segunda-feira, 21 de setembro de 2015

SEM SANGUE - Conto de Athos Ronaldo Miralha da Cunha (Santa Maria, RS)

SEM SANGUE – o degolador [*]

Sem Sangue chimarreava, pensativo, ao pé do braseiro.
Lembrava, com os olhos fixos no encarnado das brasas, os tempos de combatente. Quando gurizote peleou na Revolução Federalista de 93. Era o ordenança do coronel maragato Adão Latorre. Naquela campanha foram responsáveis por mais de 300 degolas de pica-paus. Naqueles tempos, como dizia a música, “prisioneiro era defunto e se não fosse era exceção”.
Foi num dia muito quente no lugar que ficou denominado como Potreiro das Almas lá para os lados de Bagé. O guri era conhecido pelos rebeldes por João Faz Tudo. Ele que amarrava os prisioneiros deixando pronto para o Adão Latorre. O guri era um mandalete dos maragatos sendo prestativo nas degolas, zombarias e humilhações de pica-paus. Depois de um certo dia, passou a chamar-se João Sem Sangue e, logo em seguida, apenas, Sem Sangue. Na maioria das vezes tinha olhar parado e gestos lentos. Diante de tamanha selvageria no ato da degola Sem Sangue permanecia indiferente. Calmo e frio como se estivesse pitando um palheiro feito a capricho ou salgando uma costela gorda com respingos de salmora. Agia com frieza e com a maior naturalidade, inclusive, quando o primo Juan – do lado chimango e mais castelhano da família – implorou pela vida. Sentindo o calor da adaga de Latorre no pescoço fez sua derradeira solicitação.
– João! A gente pescava junto... a gente era parceiro nas barranqueadas... João pelo amor de Deus e de nossas mãezinhas...
Sem Sangue olhou com indiferença para o primo.
– Pelo amor da puta Encarnación, a castelhana da zona de Dom Pedrito.
Latorre olhou para Sem Sangue com quem diz “e agora guri”, mas Sem Sangue não moveu um músculo da face sequer. E seus olhos fitaram, como último adeus, os olhos de súplica de Juan. Ainda segurando o corpo inerte de Juan, Latorre perguntou.
– Era teu primo Sem Sangue?
– Era – foi a resposta seca e completou. – Eu nunca fui numa pescaria, nunca barranqueei e não conheço nenhuma puta chamada Encarnación – virou as costas e saiu.
E agora, passados todos esses anos, depois de tantas tropeadas e andanças araganas, Sem Sangue lutava nas tropas de Honório Lemes na campanha de 23. Seguia os ideais de Assis Brasil. Mais uma vez um confronto sangrento entre chimangos e maragatos. Continuava ágil e frio o velho Sem Sangue de guerra. Certa feita, alcançando a cuia de mate para o Leão do Caverá afirmou que acalentava o sonho de colocar uma gravata colorada no Flores.
– Meu amigo Sem Sangue, a hora do Flores da Cunha vai chegar. Não sei se no ferro branco ou à bala, mas vai chegar – e continuaram sorvendo o amargo na sombra de um umbu.
Os gritos do passado eram um turbilhão de vozes aflitas que martelavam a mente. Então, percebeu diante de seus olhos a imagem do primo Juan pedindo “pelo amor de Deus e as nossas mãezinhas”. A voz de Juan o perseguia nas noites insones na pampa. Mesmo quando estava nos braços de alguma faceira castelhana, Sem Sangue ainda ouvia os ecos do passado “pelo amor de Deus e as nossas mãezinhas e da puta de Dom Pedrito”. Desde 93 a vida de Sem Sangue – nem ele mais lembrava o próprio nome – era movida a peleias com ferro branco.
Sem Sangue sorveu mais um mate, tomou um trago de cana e ajeitou as lenhas no braseiro. Amolou a adaga num rebolo e secou num saco de farinha. Saiu do barracão a passos lentos e olhos parados. Deu um pontapé num cusco que passava por perto e gritou para a peonada.
– Onde estão os chimangos?


[*] 3º lugar no 2º Concurso de Causos Gauchesco Apparicio Silva Rillo. Estancia da Poesia Crioula.

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