FRONTEIRAS
Ouviu o apito.
Imaginou a corrente de ar espremendo-se por entre os tubos metálicos libertando
o silvo agudo que tangeu a noite. O trem entrava na ponte.
Buscou as
cobertas trazendo-as de volta até a cabeça. Os fiapos do cobertor roçaram a
boca e numa leve carícia desmancharam o sono. Ficou quieta ouvindo o silêncio
só intercalado pelo ruído das bielas rugidoras cadenciando o trem cada vez mais
longe.
Sentiu vontade
de levantar para vê-lo passar na escuridão da noite – uma linha luminosa
ultrapassando a fronteira por cima do rio – mas o inverno impregnava o corpo e
a cama andava vazia. Preguiçosa, aconchegou-se nela mesma, invadiu suas lembranças
e embarcou de vez.
Queria espiar
como quando era criança e colocava a cabeça para fora da janela do trem,
arriscando-se só para sentir o vento gelando as orelhas e ardendo as narinas.
Queria ver todos os vagões nas curvas da estrada de ferro onde numa delas
despontava uma cidadezinha, o primeiro entroncamento em que se podia fazer
baldeação para outros rumos. Depois, só Santa Maria.
Na estação, o
burburinho de gente apressada pela plataforma. Vendedores de laranja, pastéis,
revistas e gibis. Bilheteiros cantando os números da sorte gritavam competindo
com o barulho das máquinas em manobras, com a conversalhada dos passageiros,
com o pouco espaço na plataforma e com a ansiedade. Os apressados para a
baldeação carregavam malas, sacolas e a família correndo atrás, os que nunca
iam a lugar algum encostados pelas paredes, olhavam o trem e os sonhos alheios.
Num solavanco seco, continuava. Movia-se,
dando a partida.
Aquelas eram
viagens esperadas todos os anos e que se repetiam com gosto de para sempre.
Naquele inverno não foi diferente, as férias chegaram, as passagens foram
compradas e duas cabines reservadas para a família. Embarcavam no fim da linha
para dar uma volta ao mundo lá na capital.
Para ela
destinavam a cama de cima de um dos beliches com direito a telinha de corda
presa à parede, fazendo a vez de porta volume. Guardava ali os óculos e a
pequena carteira com algum dinheiro. Bem no canto, mas a altura da mão, um
botãozinho redondo de metal acionava uma pequena lâmpada de cabeceira de luz
mortiça que podia ligar se precisasse.
O vagão
sacolejava só descompassando o ritmo quando passava na emenda da linha. O trem
corria balançando-se todo e tironeando os vagões, enquanto o gemido das rodas
nos trilhos parecia canção de ninar para o portal do sono.
No beliche de
cima, com as cobertas rente ao pescoço sentia o vento gelado num fiozinho que
deslizava pelas frestas da janela. Espiava, pelo vão da cortina, o frágil
traçado de luz correndo noite afora. Por um bom tempo, observava os intervalos
de claro e escuro; claro e escuro; claro e escuro... Até que adormecia dentro
da serpente cintilante que cortava a escuridão do pampa. Na fronteira da
inocência desse tempo, resguardava sua infância.
As rodas rangiam
nos trilhos em pequenos solavancos como se os vagões fossem perder seus
engates, diminuía a marcha e com um movimento brusco parou de vez.
– Porto Alegre?
Agitou-se sob as
cobertas, mas caiu do sono em seu próprio quarto com o nariz ainda cheirando a
carvão e a fumaça. Do outro lado, no final da ponte, o trem atravessara a
fronteira.
“Na travessia
dessa fronteira de sombra escutei vozes...
Outras foram
asas no meu voo de escrever."
Mia Couto, in "Vozes anoitecidas".
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