SABER ELE NÃO
SABIA, MAS ERA SÁBIO
João Clementino
da Silva, o Doca, vivia distraído em seu mundo - mundo muito seu - e nem se
dava conta de que, além do eco da sua voz, atrás do Morro Vermelho, existia uma
outra história. Até que um dia começou a pensar sobre outras realidades e quis
saber mais a respeito delas.
Toda tarde
gostava de passar pelo terreiro da fazenda do seu Genésio e roubar um dedo de
prosa. Cutucava com uma varinha a areia
fofa que ficava por cima do chão batido, onde costumava secar o café da
colheita e, enquanto conversava de cócoras, fazia contas e desenhos sem nexos,
ora seis, ora nove mais dois e proseava com o compadre:
- É, acho que
vai chovê inté no finar da semana, acha não Nésio?
-Tarveiz sim
cumpadi, as cigarras danaro a cantá estes dias. A bicharada tamém anda meio
esvoaçada. Pricisano tá! Meu fejão pode inté perdê se num chuvê logo.
-Tamém prantei
um punhado de mio. Tô doido pra mode caí um bucadinho de chuva. Vai sê muito
bão sô...
A prosa tinha
hora certa e tempo também. A noitinha caía e cada um rumava à sua casa para
juntar-se à esposa e filhos, fazer a refeição e pensar no descanso, porque logo
ia chegar a madrugada e a tarefa do outro dia já estava marcada. Antes de
dormir dava até para ouvir a “Hora do Brasil”, e xeretar um pouco nas ondas do
rádio à procura de alguma notícia ou música diferente. Muitas vezes pegavam,
naquelas bandas, umas rádios esquisitas, falando em outras línguas... E Doca
acabava indo dormir pensando de onde podiam estar vindo aquelas vozes.
Abençoava as
crianças, apagava a lamparina, beijava Maria e deitava na sua cama de molas,
com colchão recheado de palhas de milho e dormia como um anjo que não sabia o
que gostaria de sonhar.
O galo cantava
anunciando o despertar do dia. Na roça o dia começava ainda de madrugada. Doca
levantava, pegava o balde, deixava no curral e ia buscar as vacas para tirar o
leite. Geava naqueles dias. Estava frio mesmo. Mas a luta tinha que continuar e
nada mudava os horários e afazeres a cumprir.
As gotas de orvalho estavam congeladas e uma neblina suave cobria o
Morro Vermelho. O sol nascia como uma esperança para esquentar o dia. A chuva
bem quista da prosa do dia anterior parecia estar muito longe. Mas não fazia
mal, a vida era assim mesmo. Os meninos
até gostavam da geada. Joãozinho, Manoel, Pedro e Sebastião, com a ajuda de
Helena (a irmã mais velha) e a atrapalhação de Belinha (a irmã mais nova) enchiam
pratos esmaltados de suco de limão com açúcar e deixavam em cima do jiral, para, na manhã seguinte, dizer que fizeram
picolé. Era uma festa! Picolé em pleno inverno. A mãe ralhava, dizia que iriam
ficar resfriados, mas, no fundo, deixava que vivessem naquela doce ilusão,
afinal era apenas uma vez ao ano que a fábrica de picolé podia funcionar.
Naquelas bandas
a vida era muito simples e muito bela. Doca não se cansava de dizer que nada
mais queria além do que tinha, mas algo causava uma inquietação dentro dele.
Quando via um avião deixando, tão distante, um risco branco no céu, punha-se a
imaginar como poderia ser um avião de perto, como voava, que mistério era
aquele. Assim pensava quando ouvia a voz do rádio também. E muitas outras
coisas que ele sabia que existia, mas não tinha conhecimento. Letrado não era, escrevia o nome em
garranchos, até dizia que assinava seus documentos e orgulhava-se disso. Os
meninos mais velhos iam à escolinha na fazenda do seu Aristeu. Ele fazia questão de lhes dar esta chance
para aprender a ler e escrever. Joãozinho era o mais esperto e enquanto ajudava
o pai na capina da roça sempre falava das coisas que aprendia na escola:
-Pai, sabe que o
homi já foi na lua?
-Pois o compadre
Nézio num viu no rádio e me disse? Creditá num creditei não, mas devi de sê
verdadi. Num sei é como.
-A professora
disse. Pareceu na televisão. Na cidade tem televisão e ela inté já sistiu. A
genti bem que pudia tê uma aqui tamém...
-É Joãozinho,
mas acho que televisão passa coisa prá genti da roça não. Tenho inté medo de
vê, mas tamém tenho vontade. O dia que
nóis for na cidade fazê compra, vou ti levá e intão quero assisti televisão. Na
casa da madrinha da Belinha eu sei que tem.
-Oia pai, isso é
de ser legal.
A prosa com o compadre Genésio continuava às
tardinhas e, a cada dia, mais instigante. Agora até já filosofavam com relação
ao destino do mundo e, principalmente, ao destino das roças. Sabiam que tudo
estava mudando e se preocupavam com isso. Comparavam o tempo de seus pais,
avós, bisavós e outros antepassados mais distantes. Falavam das modas de viola
que já não eram mais as mesmas e até admiravam de outros tipos de músicas que
tocavam no rádio. Umas nem era bom de deixar as meninas ouvirem. Genésio tinha mais meninas que meninos, cinco
filhos ao todo, apenas dois rapazinhos. Doca era padrinho de batismo do mais
novo. Por isso o título de compadres. As mulheres eram bastante companheiras e
sempre aprendiam uma com a outra. Ora fazer um doce, ora uma costura, ora uma
nova oração para ensinar aos meninos.
A pacata rotina
da roça fez de Doca um grande entendedor da natureza, dos sinais do tempo, da
chuva, da seca, da época do plantio, da poda, da colheita, da cria dos animais
e de tantos problemas e soluções de todas as suas lidas. Mas tudo agora parecia
já não ter mais novidades e voltava aquela sua insaciável vontade de saber mais
sobre o mundo. Até que resolveu buscar o mundo que ficava atrás do Morro
Vermelho. Maria, sua esposa, recebera
uma herança por ocasião da morte de seu pai e Doca lhe pedira o dinheiro
emprestado para iniciar um outro negócio. Naquela época a grande vantagem era
ter uma olaria e, se possível, um caminhão
para levar
tijolos para as cidades grandes que maiores ficavam. Era o progresso e todo
mundo mudava para cidade, todo mundo agora precisava de tijolos para construir
suas casas na cidade grande ou na pequena também que queria ficar grande. Não
podia perder esta oportunidade. Os meninos, agora mais crescidos, podiam tomar
conta da roça. Ele iria orientar no que deveria ser feito. Maria sentiu um
calafrio só de pensar nisso, mas disse que seria o que Deus quisesse. E lá se
foi o Doca, contra a vontade do amigo e compadre Genésio, comprar o seu
caminhão. A olaria já estava funcionando nas terras baixas do sítio, onde havia
o barro apropriado.
O caminhão
chegou ainda sem carroceria na porta da sala, no terreiro de café. Era “doido”
diziam os meninos. Maria olhava ressabiada... e Doca sorria sem saber por quê.
Estava meio maluco pela nova vida. Não sabia dizer se pelo sonho de se
enriquecer e dar vida melhor para os filhos ou se pela oportunidade de ir além
morro. As viagens começaram. Saía de madrugada e voltava às 10 horas da noite.
As crianças já não o viam porque sempre estavam dormindo quando ele estava em
casa. Maria mal conseguia lhe contar o que havia acontecido durante o dia na
roça. Os meninos todos caíram de cama com sarampo e, meu Deus!, como estava
ficando difícil aquela vida sem o Doca em casa. Todos os dias ele trazia uma
novidade, contava um caso, falava da cidade grande, da televisão, dos ônibus,
das rodovias e dos prédios, das casas bonitas que estavam fazendo com o seu
tijolo. Mas Maria e as crianças não achavam tão interessante assim. A família
de Doca estava dividida, insegura, e meio sem rumo. As roças iam de mal a pior
e só podiam contar com os conselhos do compadre Genésio que, também, não podia
fazer muito porque já tinha a sua lida. Uma tristeza fina abatia sobre a roça
de Doca, sobre seus filhos e esposa. Doca não sabia dirigir o caminhão e nem
fez questão de aprender. Tinha um “chapa” que dirigia para ele. Então que
sentido fazia aquela andança toda? Negociava o tijolo, entregava e, muitas
vezes nem conseguia receber. Estava mesmo conhecendo muito sobre o mundo,
olhava revistas, via jornais, até ao cinema tinha ido. Lojas, supermercados,
grandes praças e muitas oportunidades de até se perder em meio a galanteios de
moças de vida fácil. E a Maria? E as crianças? E a roça?
Certo dia o
motorista cochilou no volante e o caminhão capotou. Mais do que o susto foi
embora a vida do motorista e quase a de Doca. O caminhão acabou. Mas nem
precisava ter acontecido isto para que Doca tivesse desistido das suas
andanças. Ele já havia reconhecido que aquela não era a sua vida.
Recuperado do
susto e dos ferimentos, Doca jurou à Maria e aos filhos não mais deixá-los e
nem a sua roça. O mundo, lá fora, atrás do Morro Vermelho tinha outras cores
que ele nunca soube nomear, mas agora o verde da plantação, o cheiro de mata, o
berro dos bezerros na ordenha, havia falado mais alto.
Depois de muito
tempo sem a sua prosa “de tardinha”, ele encontra o amigo Nézio para uma
destas, sem tempo marcado:
-É, Nézio dexo
minha roça mais não sô. Nem Maria, nem as crianças. Nesta vida não há nada mais
sagrado do que a genti cuidá das coisas da nossa terra. Já vi muita coisa que
não compensa. Vida mesmo eu tenho aqui do lado da minha mãe natureza. Se planto
tenho. Se nem planto ela me dá assim mesmo. Acha não, cumprade Nézio?
-Claro cumpradre Doca. Cê tá certo. Me deu inté um
friozinho na barriga quando fiquei sabeno do seu acidente. Sempre achei que
nunca devia de ter deixado a roça, mais tamém nunca quis lhe falá isso não por
respeitá a sua vida. Gosto de ocê como um grandi amigo e não lhe quero mal
nunca não.
-Pois é di
coração que lhe agradeço cumpadre. Fico por aqui memo. Vou embora nunca mais
não. O estudo que tenho, o conhecimento do que aprendi vem da terra, do cheiro
do mato, da lua cheia anunciando lobisome na quaresma, do céu estrelado e inté
da nossa viola véia, que a genti toca aqui no terrero certos dias de São João
ou não, mas de alegria de viver. Daqui saio não Senhor.
E Doca viveu até
seus derradeiros dias na roça. A meninada toda rumou para a cidade e
entregou-se aos estudos; até filho doutor ele teve. Mas, bem no fundo, todos
eles querem voltar e vergar-se à terra prometida ou não, mas sagrada de
natureza, onde ainda se pode ver as colônias de formigas lutando pela sua
sobrevivência, longe de um outro mundo que o Homem da cidade têm transformado
em um lugar desafiante de se viver.
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