EM TROCA
Um solzinho invernoso mal aquecia o interior
do carro naquela manhã gelada. Foi quando a vi, uma figura apressada e frágil,
de ombros arqueados. Parecia mais um risco desenhado contra a luz filtrada por entre
as árvores do estacionamento. Atravessou
o pátio e foi em direção a porta principal. Segurava o estômago com uma das
mãos e disfarçava o gesto com a bolsa que levava a tiracolo.
Quase na entrada
do prédio, gesticulou como quem organiza a fala e se convence de que está
pronta para qualquer confronto, mas, se alguém a observasse melhor veria que
estava visivelmente abalada. Fiquei imaginando a luta interior e que narrativa
a traria ali.
Determinada, foi
na direção dos corredores laterais, desviando de um e de outro sem olhar nos
olhos dos passantes, não queria distrair-se, pensei, nada deveria interromper o
ritmo de seus argumentos, nem fazê-la perder tempo. Engolia com esforço, e na
boca seca só aquela eterna ardência que subia e descia sem lhe dar trégua, como
o rastro queimado das palavras não ditas. Dobrou mais um corredor, avistou a
placa indicativa e um leve tremor a percorreu. Quis voltar, mas apenas diminuiu
o andar e, para disfarçar a indecisão, olhou o relógio. Em cima da hora.
Dirigiu-se ao balcão e entregou a carteirinha de controle. Ao ultrapassar a
porta, leu o painel de informações como se alguém pudesse se perder depois de
já ter passado por aqueles caminhos. Preparou-se. Como das outras e de tantas
outras vezes, o médico veio ao seu encontro e ela, exaurida, sem nenhuma
palavra, foi.
Do lado de fora,
no estacionamento do
hospital, o solzinho invernoso aquecia-me dentro do carro.
Inquieta, voltei ao estacionamento para
procurar a mulher que avistei outro dia por entre as árvores. Ela rondava meus
pensamentos. Saí do carro e o vento frio ardeu-me nos olhos, coloquei os óculos
de sol e mais protegida a procurei. Foi quando a vi novamente.
Com a fisionomia ainda cansada, sem nada nas
mãos, desceu do ônibus, caminhou em direção ao hospital e sentou-se no único
banco da ala lateral perto da entrada.
Apoiou a cabeça como quem busca, na pressa do dia, um breve conforto.
Com o sol no rosto, por alguns instantes manteve os olhos fechados e os dedos
frouxos, por dentro dos bolsos do velho casaco de lã. No breve cochilo, sonhou.
Estava em um avião de luxo que atravessava o oceano, deixando para trás um
amontoado de corpos boiando abandonados. Dentro da aeronave somente ela e
roupas atiradas sobre os assentos, como se todas as pessoas tivessem evaporado.
A sirene de uma ambulância chegando, tirou-a dali. Levantou-se e foi em direção
ao quarto que ocupava em alguns dias da semana.
A pequena parada
no banco, não a aliviou em nada, mesmo assim seguiu adiante. Mentalmente
repetia: coragem e paciência, coragem e paciência... Paciência! – era apenas um
joguinho de menos valia que avó usava para entreter a velhice – mas essas não
eram as cartas que aqui jogavam com ela.
A pouca luminosidade
do quarto, deixava as paredes sombrias e o frio seco do dia disfarçava o leve
cheiro de mofo misturado com antisséptico. Entrou, precisava. Retirou os
sapatos e o chão gelado agarrou-a pela sola dos pés prendendo-a ali sem tempo
marcado. Colocou os chinelos. Bem que poderia voltar ao banco e retomar o
cochilo e o voo, pensou. Mudou a roupa devagar, enquanto observava a cama. Os
lençóis limpos e os aparelhos ligados. Ela conhecia de cor os procedimentos e,
por isso, deitou e esperou.
A medicação e o
soro com sequência programada diluíam-se, sucessivamente, em pingos. Nos
intervalos deles, outros pingotes mais leves e mais rápidos preenchiam todos os
espaços de silêncio, entupindo-lhe o corpo. Como navalhas afiadas arrancavam-lhe
tonturas, dores e enjoos. Pele e osso, só para chegar ao último refúgio da
pulsão de vida. Por mais um tempo.
O médico bem que
a preveniu, mas não entendeu direito ou negou, a princípio, a dimensão de tudo
aquilo. Agora sabia, e mais uma vez, como das outras e de tantas outras vezes o
médico veio e ela, exaurida, sem nenhuma palavra, novamente foi.
O que eu via ali
era maior que minhas palavras. Só para lhe fazer companhia, discretamente,
entrei no quarto. Não queria perdê-la, mas ela nem me notou.
Havia esquecido
que os personagens que habitam nossas narrativas não nos pertencem. Nada mais
são do que fantasmas descolados de outro lugar, que saltam ao acaso, rompendo
com o cotidiano.
“Fatos
despojados de preparação
, às vezes,
saltam sobre nós
e nos agarram em troca de uma narrativa”.
Julio Cortázar
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