pensa. Passa o dia procurando os endereços dos anúncios, a faca
escondida na cintura.
Segunda noite,
ao redor das nove horas está deitado: vergonha de não ter carteira de trabalho,
saudades dos amigos, pés doloridos. Pula da cama com uma badalada do relógio.
Na garganta, um gosto de sangue. De manhã, quando chega à cozinha, a senhoria
segura o rosto com as duas mãos, cotovelos sobre o jornal, os olhos
escancarados: Desta vez foi na Avenida Sertório, 1021. Uma só facada. Outra
moça.
Terceira noite,
deita mais calmo. A vaga para pedreiro é quase certa. Hoje vai dormir sem
pesadelo. Três badaladas, alguma coisa escorre sobre a testa. Acende a luz,
passa o dedo indicador, é sangue. Pensa nos dois crimes, nas batidas do
relógio. O primeiro, na Avenida dos Estados, Zona Norte, meia-noite; o segundo,
uma da madrugada, na Avenida Sertório, nas palavras da senhoria, pouca coisa à
direita; o terceiro às três horas. Associa o relógio aos contornos da cidade.
Pega o mapa: zona leste, numa avenida, como os primeiros. Tem de chegar à
Protásio Alves. Veste-se rápido, apanha a Coqueiro. O prédio cheira à carne.
Desce os três lanços. Caminha em direção à Oswaldo Aranha. Sabe que é bem
longe. Pensa numa sanga ao leste, deve ter água por perto. Entra num bar. Um
velho bebe sozinho, a chave sobre a mesa. Saturnino se aproxima e conta uma
história. Veio comprar remédio para a filhinha, não há mais ônibus, é no fim da
Protásio. O velho responde que vai para o Arroio Dornelles, que coincidência. O
Fusca sai em disparada. Saturnino tem um número na cabeça, é o treze. Desce na
esquina do treze mil. Encontra uma casinha baixa, de madeira, jardim na frente,
a porta aberta. Olha o chão. Está escuro, mas o poste de luz da rua ajuda e
enxergar um pouco. Segue uma trilha viscosa. Sobre a cama de um pequeno quarto,
uma jovem, os cabelos compridos, olhar de espanto. Ele pede calma, ela não
altera a expressão. Retira o lençol empapado de sangue. Ela foi esquartejada.
Cabeça, braço e perna esquerdos, cortados. Ele precisa fugir. Volta-se rápido
para deixar o lugar. As luzes são acesas e Saturnino escuta os gritos de um
homem idoso. Outras luzes vão sendo acesas por toda a vizinhança. A cachorrada
late como em Uruguaiana. Entra num camburão, a faca do avô não está mais na
cintura.
O comissário
interrompe mais uma vez. Chega de mentiras deslavadas. Um desempregado, com
três dias na cidade, portando arma, cheirando a carne é encontrado no quarto da
terceira jovem assassinada, só pode inventar histórias do além. Vai ficar
detido, é elemento perigoso.
Saturnino pensa
no emprego, na senhoria que confiou nele, no rádio, nos avios de mate. Pela
primeira vez dorme sem ouvir uma só badalada, mas sonha com quatro delas, bem
sonoras. Ao amanhecer, é comunicado de que pode deixar a prisão. Ocorrera outro
crime com as mesmas características dos anteriores às quatro horas, na Avenida
Bento Gonçalves, 472.
A senhoria o
recebe desconfiada. Onde andava? Saturnino conta a ocorrência. Ela não acredita
na história do relógio. Segue-o até o quarto. As badaladas só acontecem na
imaginação dele. Ele pergunta onde o relógio foi comprado. Ela dá o endereço do
brique, é perto.
No brique,
Belchior conta que o relógio ficara guardado no depósito por uns cinqüenta anos
e já era antigo naquela época. A pessoa que vendeu queria se desfazer dele por
poucos mil-réis. Pertencera a um açougueiro da Rua do Arvoredo. Conta de
pessoas desaparecidas, linguiça de gente e outras coisas cabeludas.
Sem largar o
relógio, Saturnino vai à delegacia. Sabe que pode ajudar na captura do
assassino. A noite vai passando e cresce o medo de ficar desmoralizado. Ao
redor das cinco e meia, os novos plantonistas informam que ele está dispensado,
chega de conversa fiada. Pede mais uma chance, ainda está escuro. Soam seis
badaladas. Um policial gira o indicador sobre o mapa. Tomam a direção da
Avenida Juca Batista. Saturnino mostra o local do crime, número 3973. Dessa vez
não quer nem ver, a moça está cortada em seis pedaços, podem acreditar.
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