sábado, 31 de outubro de 2015

ALTERIDADE - Conto de Marcelo Meira (Rio de Janeiro, RJ)

ALTERIDADE

Henriquinho ou como preferiam alguns, Riquinho, filho da classe intermediária e matriculado no ensino médio, com louvor nas provas escolares, resolveu abandonar os estudos, apesar de toda a contrariedade familiar. No entanto, jamais deixou de cumprir com seus deveres paroquiais, comparecendo a todas as celebrações dominicais e participando da organização dos encontros de casais que ocorriam na matriz. Diziam naquele paroquiato que ele guardava um segredo a sete chaves, mas que havia perdido uma delas e não muito distante estava de se tornar um verdadeiro homem-bomba. Isso era rebatido, sem dó nem piedade, com relação às más línguas, pelo vigário-geral Monsenhor Castellucci, um dos fundadores do culto cristão naquele local e que lá estava comparecendo com assiduidade. Ocorre que para isso quase ninguém ligava pois não passava, segundo voz corrente, de intriga da oposição, já que o esbelto sempre andava em boas companhias.

Chavequeiro-mor, galanteador apaixonado, exímio conquistador, eram essas apenas uma parte dos adjetivos maliciosos a ele atribuídos por uma parcela menor dos membros daquela sociedade, a qual sequer executava, segundo a freqüência repetitiva dos fieis mais herméticos, uma décima parte da atividade laboral de Henriquinho, efebo dedicado e probo que sempre enxergava a vida com bons olhos. Ainda mais, tendo largado a justeza de suas atividades preparatórias na escola municipal para dedicar-se inteiramente à religiosidade. Circunspecto algumas vezes e por outras mais solícito do que qualquer carola por vocação, o moço e cultor das atividades eclesiásticas permanecia, segundo alguns superiores, firme na prática da justiça e no temor a Deus. Consoante outros, apesar da primeira idéia ligada ao seu nome, esperava tão somente o enriquecimento no terminal momento de sua vida, onde seria consagrado com
o encontro sublime, divino e celestial.

Riquinho, jovial e alegre segundo disparava a liga solidária composta por jovens senhoras beatas, verdadeiras ratas de sacristia, era a imagem da fidelidade cristã, algo que já não muito se avistava por aquelas bandas, daí a sua preciosidade como mancebo dos mais religiosos naquelas quebradas. Ele era, segundo inconfidências de um ou outro titular de confessionário, em momentos de admiração por sua postura, único e indissoluto e seu cotidiano revelava uma alma toda ela composta e animada com a prosa espiritual.

Certo dia, sem ninguém supor ou esperar, um fato houve que surpreendeu aquela comunidade cristã. Aconteceu de uma mulher muito bela, chamada Sallomé, fiel ao marido e devota ao Senhor das Alturas, ter desaparecido após apaixonar-se perdidamente por aquele rapaz púbere e casadoiro, estimado por muitos e não tão admirado por alguns. Tal revelação se deu por conta de que Riquinho havia sumido naquele mesmo espaço temporal. A polícia alertada que foi, começou as investigações ouvindo depoimentos e ameaçando aquela congregação, caso revelações fossem segredadas em decorrência da alegada crença na religião. O vigário, franciscano que já tinha sido, constrangido segundo aventava-se com todos aqueles fatos ocorridos por debaixo de suas barbas, raspadas desde muito, também havia viajado além-mar para uma solenidade pública programada pela Cúria Romana. Todavia, algum padre confidente, incrédulo a certos dogmas, e amedrontado com todos aqueles fatos, revelou segredos de ofício diante das intimações policiais, apesar de ilegais. E foi assim que se descobriu o sonho acalorado daquela jovem consorte e temente ao Criador, mas que sucumbiu aos atributos físicos da natureza. E ela havia se ido também, por longo tempo, mas retornou chorosa e ainda aflita por não ter conseguido encontrar-se com seu futuro amásio. Depois de muitos interrogatórios policiais e cristãos, revelou que sua decepção prendia-se ao fato de que após esperar Henriquinho, sem sucesso, só veio a mirá-lo bem depois, quando partiu de Florença e chegando a Veneza o conseguiu avistar a bordo de uma gôndola. E qual não foi a sua surpresa, apesar de toda a neblina daquele momento, quando identificou navegando juntos, ao cair da tarde, Henriquinho e o vigário-geral, como que em sussurros auriculares incessantes, tal e qual duas andorinhas nas vésperas da primavera.

Nunca mais naquele lugarejo perdido ao pé das montanhas, de onde partiram para viver mundo afora, se ouviu falar deles. Conta a lenda que estão alegres e sorridentes até hoje na Itália onde conquistaram o direito à felicidade, contra a qual nada se poderá impor, em conseqüência do reconhecimento à diversidade e alteridade, bem como de interpretações oriundas da norma constitucional que lhes servem como garantia. Mesmo porque em se tratando de solteiros e sem família anteriormente derivada, não há como se colocar qualquer obstáculo, por menor que seja, a seus desígnios. A propósito sempre foi invocado que os ditos populares são os mais sábios e de aplicação geral. Daí se afirmar, conforme o adágio: cada um por si e Deus por todos. E não seremos nós a realizar julgamentos condenatórios, independente de qualquer opinião que venhamos a considerar em nosso íntimo como a mais correta. Importante é que não nos alcemos à condição inatingível de próceres da verdade.

As aproximações abrangidas pela homoafetividade são fatos lícitos e se relacionam à vida privada de cada um. Cabe pois, ao Estado estabelecer o respeito à diversidade e incentivar a tolerância, como forma de se aplacar ações ilícitas e violentas, concorrendo desta forma para afastar o preconceito e a discriminação. O amor e busca pela felicidade estão no âmago dos principais sistemas filosóficos. A vida boa é construída pelo direito de busca da própria felicidade.

A história da civilização é o repositório da suplantação dos preconceitos e celebre se tornou a frase de um soldado americano, na década de setenta, herói de guerra, que ao proclamar a sua preferência sexual, assinalou que por matar dois homens recebeu uma medalha e por amar apenas um, foi expulso das fileiras do exército. 


Não há como se pretender nadar contra a correnteza, pois assim caminha parte das pessoas, que como todas têm direito de não sentirem suas próprias almas aprisionadas, cabendo-lhes ainda, o mesmo direito ao conceito de igualdade, liberdade e humanidade.

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