sexta-feira, 13 de novembro de 2015

EM TROCA - Conto de Gilka Coimbra (Uruguaiana, RS)

EM TROCA
                                                                      
 Um solzinho invernoso mal aquecia o interior do carro naquela manhã gelada. Foi quando a vi, uma figura apressada e frágil, de ombros arqueados. Parecia mais um risco desenhado contra a luz filtrada por entre as árvores do estacionamento.  Atravessou o pátio e foi em direção a porta principal. Segurava o estômago com uma das mãos e disfarçava o gesto com a bolsa que levava a tiracolo.

Quase na entrada do prédio, gesticulou como quem organiza a fala e se convence de que está pronta para qualquer confronto, mas, se alguém a observasse melhor veria que estava visivelmente abalada. Fiquei imaginando a luta interior e que narrativa a traria ali.

Determinada, foi na direção dos corredores laterais, desviando de um e de outro sem olhar nos olhos dos passantes, não queria distrair-se, pensei, nada deveria interromper o ritmo de seus argumentos, nem fazê-la perder tempo. Engolia com esforço, e na boca seca só aquela eterna ardência que subia e descia sem lhe dar trégua, como o rastro queimado das palavras não ditas. Dobrou mais um corredor, avistou a placa indicativa e um leve tremor a percorreu. Quis voltar, mas apenas diminuiu o andar e, para disfarçar a indecisão, olhou o relógio. Em cima da hora. Dirigiu-se ao balcão e entregou a carteirinha de controle. Ao ultrapassar a porta, leu o painel de informações como se alguém pudesse se perder depois de já ter passado por aqueles caminhos. Preparou-se. Como das outras e de tantas outras vezes, o médico veio ao seu encontro e ela, exaurida, sem nenhuma palavra, foi.             

Do lado de fora, no estacionamento do
hospital, o solzinho invernoso aquecia-me dentro do carro.

 Inquieta, voltei ao estacionamento para procurar a mulher que avistei outro dia por entre as árvores. Ela rondava meus pensamentos. Saí do carro e o vento frio ardeu-me nos olhos, coloquei os óculos de sol e mais protegida a procurei. Foi quando a vi novamente.

 Com a fisionomia ainda cansada, sem nada nas mãos, desceu do ônibus, caminhou em direção ao hospital e sentou-se no único banco da ala lateral perto da entrada.  Apoiou a cabeça como quem busca, na pressa do dia, um breve conforto. Com o sol no rosto, por alguns instantes manteve os olhos fechados e os dedos frouxos, por dentro dos bolsos do velho casaco de lã. No breve cochilo, sonhou. Estava em um avião de luxo que atravessava o oceano, deixando para trás um amontoado de corpos boiando abandonados. Dentro da aeronave somente ela e roupas atiradas sobre os assentos, como se todas as pessoas tivessem evaporado. A sirene de uma ambulância chegando, tirou-a dali. Levantou-se e foi em direção ao quarto que ocupava em alguns dias da semana.

A pequena parada no banco, não a aliviou em nada, mesmo assim seguiu adiante. Mentalmente repetia: coragem e paciência, coragem e paciência... Paciência! – era apenas um joguinho de menos valia que avó usava para entreter a velhice – mas essas não eram as cartas que aqui jogavam com ela.

A pouca luminosidade do quarto, deixava as paredes sombrias e o frio seco do dia disfarçava o leve cheiro de mofo misturado com antisséptico. Entrou, precisava. Retirou os sapatos e o chão gelado agarrou-a pela sola dos pés prendendo-a ali sem tempo marcado. Colocou os chinelos. Bem que poderia voltar ao banco e retomar o cochilo e o voo, pensou. Mudou a roupa devagar, enquanto observava a cama. Os lençóis limpos e os aparelhos ligados. Ela conhecia de cor os procedimentos e, por isso, deitou e esperou.

A medicação e o soro com sequência programada diluíam-se, sucessivamente, em pingos. Nos intervalos deles, outros pingotes mais leves e mais rápidos preenchiam todos os espaços de silêncio, entupindo-lhe o corpo. Como navalhas afiadas arrancavam-lhe tonturas, dores e enjoos. Pele e osso, só para chegar ao último refúgio da pulsão de vida.  Por mais um tempo.

O médico bem que a preveniu, mas não entendeu direito ou negou, a princípio, a dimensão de tudo aquilo. Agora sabia, e mais uma vez, como das outras e de tantas outras vezes o médico veio e ela, exaurida, sem nenhuma palavra, novamente foi.

O que eu via ali era maior que minhas palavras. Só para lhe fazer companhia, discretamente, entrei no quarto. Não queria perdê-la, mas ela nem me notou.

Havia esquecido que os personagens que habitam nossas narrativas não nos pertencem. Nada mais são do que fantasmas descolados de outro lugar, que saltam ao acaso, rompendo com o cotidiano.


“Fatos despojados de preparação
, às vezes, saltam sobre nós
 e nos agarram em troca de uma narrativa”.

                        Julio Cortázar

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