terça-feira, 22 de setembro de 2015

FRONTEIRAS - Conto de Gilka Coimbra (Uruguaiana, RS)

FRONTEIRAS             

Ouviu o apito. Imaginou a corrente de ar espremendo-se por entre os tubos metálicos libertando o silvo agudo que tangeu a noite. O trem entrava na ponte.
Buscou as cobertas trazendo-as de volta até a cabeça. Os fiapos do cobertor roçaram a boca e numa leve carícia desmancharam o sono. Ficou quieta ouvindo o silêncio só intercalado pelo ruído das bielas rugidoras cadenciando o trem cada vez mais longe.
Sentiu vontade de levantar para vê-lo passar na escuridão da noite – uma linha luminosa ultrapassando a fronteira por cima do rio – mas o inverno impregnava o corpo e a cama andava vazia. Preguiçosa, aconchegou-se nela mesma, invadiu suas lembranças e embarcou de vez.
Queria espiar como quando era criança e colocava a cabeça para fora da janela do trem, arriscando-se só para sentir o vento gelando as orelhas e ardendo as narinas. Queria ver todos os vagões nas curvas da estrada de ferro onde numa delas despontava uma cidadezinha, o primeiro entroncamento em que se podia fazer baldeação para outros rumos. Depois, só Santa Maria.
Na estação, o burburinho de gente apressada pela plataforma. Vendedores de laranja, pastéis, revistas e gibis. Bilheteiros cantando os números da sorte gritavam competindo com o barulho das máquinas em manobras, com a conversalhada dos passageiros, com o pouco espaço na plataforma e com a ansiedade. Os apressados para a baldeação carregavam malas, sacolas e a família correndo atrás, os que nunca iam a lugar algum encostados pelas paredes, olhavam o trem e os sonhos alheios.
 Num solavanco seco, continuava. Movia-se, dando a partida.
Aquelas eram viagens esperadas todos os anos e que se repetiam com gosto de para sempre. Naquele inverno não foi diferente, as férias chegaram, as passagens foram compradas e duas cabines reservadas para a família. Embarcavam no fim da linha para dar uma volta ao mundo lá na capital.
Para ela destinavam a cama de cima de um dos beliches com direito a telinha de corda presa à parede, fazendo a vez de porta volume. Guardava ali os óculos e a pequena carteira com algum dinheiro. Bem no canto, mas a altura da mão, um botãozinho redondo de metal acionava uma pequena lâmpada de cabeceira de luz mortiça que podia ligar se precisasse.
O vagão sacolejava só descompassando o ritmo quando passava na emenda da linha. O trem corria balançando-se todo e tironeando os vagões, enquanto o gemido das rodas nos trilhos parecia canção de ninar para o portal do sono.
No beliche de cima, com as cobertas rente ao pescoço sentia o vento gelado num fiozinho que deslizava pelas frestas da janela. Espiava, pelo vão da cortina, o frágil traçado de luz correndo noite afora. Por um bom tempo, observava os intervalos de claro e escuro; claro e escuro; claro e escuro... Até que adormecia dentro da serpente cintilante que cortava a escuridão do pampa. Na fronteira da inocência desse tempo, resguardava sua infância.
As rodas rangiam nos trilhos em pequenos solavancos como se os vagões fossem perder seus engates, diminuía a marcha e com um movimento brusco parou de vez.
– Porto Alegre?
Agitou-se sob as cobertas, mas caiu do sono em seu próprio quarto com o nariz ainda cheirando a carvão e a fumaça. Do outro lado, no final da ponte, o trem atravessara a fronteira. 

“Na travessia dessa fronteira de sombra escutei vozes...
Outras foram asas no meu voo de escrever."

 Mia Couto, in "Vozes anoitecidas".

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