quarta-feira, 11 de novembro de 2015

FLORIANO - Conto de Valéria Surreaux (Uruguaiana, RS)

FLORIANO

Floriano era homem imenso. De ombros largos, voz empostada, cheio de polidez e boas maneiras. Quando estava na cidade, era assíduo frequentador de absolutamente todos os velórios de desconhecidos.  Às últimas homenagens aos conhecidos, ele abdicava, preferindo ficar em seu quarto, nos fundos da casa dos meus avós, bicando uma cachaça ordinária. Fazia questão de usar um português impecável e arcaico e trajar ternos de linho branco e sapatos Bataclã. Aos domingos passeava displicente pelas carreiras de cavalos, gastando todas as patacas de sua parca aposentadoria, e foi lá mesmo que deixou sua sorte, sobrando-lhe do muito que teve, o triste patrimônio de oito hectares de campo duro, um cavalo crioulo e um apêro de prata, fazendo de Marina, minha irmã, sua única herdeira.

Com a perda do campito nas carreiras, a morte do cavalo e o roubo dos arreios, Marina deixou de acreditar na própria sorte, mas não deixou de proteger Floriano dos ataques que sofria da família, que o acolheu por ser sozinho e distantemente aparentado. Não fazia arruaças, mas quando bebia atacava a geladeira e enchia os bolsos de panquecas e bolos de arroz e os escondia n guarda-roupa. A empregada e a família pediam que ele comesse  o que quisesse e a hora que bem entendesse desde que em local apropriado e sem esconder alimentos embaixo dos seus suéteres. Quando o acusavam de estar bebendo muito, Marina defendia seus hábitos atribuindo-os  a alguma deficiência mental, afinal era filho de Leocádio, o homem que só sentava-se à mesa com uma lata de massa de tomate em cada orelha, presas por um arame, dizendo-se o speaker do além. A genealogia de Floriano depunha contra ele.

Quando iam para a estância, levavam Floriano, que se ajeitava pelo galpão. Nada o fazia mudar de ideia, era lá que ele gostava de ficar floreando o português de uma forma tão ostensiva que a peonada só conseguia entendê-lo por intuição. Logo arranjava uns cambichos com as filhas de algum lindeiro e era rapidamente aceito pelas famílias. Tinha conhecimentos significativos de história, geografia e pecuária , e o cuidado de ocultar seus hábitos de prodigalidade e bebedeiras. Meu tio, via em Floriano o alvo certo de diversões sádicas. Sempre que se pilchava a preceito, com
largas bombachas domingueiras, camisa engomada, botas aluminando e montava o pingo a tempo de comer o bolo da tarde com alguma moça, meu tio já havia providenciado algum purgante no mate ou esfregado com antecedência as bombachas em alguma cadela no cio. Os namoros sempre terminavam por caganeiras em horas ingratas e a cuscama que batia, com a libido alterada em suas pernas causando desconfianças na família.

Uma noite Floriano chegou em casa já a meia guampa, olhou sobre o balcão da cozinha um detergente comprado no Buraco. Apertou os olhos, afastando o rótulo para ler com mais nitidez. “Limón” balbuciou.

Marina lendo um livro gritou:
-É detergente, tio.

Ele não ouviu, derramou o conteúdo viscoso no fundo do copo, completou com água causando uma espumarada. Deu um gole.

-Argh!

Abriu o açucareiro a adoçou com uma colher de açúcar.

-Credo, nesse instante encontro-me portador de sintomas inquietantes.

-É detergente, tio.

Mais uma colher e atraca o copo todo.

-Estou desconfiado, sinto-me nauseado o que faz-me crer que este conteúdo possui obscuras funções com efeitos colaterais prodigiosos,  que confundem os sinais vitais. Tenho certeza, marina, sem sombra de dúvidas, que teu tio, mai uma vez, ameaçou minha já tão acinzentada vida.

-É detergente, tio.

-Batráquio, pústula, pérfido, torpe. Aproveita-se de minha tendência de mergulhar estupidamente na confiança humana.


Marina escondeu o detergente. Floriano não se lembrou de nada no dia seguinte. Atribuiu o mal estar aos excessos do clima e continua escondendo pastéis nas gavetas de suas cuecas e tentando recuperar o patrimônio nas carreiras para não perder a admiração da única pessoa que entendia seus delírios.

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