À HORA DA
TEMPESTADE
No porão da
minha avó, eu encontrei o lampião. O metal escuro, um cheiro de azinhavre, o
vidro opaco. Limpei até deixá-lo novo. Vovó achava que um menino de onze anos
não devia sentir medo nem dormir de luz acesa. Eu concordava com ela, mas
conservava o lampião, querosene no pavio, pronto para uma emergência.
Ventava muito
certa madrugada. Ouvi um som estranho. "Está escuro. Acende o
lampião." Me cobri bem. Fiquei gelado. Tentei gritar.
Voltou a luz. De
tão cansado, dormi. Só acordei dia claro. Pedi a minha avó para me contar a
história do lampião. Ela arregalou os olhos. Tinha dado ordem para a cozinheira
se livrar dele.
A filha do casal
que mandara construir a casa, certa vez, passou meses atormentada. Contava que
um homem ruivo, de olhos pequenos e fixos a perseguia. Naquele tempo não havia
energia elétrica. À noite, as pessoas levavam uma vela para o quarto. Os pais
da moça, vendo-a se consumir de medo, deram-lhe um lampião. Ia mantê-lo aceso. Após
uma noite de forte tempestade, ela desapareceu. Um homem com as mesmas
características daquele a quem a moça descrevia foi encontrado no quarto de
outra moça. Chamada a polícia, ele confessou que seguia as virgens até levá-las
para a casa dele. Mantinha-as no porão,onde, com o tempo, esqueciam quem eram
e
de onde vinham. Então passavam a ocupar os quartos e tornavam-se mulheres dele.
A moça do lampião havia morrido no porão.
Apesar do dia
claro, me arrepiei todo. Segui minha avó pela casa. Ouvi a cozinheira falando
com ela. Ela nascera nesta casa, a mãe dela cuidava da menina Lenora. A velha
pedia que a vó a entendesse. A mãe dela costumava acender o lampião em noites
de tempestade. Como a voz de Lenora parecia vir do porão, ela o deixara lá.
Nunca mais ouvira os lamentos até a noite passada.
O céu, cheio de
nuvens escuras. Era por volta das cinco da tarde, luzes acesas pela casa. Não
ia esperar pela tempestade. Pedi à vó que chamasse minha mãe, eu andava com
saudades, queria passar com ela a última semana de férias.
"Quem sabe
amanhã", a vó disse, olhando para os lados como se procurasse alguma
coisa.
Abri a boca.
Tinha de ser hoje. Não esperava mais um dia. Ela tentou falar com a mãe, o
telefone não atendeu. Talvez estivesse a caminho.
Na hora de dormir,
a vó entendeu que eu só ficaria quieto junto dela e me levou para o seu quarto.
O vento estava fraco mas constante. Devia ser a noite mais fria do ano. Me
encolhi embaixo das cobertas, só nariz e olhos para fora. Tentava pensar em
histórias engraçadas, mas todas pareciam bobas. Suava, embora sentindo frio. O
vento aumentou. Era como se eu estivesse numa cama flutuante. Não sei se a cama
se movimentava ou era eu que tremia. As árvores balançavam, o minuano
assobiava. Abri com esforço enorme os olhos. A vó prometera não apagar a luz,
devia ter faltado energia. Alguma coisa brilhava em direção ao quarto. A vó
trazia uma vela?
"Vó",
consegui chamar.
Escancarei os
olhos e pude enxergar um lampião. Como podia estar ali? A luz se aproximava.
Olhei para o espelho do roupeiro. Uma jovem esbelta e lânguida, de longos
cabelos escuros, ajeitava os cachinhos sobre a testa. Pareceu me ver através do
espelho. Voltou-se até ficar de frente para mim. Sorriu e caminhou para a minha
cama, o lampião a guiar-lhe os passos.
Acordei, a boca
amarga e seca. A mãe e a vó, uma de cada lado da cama. Oito da manhã. Sobre a
mesa de cabeceira, termômetro, água e caixas de remédios. A mãe tocou minha
testa. A febre cedia. Que noite. Ia me levar para casa e chamar o pediatra.
Me ergueram para
beber água. Fixei o olhar no espelho. Escurecido como se uma chama o tivesse
tocado.
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