quarta-feira, 11 de novembro de 2015

ATÉ A ÚLTIMA GOTA - Crônica de Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)

ATÉ A ÚLTIMA GOTA

O suor escorre entre os seios enquanto apanho caderno e caneta para tentar avivar minha memória. São duas da tarde e estou sentada sobre a minha cama. Ontem o gato do meu filho, trazido para casa contra a minha vontade, fez coco neste mesmo lugar. A primeira reação do rapaz foi rir, depois, trouxe o animal e encostou-lhe o focinho na sujeira com uma violência que me fez tremer de medo.

Leandro sempre me assustou com as chegadas intempestivas e os gritos de ameaça. Eu mal respondia, não sabia como agir com ele. Passou a me agredir com tapas e eu continuei desorientada. O dia em que o convidei para ir ao psiquiatra, ele se encaminhou para a cozinha como se não tivesse ouvido, voltou com um copo cheio de água e me jogou no rosto. São raros os dias em que ele não me joga água e não me bate, mas eu faço terapia e tomo medicação.

O gato se enrosca na minha perna. Eu grito de horror. Ele deixa o meu quarto e aproveito para fechar a porta. Odeio pelos, penas, escamas.

Várias vezes tentei ajuda dos meus irmãos, dos meus pais sobre a violência do meu filho. Eles se olham de relance e, afetando preocupação, afirmam que isso não pode continuar. No vidro da porta de entrada do apartamento, por dois anos vi a imagem de uma espécie de índio de feições delicadas. Nos meses de férias de verão estive fora e esqueci dele. Largo a caneta e vou às pressas conferir se ele está lá. Não me abandonou. Ou os remédios não fazem efeito, ou tenho um ser que me protege.

É um dia quente de março e comenta-se que vai esquentar muito mais. O calor desenha figuras nas paredes e no chão. As figuras me tratam como criança: fazem caretas assustadoras ou cômicas. Peço socorro para a minha mãe pelo telefone e ela me pergunta se eu não contei isso para o médico. É claro. Acho que é por isso que ele prescreve tantos remédios.

A agonia de um miado me chama para a área de serviço. O chão está vermelho. Do spot de luz, pende o gato por um cordão de nylon, a língua de fora, os olhos esbugalhados.

A voz empostada de Leandro, entre rindo e querendo assustar, anuncia: a próxima poderá ser você!


Volto para o meu caderno onde escrevi estes segredos e continuarei escrevendo até a última gota, quando serei carregada nos braços do meu índio protetor.

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