ATÉ A ÚLTIMA GOTA
O suor escorre entre os seios enquanto
apanho caderno e caneta para tentar avivar minha memória. São duas da tarde e
estou sentada sobre a minha cama. Ontem o gato do meu filho, trazido para casa
contra a minha vontade, fez coco neste mesmo lugar. A primeira reação do rapaz
foi rir, depois, trouxe o animal e encostou-lhe o focinho na sujeira com uma
violência que me fez tremer de medo.
Leandro sempre me assustou com as
chegadas intempestivas e os gritos de ameaça. Eu mal respondia, não sabia como
agir com ele. Passou a me agredir com tapas e eu continuei desorientada. O dia
em que o convidei para ir ao psiquiatra, ele se encaminhou para a cozinha como
se não tivesse ouvido, voltou com um copo cheio de água e me jogou no rosto.
São raros os dias em que ele não me joga água e não me bate, mas eu faço terapia
e tomo medicação.
O gato se enrosca na minha perna. Eu
grito de horror. Ele deixa o meu quarto e aproveito para fechar a porta. Odeio
pelos, penas, escamas.
Várias vezes tentei ajuda dos meus
irmãos, dos meus pais sobre a violência do meu filho. Eles se olham de relance
e, afetando preocupação, afirmam que isso não pode continuar. No vidro da porta
de entrada do apartamento, por dois anos vi a imagem de uma espécie de índio de
feições delicadas. Nos meses de férias de verão estive fora e esqueci dele. Largo
a caneta e vou às pressas conferir se ele está lá. Não me abandonou. Ou os
remédios não fazem efeito, ou tenho um ser que me protege.
É um dia quente de março e comenta-se
que vai esquentar muito mais. O calor desenha figuras nas paredes e no chão. As
figuras me tratam como criança: fazem caretas assustadoras ou cômicas. Peço
socorro para a minha mãe pelo telefone e ela me pergunta se eu não contei isso
para o médico. É claro. Acho que é por isso que ele prescreve tantos remédios.
A agonia de um miado me chama para a
área de serviço. O chão está vermelho. Do spot de luz, pende o gato por um
cordão de nylon, a língua de fora, os olhos esbugalhados.
A voz empostada de Leandro, entre rindo
e querendo assustar, anuncia: a próxima poderá ser você!
Volto para o meu caderno onde escrevi
estes segredos e continuarei escrevendo até a última gota, quando serei
carregada nos braços do meu índio protetor.
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