quarta-feira, 11 de novembro de 2015

MEIA-NOITE - Conto de Ricardo Pereira Duarte (Uruguaiana, RS)

MEIA-NOITE


Como era manso o meu cavalo! O patrão sempre se admirou do jeito que eu tratava com ele. Não só de pegar em qualquer lugar que eu quisesse, mas pelos truques que lhe ensinara, como deitar ao lado da cerca e permitir que eu o puxasse pela cabeça e pela cola, arrastando-o para fazê-lo passar por baixo do arame, o que me dava uma grande vantagem algumas vezes, não precisando andar maiores distâncias para achar uma porteira, passando rapidamente uma divisão de campo em caso de urgência.

E outros truques, que só eu sabia e nunca mostrei a ninguém. Mas meu cavalo não se negava de pegar em campo aberto, de dia, ou de noite, que eu o amansara muito bem da minha presença, com mimos especiais de gulodices, sal e açúcar.

Se eu gostava do meu cavalo? Claro que sim!... Bueno! A princípio, nem tanto; mas quando vi que ele se amansava e me podia dar vantagens que outros não tinham, aos poucos fui me afeiçoando, até criar um verdadeiro amor por meu parceiro. Ninguém me daria o que meu cavalo me podia dar.

Parece exagero? Bueno... Eu podia levantar na madrugada sem ninguém notar, chegar até ele, onde estivesse, e, de em pelo e sem freio, montar e tomar meu rumo; passar em qualquer cerca para chegar aonde outros não chegavam. E na volta da empreitada, em lugares desconhecidos, podia pegar meu pingo num potreiro escuro com a maior facilidade e no maior silêncio chegar até minha cama, de volta à estância. Eu o fiz assim. Para minhas noites de escapadas. Não por acaso o chamei de Meia-noite.

O amigo me vê aqui sentado, como um pobre velho, fumando meu palheiro em silêncio, tomando meu mate, engraxando as minhas pilchas como uma posteiro de fundo de campo, e pensa que eu não tenha tido uma vida boa; que estou enrugado da idade e judiado da lida; imagina que a sua vida na
cidade tenha tido mais mistérios do que o meu viver sem surpresas.

Quer saber?

A estância do coronel Benício, ali do outro lado do corredor da estrada real, apesar das muitas quadras de campo que tinha, ficava muito perto desta estância do meu patrão, aqui, de testa uma para a outra. Meia légua apenas. A gente pode ver o arvoredo se escondendo do outro lado da coxilha e podia enxergar a ponta da torre do cata-vento que havia antes da luz elétrica chegar ao campo.

Eu estou nesta estância desde pequeno. Nunca saí daqui. Me criei aqui: meu pai era o capataz, e eu cresci aprendendo o ofício.

Domingo era dia de passear. Meu pai encilhava cavalo e ia visitar o capataz do seu Benício, falar de carreiras, combinar reculutas, na mistura de lazer e de trabalho de que se revestiam suas vidas desde que me conheço por gente, que no campo é assim. Eu ia com ele, batendo estribo no petiço.

As visitas à estância podiam ser muito compridas. Muitas cuias de mate, algum trago de canha sem alardear para os patrões, nem para os outros peões. Churrasco ao meio-dia, depois a sesta, que, se a canha era boa, às vezes os dois companheiros se passavam, dormindo um bom sono.

Você sabe que criança é diferente. Eu rolava um pouco nos pelegos dos arreios e dali a pouco levantava, impaciente de permanecer deitado enquanto tanta vida havia pelos pátios. Deixava a cama, levantava os pelegos para o cavalete, prontos para encilhar na metade da tarde, quando íamos embora para nossa casa. Curioseava bastante em roda. Descobria ninhos de galinhas, perseguia lagartos, dava um vistaço pela cozinha onde as empregadas limpavam a chapa do fogão de ferro e lavavam o piso das áreas de serviço enquanto os patrões estavam longe, preparando a casa para o dia seguinte, que tudo ali era muito limpo e cuidado.

Gente tinha bastante. Cozinheira, copeira, faxineira, e algum pessoal de “achego” vindo da cidade nos fins de semana.

O coronel sempre viveu ali, com a família. Estância grande, com bastante cômodo, muita criadagem a facilitar a vida... Movimento na casa grande... Mas a gente da casa, na Campanha, por um lado, é o mesmo que a gente dos galpões; o patrão também encurtava os longos dias de verão com os olhos fechados em sua cama, no quarto de postigos cerrados. Mas... Eu desconfio que ele e a sua mulher tinham uma vida bastante ativa no seu quarto. Foi uma coisa que sempre me pareceu... Compridas as sestas do casal!... E o povo da cozinha das estâncias, se não tem compromisso de casal, sempre anda meio enredado com os peões solteiros.

Dependendo da confiança que têm entre elas, as mulheres disfarçam seus casos, ou se prestam a encobrir as escapadas umas das outras nessas horas em que as pestanas grudam. Um dia olhei por uma janela e vi o caseiro atracado atrás da porta com uma das criadas. O vestido erguido quase até a cintura deixava ver as coxas se mexendo no compasso das cadeiras rebolando enquanto o xiru fungava no pescoço da mulata.

Foi a primeira vez que vi uma coxa nua de mulher. Olhei um pouco mais e, antes que me descobrissem, me larguei dali sem fazer ruído. Eles ficaram lá... Mas desse dia em diante acendeu em mim a curiosidade do sexo, e sempre que podia, na hora da sesta na estância do coronel Benício eu dava uma passada perto da cozinha, apesar de nunca mais ter visto outra vez uma cena como aquela.

Nos galpões é tudo sempre igual, mas nas casas de moradia dos patrões nessas estâncias grandes esse pessoal rico é mais agitado quando tem movimento, e em dias de visitas meio se perdem no controle das coisas. Uma vez apareceu uma gente da cidade na estância do seu Benício. Era uma comemoração de aniversário, pelo que soube. Tinha gente de toda idade: velhos, adultos, crianças e jovens.

Quando os mais velhos foram sestear depois de tomar muita cerveja, um casal de namorados permaneceu sentado num balanço do jardim. E a gurizada, solta. Fiz camaradagem com uns guris e na hora da sesta me acompanharam na exploração dos arredores dos pátios, onde eu era vaquiano.

Havia duas meninas também no grupo; uma delas, a filha pequena do coronel Benício, mais ou menos da minha idade; a outra, eu nunca tinha visto antes. Então, não pude me exibir de mostrar aos meninos a passagem pela janela da cozinha, mas contei o que vira e os deixei com os olhos grandes de excitação mostrando, de longe, a mulata que transara atrás da porta. Assim, quando saí a caminhar nos arredores, nem todos me seguiram, preferindo, os guris, permanecer perto da área de serviço, chocando com os olhos as coxas da mulata debaixo do vestido, a imaginar a cena.

As meninas não sabiam o que os entretinha no pátio. Depois de reclamarem uma ou duas vezes a presença deles me seguiram. E foi assim, em grupo reduzido, fazendo um silêncio bem recomendado de não espantar os lagartos que se esperavam ver no calor da tarde, que ouvimos um ruído abafado, resfolegante, vindo de trás de uma reboleira de plantas do um canto afastado do enorme jardim. Curiosos, chegamos até lá por baixo da sombra da copada grande de uma cana-fístula muito antiga. Ao longe, sem ninguém a vista, o balanço do jardim estava parado no ar morno da sesta; e ali, no encoberto pelas plantas e longe o suficiente das casas para que ninguém ouvisse os gemidos, o casal de namorados estava atracado no coito.

Foi curioso: ficamos agachados, em silêncio, acompanhando a ação dos dois por trás das ramas tupidas do arbusto florido. Outras coxas, agora brancas, na coleção do meu aprendizado, hipnotizavam as duas meninas boquiabertas, tão surpresas quanto eu.

Não sei a que tempo eles estavam ali, porque não demoraram muito. Assistimos se recomporem, com o rapaz em pé abotoando a roupa e a moça erguendo as calcinhas pelas pernas brancas antes de espanar a saia com as mãos para retirar os fios de pasto seco. Depois de eles se esgueirarem disfarçadamente pelo entorno do cercado para voltarem à frente do jardim, a menina estranha, tão logo se sentiu segura, saiu correndo para dentro de casa. Mas a filha do coronel ficou ainda comigo, mudos os dois.

Não sei dizer tampouco quanto tempo ficamos nós ali até ouvir vozes no movimento das pessoas levantando da sesta. Lembro os olhos vivos da menina cravados em mim, excitados, enquanto eu fixava neles os meus castanhos. Lembro a pele branca das coxas descobertas com o vestido resvalando por elas acima da cintura, a exemplo do que víramos que a mocinha fizera, e da calcinha abaixada para os tornozelos deixando à vista o que ela tinha entre as pernas. E, mudos ainda, obedeci ao que ela me pedia sem dizer palavra, mostrando o que eu tinha, em contraponto.

De repente veio uma mulher que eu não conhecia e atropelou atrás da moita onde nós estávamos. Me deu um corridão e ergueu a menina por um braço levando-a aos tirões para a casa. Meu pai me deu uma tunda de laço e uma “rasqueteada” bem dada. Acho que isso era parte de uma exigência feita a ele, não sei, porque eu não sabia e nem achava que tivesse feito nada de mal. E a sova que meu pai me deu não apagou na minha cabeça as visões das coisas que descobri na estância do coronel Benício.

Nunca mais voltamos à estância do coronel aos domingos e nunca mais se falou sobre isso.

Pois é!... Tanto tempo!...

E o meu cavalo? O que é que tem com isso? Nesse tempo ele nem tinha nascido!

Cresci, botei corpo exercitado no serviço, aprendi o ofício de peão e domador. Domei cavalos de tudo que é jeito, e um dia encontrei o Meia-noite, que aprendia tudo que eu queria.

O capataz do coronel Benício veio nos visitar. Envelhecido da lida, calmo, falando com esse olhar distante dos homens do campo que disfarçam as intenções de contar coisas graves ao acaso, como se não tivessem importância.

“A patroa, mulher do coronel, tinha morrido... O coronel estava muito velho... A filha era quem cuidava dele agora... É!... Veio da cidade pra ficar na estância... É, é solteira... Moça ainda, bem ajeitada, mas não casou... É ela quem comanda a casa e a criadagem; quem fecha a última porta e põe as trancas... Mas se perde às vezes, passeando à noite pelos arredores... Meio sonâmbula, parece... Vestida de camisola, como pra dormir, parece um vulto dentro da noite... Deus me livre, não é por mal, mas parece um fantasma!... Não mal comparando, parece que anda em busca da finada!”

Naquele tempo as pessoas não aprendiam muito; estudavam pouco, eram muito crédulas e se entregavam a todo tipo de superstição, revestindo as coisas de mistérios. Mas havia um dito em que eu acreditava: “Assombração, ou é ‘cavação’, ou é roubo”. Quando alguém quer manter outras pessoas afastadas inventa uma assombração. Gostei da minha própria ideia e aproveitei a oportunidade, metendo na cabeça do homem velho umas histórias de finados que voltavam para rever os parentes vivos.

Nessa noite inaugurei meu sistema de andar atoa, oculto dos olhares da minha gente. Peguei meu cavalo, atravessei o corredor da estrada real e entrei nos campos do coronel Benício. E fui, de novo, na noite seguinte, e na outra, até enxergar o vulto da camisola clara cobrindo um corpo esguio, a deslizar, andando no jardim.

Meia-noite. Meu cavalo solto, para pastar a vontade, fui entrando pelos pátios devagar, costeando as construções dos empregados, cruzando pela janela da cozinha onde tivera minha primeira visão sensual e, ouvido atento, certificando que não havia mais ninguém por perto, ou mesmo acordado, cheguei ao jardim, no costado da casa grande.

Já faz muito tempo... Passaram os anos... Mas por aqui se diz que a finada é quem passeia pelo jardim à noite vestindo a camisola branca que às vezes parece pendurada nos galhos da cana-fístula, embalada com a brisa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário