MEIA-NOITE
Como era manso o
meu cavalo! O patrão sempre se admirou do jeito que eu tratava com ele. Não só
de pegar em qualquer lugar que eu quisesse, mas pelos truques que lhe ensinara,
como deitar ao lado da cerca e permitir que eu o puxasse pela cabeça e pela
cola, arrastando-o para fazê-lo passar por baixo do arame, o que me dava uma
grande vantagem algumas vezes, não precisando andar maiores distâncias para
achar uma porteira, passando rapidamente uma divisão de campo em caso de
urgência.
E outros
truques, que só eu sabia e nunca mostrei a ninguém. Mas meu cavalo não se
negava de pegar em campo aberto, de dia, ou de noite, que eu o amansara muito
bem da minha presença, com mimos especiais de gulodices, sal e açúcar.
Se eu gostava do
meu cavalo? Claro que sim!... Bueno! A princípio, nem tanto; mas quando vi que
ele se amansava e me podia dar vantagens que outros não tinham, aos poucos fui
me afeiçoando, até criar um verdadeiro amor por meu parceiro. Ninguém me daria
o que meu cavalo me podia dar.
Parece exagero?
Bueno... Eu podia levantar na madrugada sem ninguém notar, chegar até ele, onde
estivesse, e, de em pelo e sem freio, montar e tomar meu rumo; passar em
qualquer cerca para chegar aonde outros não chegavam. E na volta da empreitada,
em lugares desconhecidos, podia pegar meu pingo num potreiro escuro com a maior
facilidade e no maior silêncio chegar até minha cama, de volta à estância. Eu o
fiz assim. Para minhas noites de escapadas. Não por acaso o chamei de
Meia-noite.
O amigo me vê
aqui sentado, como um pobre velho, fumando meu palheiro em silêncio, tomando
meu mate, engraxando as minhas pilchas como uma posteiro de fundo de campo, e
pensa que eu não tenha tido uma vida boa; que estou enrugado da idade e judiado
da lida; imagina que a sua vida na
cidade tenha tido mais mistérios do que o
meu viver sem surpresas.
Quer saber?
A estância do
coronel Benício, ali do outro lado do corredor da estrada real, apesar das
muitas quadras de campo que tinha, ficava muito perto desta estância do meu
patrão, aqui, de testa uma para a outra. Meia légua apenas. A gente pode ver o
arvoredo se escondendo do outro lado da coxilha e podia enxergar a ponta da
torre do cata-vento que havia antes da luz elétrica chegar ao campo.
Eu estou nesta
estância desde pequeno. Nunca saí daqui. Me criei aqui: meu pai era o capataz,
e eu cresci aprendendo o ofício.
Domingo era dia
de passear. Meu pai encilhava cavalo e ia visitar o capataz do seu Benício,
falar de carreiras, combinar reculutas, na mistura de lazer e de trabalho de
que se revestiam suas vidas desde que me conheço por gente, que no campo é
assim. Eu ia com ele, batendo estribo no petiço.
As visitas à
estância podiam ser muito compridas. Muitas cuias de mate, algum trago de canha
sem alardear para os patrões, nem para os outros peões. Churrasco ao meio-dia,
depois a sesta, que, se a canha era boa, às vezes os dois companheiros se
passavam, dormindo um bom sono.
Você sabe que
criança é diferente. Eu rolava um pouco nos pelegos dos arreios e dali a pouco
levantava, impaciente de permanecer deitado enquanto tanta vida havia pelos
pátios. Deixava a cama, levantava os pelegos para o cavalete, prontos para
encilhar na metade da tarde, quando íamos embora para nossa casa. Curioseava
bastante em roda. Descobria ninhos de galinhas, perseguia lagartos, dava um
vistaço pela cozinha onde as empregadas limpavam a chapa do fogão de ferro e
lavavam o piso das áreas de serviço enquanto os patrões estavam longe,
preparando a casa para o dia seguinte, que tudo ali era muito limpo e cuidado.
Gente tinha
bastante. Cozinheira, copeira, faxineira, e algum pessoal de “achego” vindo da
cidade nos fins de semana.
O coronel sempre
viveu ali, com a família. Estância grande, com bastante cômodo, muita criadagem
a facilitar a vida... Movimento na casa grande... Mas a gente da casa, na
Campanha, por um lado, é o mesmo que a gente dos galpões; o patrão também
encurtava os longos dias de verão com os olhos fechados em sua cama, no quarto
de postigos cerrados. Mas... Eu desconfio que ele e a sua mulher tinham uma
vida bastante ativa no seu quarto. Foi uma coisa que sempre me pareceu...
Compridas as sestas do casal!... E o povo da cozinha das estâncias, se não tem
compromisso de casal, sempre anda meio enredado com os peões solteiros.
Dependendo da
confiança que têm entre elas, as mulheres disfarçam seus casos, ou se prestam a
encobrir as escapadas umas das outras nessas horas em que as pestanas grudam.
Um dia olhei por uma janela e vi o caseiro atracado atrás da porta com uma das
criadas. O vestido erguido quase até a cintura deixava ver as coxas se mexendo
no compasso das cadeiras rebolando enquanto o xiru fungava no pescoço da
mulata.
Foi a primeira
vez que vi uma coxa nua de mulher. Olhei um pouco mais e, antes que me
descobrissem, me larguei dali sem fazer ruído. Eles ficaram lá... Mas desse dia
em diante acendeu em mim a curiosidade do sexo, e sempre que podia, na hora da
sesta na estância do coronel Benício eu dava uma passada perto da cozinha,
apesar de nunca mais ter visto outra vez uma cena como aquela.
Nos galpões é
tudo sempre igual, mas nas casas de moradia dos patrões nessas estâncias
grandes esse pessoal rico é mais agitado quando tem movimento, e em dias de
visitas meio se perdem no controle das coisas. Uma vez apareceu uma gente da
cidade na estância do seu Benício. Era uma comemoração de aniversário, pelo que
soube. Tinha gente de toda idade: velhos, adultos, crianças e jovens.
Quando os mais
velhos foram sestear depois de tomar muita cerveja, um casal de namorados
permaneceu sentado num balanço do jardim. E a gurizada, solta. Fiz camaradagem
com uns guris e na hora da sesta me acompanharam na exploração dos arredores
dos pátios, onde eu era vaquiano.
Havia duas
meninas também no grupo; uma delas, a filha pequena do coronel Benício, mais ou
menos da minha idade; a outra, eu nunca tinha visto antes. Então, não pude me
exibir de mostrar aos meninos a passagem pela janela da cozinha, mas contei o
que vira e os deixei com os olhos grandes de excitação mostrando, de longe, a
mulata que transara atrás da porta. Assim, quando saí a caminhar nos arredores,
nem todos me seguiram, preferindo, os guris, permanecer perto da área de
serviço, chocando com os olhos as coxas da mulata debaixo do vestido, a
imaginar a cena.
As meninas não
sabiam o que os entretinha no pátio. Depois de reclamarem uma ou duas vezes a
presença deles me seguiram. E foi assim, em grupo reduzido, fazendo um silêncio
bem recomendado de não espantar os lagartos que se esperavam ver no calor da
tarde, que ouvimos um ruído abafado, resfolegante, vindo de trás de uma
reboleira de plantas do um canto afastado do enorme jardim. Curiosos, chegamos
até lá por baixo da sombra da copada grande de uma cana-fístula muito antiga.
Ao longe, sem ninguém a vista, o balanço do jardim estava parado no ar morno da
sesta; e ali, no encoberto pelas plantas e longe o suficiente das casas para
que ninguém ouvisse os gemidos, o casal de namorados estava atracado no coito.
Foi curioso:
ficamos agachados, em silêncio, acompanhando a ação dos dois por trás das ramas
tupidas do arbusto florido. Outras coxas, agora brancas, na coleção do meu aprendizado,
hipnotizavam as duas meninas boquiabertas, tão surpresas quanto eu.
Não sei a que
tempo eles estavam ali, porque não demoraram muito. Assistimos se recomporem,
com o rapaz em pé abotoando a roupa e a moça erguendo as calcinhas pelas pernas
brancas antes de espanar a saia com as mãos para retirar os fios de pasto seco.
Depois de eles se esgueirarem disfarçadamente pelo entorno do cercado para
voltarem à frente do jardim, a menina estranha, tão logo se sentiu segura, saiu
correndo para dentro de casa. Mas a filha do coronel ficou ainda comigo, mudos
os dois.
Não sei dizer tampouco
quanto tempo ficamos nós ali até ouvir vozes no movimento das pessoas
levantando da sesta. Lembro os olhos vivos da menina cravados em mim,
excitados, enquanto eu fixava neles os meus castanhos. Lembro a pele branca das
coxas descobertas com o vestido resvalando por elas acima da cintura, a exemplo
do que víramos que a mocinha fizera, e da calcinha abaixada para os tornozelos
deixando à vista o que ela tinha entre as pernas. E, mudos ainda, obedeci ao
que ela me pedia sem dizer palavra, mostrando o que eu tinha, em contraponto.
De repente veio
uma mulher que eu não conhecia e atropelou atrás da moita onde nós estávamos.
Me deu um corridão e ergueu a menina por um braço levando-a aos tirões para a
casa. Meu pai me deu uma tunda de laço e uma “rasqueteada” bem dada. Acho que
isso era parte de uma exigência feita a ele, não sei, porque eu não sabia e nem
achava que tivesse feito nada de mal. E a sova que meu pai me deu não apagou na
minha cabeça as visões das coisas que descobri na estância do coronel Benício.
Nunca mais
voltamos à estância do coronel aos domingos e nunca mais se falou sobre isso.
Pois é!... Tanto
tempo!...
E o meu cavalo?
O que é que tem com isso? Nesse tempo ele nem tinha nascido!
Cresci, botei
corpo exercitado no serviço, aprendi o ofício de peão e domador. Domei cavalos
de tudo que é jeito, e um dia encontrei o Meia-noite, que aprendia tudo que eu
queria.
O capataz do
coronel Benício veio nos visitar. Envelhecido da lida, calmo, falando com esse
olhar distante dos homens do campo que disfarçam as intenções de contar coisas
graves ao acaso, como se não tivessem importância.
“A patroa,
mulher do coronel, tinha morrido... O coronel estava muito velho... A filha era
quem cuidava dele agora... É!... Veio da cidade pra ficar na estância... É, é
solteira... Moça ainda, bem ajeitada, mas não casou... É ela quem comanda a
casa e a criadagem; quem fecha a última porta e põe as trancas... Mas se perde
às vezes, passeando à noite pelos arredores... Meio sonâmbula, parece...
Vestida de camisola, como pra dormir, parece um vulto dentro da noite... Deus
me livre, não é por mal, mas parece um fantasma!... Não mal comparando, parece
que anda em busca da finada!”
Naquele tempo as
pessoas não aprendiam muito; estudavam pouco, eram muito crédulas e se entregavam
a todo tipo de superstição, revestindo as coisas de mistérios. Mas havia um
dito em que eu acreditava: “Assombração, ou é ‘cavação’, ou é roubo”. Quando
alguém quer manter outras pessoas afastadas inventa uma assombração. Gostei da
minha própria ideia e aproveitei a oportunidade, metendo na cabeça do homem
velho umas histórias de finados que voltavam para rever os parentes vivos.
Nessa noite
inaugurei meu sistema de andar atoa, oculto dos olhares da minha gente. Peguei
meu cavalo, atravessei o corredor da estrada real e entrei nos campos do
coronel Benício. E fui, de novo, na noite seguinte, e na outra, até enxergar o
vulto da camisola clara cobrindo um corpo esguio, a deslizar, andando no
jardim.
Meia-noite. Meu
cavalo solto, para pastar a vontade, fui entrando pelos pátios devagar,
costeando as construções dos empregados, cruzando pela janela da cozinha onde
tivera minha primeira visão sensual e, ouvido atento, certificando que não
havia mais ninguém por perto, ou mesmo acordado, cheguei ao jardim, no costado
da casa grande.
Já faz muito
tempo... Passaram os anos... Mas por aqui se diz que a finada é quem passeia
pelo jardim à noite vestindo a camisola branca que às vezes parece pendurada
nos galhos da cana-fístula, embalada com a brisa.
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