ALTERIDADE
Henriquinho ou
como preferiam alguns, Riquinho, filho da classe intermediária e matriculado no
ensino médio, com louvor nas provas escolares, resolveu abandonar os estudos,
apesar de toda a contrariedade familiar. No entanto, jamais deixou de cumprir
com seus deveres paroquiais, comparecendo a todas as celebrações dominicais e
participando da organização dos encontros de casais que ocorriam na matriz.
Diziam naquele paroquiato que ele guardava um segredo a sete chaves, mas que
havia perdido uma delas e não muito distante estava de se tornar um verdadeiro
homem-bomba. Isso era rebatido, sem dó nem piedade, com relação às más línguas,
pelo vigário-geral Monsenhor Castellucci, um dos fundadores do culto cristão
naquele local e que lá estava comparecendo com assiduidade. Ocorre que para
isso quase ninguém ligava pois não passava, segundo voz corrente, de intriga da
oposição, já que o esbelto sempre andava em boas companhias.
Chavequeiro-mor,
galanteador apaixonado, exímio conquistador, eram essas apenas uma parte dos
adjetivos maliciosos a ele atribuídos por uma parcela menor dos membros daquela
sociedade, a qual sequer executava, segundo a freqüência repetitiva dos fieis
mais herméticos, uma décima parte da atividade laboral de Henriquinho, efebo
dedicado e probo que sempre enxergava a vida com bons olhos. Ainda mais, tendo
largado a justeza de suas atividades preparatórias na escola municipal para
dedicar-se inteiramente à religiosidade. Circunspecto algumas vezes e por
outras mais solícito do que qualquer carola por vocação, o moço e cultor das
atividades eclesiásticas permanecia, segundo alguns superiores, firme na
prática da justiça e no temor a Deus. Consoante outros, apesar da primeira
idéia ligada ao seu nome, esperava tão somente o enriquecimento no terminal
momento de sua vida, onde seria consagrado com
o encontro sublime, divino e
celestial.
Riquinho, jovial
e alegre segundo disparava a liga solidária composta por jovens senhoras
beatas, verdadeiras ratas de sacristia, era a imagem da fidelidade cristã, algo
que já não muito se avistava por aquelas bandas, daí a sua preciosidade como
mancebo dos mais religiosos naquelas quebradas. Ele era, segundo inconfidências
de um ou outro titular de confessionário, em momentos de admiração por sua
postura, único e indissoluto e seu cotidiano revelava uma alma toda ela
composta e animada com a prosa espiritual.
Certo dia, sem
ninguém supor ou esperar, um fato houve que surpreendeu aquela comunidade
cristã. Aconteceu de uma mulher muito bela, chamada Sallomé, fiel ao marido e
devota ao Senhor das Alturas, ter desaparecido após apaixonar-se perdidamente
por aquele rapaz púbere e casadoiro, estimado por muitos e não tão admirado por
alguns. Tal revelação se deu por conta de que Riquinho havia sumido naquele
mesmo espaço temporal. A polícia alertada que foi, começou as investigações
ouvindo depoimentos e ameaçando aquela congregação, caso revelações fossem
segredadas em decorrência da alegada crença na religião. O vigário, franciscano
que já tinha sido, constrangido segundo aventava-se com todos aqueles fatos
ocorridos por debaixo de suas barbas, raspadas desde muito, também havia
viajado além-mar para uma solenidade pública programada pela Cúria Romana.
Todavia, algum padre confidente, incrédulo a certos dogmas, e amedrontado com
todos aqueles fatos, revelou segredos de ofício diante das intimações
policiais, apesar de ilegais. E foi assim que se descobriu o sonho acalorado
daquela jovem consorte e temente ao Criador, mas que sucumbiu aos atributos
físicos da natureza. E ela havia se ido também, por longo tempo, mas retornou
chorosa e ainda aflita por não ter conseguido encontrar-se com seu futuro
amásio. Depois de muitos interrogatórios policiais e cristãos, revelou que sua
decepção prendia-se ao fato de que após esperar Henriquinho, sem sucesso, só
veio a mirá-lo bem depois, quando partiu de Florença e chegando a Veneza o
conseguiu avistar a bordo de uma gôndola. E qual não foi a sua surpresa, apesar
de toda a neblina daquele momento, quando identificou navegando juntos, ao cair
da tarde, Henriquinho e o vigário-geral, como que em sussurros auriculares
incessantes, tal e qual duas andorinhas nas vésperas da primavera.
Nunca mais
naquele lugarejo perdido ao pé das montanhas, de onde partiram para viver mundo
afora, se ouviu falar deles. Conta a lenda que estão alegres e sorridentes até
hoje na Itália onde conquistaram o direito à felicidade, contra a qual nada se
poderá impor, em conseqüência do reconhecimento à diversidade e alteridade, bem
como de interpretações oriundas da norma constitucional que lhes servem como
garantia. Mesmo porque em se tratando de solteiros e sem família anteriormente
derivada, não há como se colocar qualquer obstáculo, por menor que seja, a seus
desígnios. A propósito sempre foi invocado que os ditos populares são os mais
sábios e de aplicação geral. Daí se afirmar, conforme o adágio: cada um por si
e Deus por todos. E não seremos nós a realizar julgamentos condenatórios,
independente de qualquer opinião que venhamos a considerar em nosso íntimo como
a mais correta. Importante é que não nos alcemos à condição inatingível de
próceres da verdade.
As aproximações
abrangidas pela homoafetividade são fatos lícitos e se relacionam à vida
privada de cada um. Cabe pois, ao Estado estabelecer o respeito à diversidade e
incentivar a tolerância, como forma de se aplacar ações ilícitas e violentas,
concorrendo desta forma para afastar o preconceito e a discriminação. O amor e
busca pela felicidade estão no âmago dos principais sistemas filosóficos. A
vida boa é construída pelo direito de busca da própria felicidade.
A história da
civilização é o repositório da suplantação dos preconceitos e celebre se tornou
a frase de um soldado americano, na década de setenta, herói de guerra, que ao
proclamar a sua preferência sexual, assinalou que por matar dois homens recebeu
uma medalha e por amar apenas um, foi expulso das fileiras do exército.
Não há como se
pretender nadar contra a correnteza, pois assim caminha parte das pessoas, que
como todas têm direito de não sentirem suas próprias almas aprisionadas,
cabendo-lhes ainda, o mesmo direito ao conceito de igualdade, liberdade e
humanidade.
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