PARTILHAS
De costume, Seu
Valério levantava por volta das cinco. Fazia fogo, mesmo no verão. Tomava seu
mate até pouco antes das seis. Levantava do cepo rudimentar e começava seu
serviço. Alimentava os cavalos da
cocheira, depois os outros animais do terreiro. Caminhava disposto até o paiol,
e da tulha de milho pegava o alimento para as galinhas. Lançava os grãos
dourados ali mesmo, da porta alta do paiol. Logo em seguida distribuía a
quirela para os pintos. Neste meio tempo, algum jovem peão, como ele, sem
infância, montado no petiço de piquete, trazia os cavalos de serviço para a
mangueira. Todos os trabalhadores tomavam café preto com bolacha besuntada de
manteiga caseira para logo colocar o freio, cada um em sua montaria, e abraçar
o serviço de campo. Mas, isso foi antes.
Agora, depois da
morte do patrão, nestes dois meses que correram, os herdeiros conseguiram
demitir todo o pessoal que ali labutava, com a exceção única de Seu Valério.
Com certeza ninguém sofrera tanto a morte do estancieiro quanto ele. Muito mais
que pela mudança de rotina. Muito mais que pelas cismas. Suas lágrimas foram o
epitáfio mais sincero. Fora dele o ombro amigo, quando o filho mais velho do
patrão deixara esta terra, há cerca de cinco anos. Tanto quanto o mesmo
enviuvara, um ano após a morte do filho. Eram grandes amigos, desde que chegara
à estância. Naquele tempo os meninos também gostavam dele. Era como um irmão
mais velho. Ajudava a encobrir as “artes”, encilhava cavalo para todos. O único
que jamais esquecera esta amizade fora o mais velho, o falecido, até por ter
sido, praticamente, um colega de serviço até seus últimos dias.
Nesta madrugada
uma cisma, como que um ramo de espinhos, plantou-se na fronha de seu
travesseiro. Não pregara o olho um só minuto. Algo em seu âmago crepitava
pronto a incendiar. Quando o relógio do quarto anunciou às quatro horas da
manhã, o campeiro levantou-se. Lavou o rosto na pia do banheiro. Limpou a cuia
ao pé do plátano, na frente do galpão, fez um mate novo e voltou à lareira.
Acomodou um punhado de gravetos secos e bateu as brasas da véspera, como
procurando uma fagulha de esperança. O fogo logo pegou. Da esperança nem sinal.
Encarava as labaredas profundamente, procurando resposta. Deixou de matutar em
vão e passou a refletir na saúde do gado, na administração dos potreiros, em
suas responsabilidades reais cotidianas. Como notando sua angústia, um cãozinho
peludo veio mansamente e debruçou o queixo em sua perna. Os demais cachorros
dormiam. Os olhos caninos, mansos como um açude, pareciam espelhar os seus. Não
se sabia se traduziam-se com uma fé quase infantil, de perspectiva inocente, ou
se eram duas luas que se aceitavam minguar. Valério ergueu-se do cepo e foi até
a frente do galpão observar as estrelas. As constelações eram as mesmas que
desde que se lembrava cobriam o campo. O campo era o mesmo, dormindo tranquilo.
Parecia não pressentir o que restava óbvio no entendimento daquele humilde peão
campeiro: logo viriam os tratores. Não aquele trator de preparar a terra para o
azevém, que repousava no galpão dos fundos. Muitos mais. Máquinas sedentas de
safra. A monocultura era inevitável no olhar dos herdeiros, era obviedade na
atmosfera, era prenuncio de cicatrizes na terra, era o frio na alma de quem
vivia com a alma dos cerros. A estrela Dalva olhava com pesar para a figura do
homem que, frente ao galpão, rezava sem dizer palavra.
Largando a cuia
no interior do galpão, o campeiro abriu o saco de ração, pegou o bornal cheio e
foi até a estrebaria. Alimentou os cavalos. Foi ao paiol e lançou os grãos aos
animais que pareciam não entender o porquê da hora em que comiam. Voltou ao
galpão, entrou em seu quarto, vestiu uma jaqueta de lã batida e sentou o velho
chapéu por sobre a cabeça. Passando novamente pelo galpão pegou um buçal
trançado e retornou a cocheira. Elegeu o tordilho e o trouxe até o pé de
plátano. Ali mesmo encilhou. Pé esquerdo no estribo e logo montou. Vendo o
movimento, todos os cães se juntaram ao cavalo. Quando saíram pela cancela,
rumando à Invernada dos Dois Pinheiros, o sol ensaiava seus primeiros matizes
alaranjados no horizonte.
Ia, a passinho,
repisando, com seus pés de centauro, os velhos caminhos gastos de infinitas
cruzadas. O capim-forquilha dançava triste à brisa das coxilhas, parecia
celebrar um ritual fúnebre. Ignorando aquilo tudo apontado pelo óbvio, o velho
capataz seguia atento revisando a saúde dos alambrados, diagnosticando poste a
poste. O arame era mais uma partitura neste último ato da orquestra campesina.
De repente, para o lado da várzea houve a discussão do velho cachorro baio com
um casal de quero-queros. O cão fora, talvez, avisá-los que se fossem, que o
fim de tudo como se conhecia era inevitável, mas, os pássaros não receberam bem
a notícia, gritavam como guerreiros, como se dissessem que iriam resistir até o
último suspiro. E tudo ia se banhando, pouco a pouco, pela dourada voz do sol
nascente. O campo, que era tanto de vida, tão mais que ouro, se tingia de tons
tão semelhantes a este metal que parecia transcrever algum tipo de ironia
quanto à situação da propriedade. As ovelhas, em lã de ouro, chegadinhas a
parir, pastavam ao redor de um capão de mato, como sempre, envolvidas em seus
sentimentos paradoxais: despreocupadas com o rodar do mundo; nervosas com a
iminência de algum predador. O semblante mais tranquilo neste cenário parecia
ser o do solitário umbu que, bem lá no alto, fazia sombra e fronteira para a
porteira de arame, talvez por certeza de que jamais perderia tais funções.
Brotara para ser sombra e fronteira.
Apeando sob o
umbu majestoso, Seu Valério enfiou a mão no bolso das bombachas e puxou um
pacote de fumo desfiado. Desenrolou a boca do saquinho plástico e pegou o
livrinho de papel. Sacou uma pequena folha e a passou entre o indicador e o
dedo do meio, dando-lhe uma leve sovada. Depois a segurou com cuidado com os
mesmos dedos, auxiliados pelo polegar, abrindo-a de forma a poder guarnecê-la
de fumo. Já com o fumo, enrolou o papel com as duas mãos, passou a língua,
fazendo um carinho ao que sobrara da folha, e finalmente, fechou o cigarro.
Tudo feito exatamente com este zelo. Com o cigarro na boca, encobriu parte do
rosto, como fazendo uma máscara de seu casaco, puxou o isqueiro e acendeu. Ali,
sob a árvore, recostado ao arame da porteira ficou visando tudo o que conseguia
da invernada. Fumou sem pensar. Era só olhos, ouvidos e o que restava de
pulmão. O fumo que ia queimando parecia entrar-lhe pela garganta, anestesiando
um pouco da angústia; logo saía, subia e se dissipava, como mandando toda a dor
ir se mesclar com as dores de outras fumaças, no céu infinito dos penares.
Apagou o cigarro
no tronco da árvore, abriu a porteira, puxou o tordilho e montou novamente.
Mesmo com toda a pobreza a vida jamais tinha se apresentado tão arrastada. Até
nos dias mais cansativos, podia suspirar. Naquela manhã não. O suspiro parecia
atolado junto ao osso do peito, assim como uma vaca em um manancial. Saiu por
sua direita e começou a recorrer a invernada. Nunca tinha trabalhado de forma
tão mecânica. A matilha canina o acompanhava da maneira mais natural, porém
desta vez não invocaram com a toca de tatu que havia ali por perto, seguiam
atrás das patas do cavalo, quase ombro a ombro com o capataz. Varando a sanga
que cortava o campo, tão pura quanto o canto de um sabiá, notou uma flor de
aguapé descendo com a correnteza – a natureza seguindo seu destino, sem maiores
preocupações. A invejou. E seguiu, até o fundo do campo. Voltou gritando com o
gado, conduzindo-o à mangueira. Percebeu uma cumplicidade com os animais: o
pobre peão de campo era gado de gente rica. O dinheiro tropeava o destino de
quem não tinha mais garantia do que o fio de bigode de outrora. E assim
seguiram, gado e campeiro, aceitando seu destino no rumo em que o vento e o
tempo os conduziam.
Passando a
porteira, apeou novamente. A fechou como o ponto final de um texto mal escrito.
Montou, quase contra a vontade. Seguiu com os vacuns em direção à cancela da
mangueira. Passando aquela várzea, a do ninho de quero-quero, uma vaca implicou
com o cachorro peludo, o atropelou e se mandou campo a fora. Renegava o destino
imposto. Se dizia livre, toda a vez que golpeava o chão com seus cascos
partidos. O tordilho, animal acostumado ao serviço campeiro, forçou às rédeas
em direção à renegada, mas, Seu Valério o sujeitou. E ficou, por alguns
instantes, admirando a atitude do animal matreiro. Uma lágrima, também forçando
à rédea, quis descer a galope pela pele escura da face do homem solitário. Esta
ele deixou livre, como quem abre a porta de uma gaiola para ver um pássaro
cantar em liberdade. Seguiu levando os animais mais conformados para que os
pudesse vacinar na mangueira. Não demorou muito e a vaca rebelde parou no alto
de uma coxilha a observar o resto da manada. Parecia compreender, naquele
momento, que não havia fuga ao destino se todo o resto jamais tornaria a ser o
mesmo. Aos poucos, como envergonhada de sua ingênua ilusão, voltou a
acompanhar, mesmo que de longe, a marcha de suas semelhantes. Quando as demais
entraram na mangueira, ela ficou ao redor, pedindo para que se o inevitável
vinha a trote, que a encontrasse junto dos seus. Foi só abrir a cancela e ela
entrou.
O homem foi
encerrando o gado em uma mangueira menor que dava acesso à seringa e ao brete.
Silente, ia realizando seu serviço, tão diferente do João-de-Barro que moldava
sua casa, no alto de um poste, entre cantares e bicadas. Viu um dos herdeiros
da propriedade se aproximando da mangueira. Este, debruçado às tábuas, ficou
observando o campeiro que seguia trabalhando calado. Esperou um pouco e disse
que Seu Valério não vacinasse o gado, pois um caminhão viria à tarde para
levá-lo para o frigorífico. Esperou algo da boca do empregado, mas, este seguia
quieto, agora não mais labutando, somente fingindo ter algum afazer para não
precisar encarar aquele que traía a pátria que ele ajudou a erguer. O rapaz
emendou logo um assunto no outro. Dizendo que sabia que seu pai confiava muito
no capataz e que jamais havia lhe assinado carteira, mas, que este não se
preocupasse, pois seus direitos seriam pagos, e que poderia levar isto, que
deveria deixar aquilo, que fizesse só mais aquele outro. O campeiro parou de
fingir por um momento e ficou encarando aquele que o demitia. Não ouvia mais
nada, apenas uma espécie de zumbido. A atmosfera lhe era um poncho de lã
molhado sobre os ombros. As pernas pesavam. A vida era as asas de um urubu,
parada no ar, planando sobre o que já fora realmente vivo. Deu as costas ao
jovem herdeiro, abriu a porteira e montou no tordilho. Saiu, novamente pelos
caminhos, repisando a memória, com pés de saudade e lágrimas de adeus.
Dando tempo para
sua despedida as horas foram a trote. Passou a tarde. Se foi o gado. Passou a
noite. Se foram as estrelas. E quando o sol voltou com sua batida ironia de
tingir de ouro os campos encontrou um tordilho desencilhado e quatro cachorros
velando o corpo que pendia por um laço de um dos galhos do umbu da porteira. Já
não era mais olhos, ou ouvidos, ou preocupações, somente mais uma parte em
decomposição do que fora a velha estância adornando uma árvore que brotara para
ser sombra e fronteira.
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