quarta-feira, 7 de outubro de 2015

A MENINA DO ESPELHO - Crônica de Valéria Surreaux (Uruguaiana, RS)

A MENINA DO ESPELHO

Dei pra falar sozinha. No início achei normal. Sentava na cozinha em um cantinho da mesa de onde, através dos copos de vinho da cristaleira, me cabia um pouco da própria imagem no espelho. Depois comecei a desconfiar que estivesse virando rotina, portanto, não era lá muito normal. Preparo meu café, sento, olho para o espelho e falo tudo o que penso de mim para mim mesma. É um sintoma, percebi, não sei se de solidão ou de escandalosa autossuficiência.

Minha imagem não me rebate, não magoa, não me ofende. Nosso encontro já é um ritual. E um ritual que me golpeia com uma saudade imensa da minha mãe. Nós brigávamos muito e sempre. Nós nos magoávamos mutuamente e nunca, nunca nos pedíamos perdão na típica forma de pedir perdão. Nossos perdões eram velados. Discutíamos ao meio dia assombrosamente e ao entardecer eu telefonava perguntando se ela queria assistir a novela comigo. Ela sempre queria. Ou ela batia na minha porta perguntando se eu queria os mamões que ela trazia nos braços, recém-colhidos. Eu nunca gostei de mamão. Mas sempre queria. Em poucas horas estávamos sedentas pela companhia uma da outra. Cumprimos até o final esse ritual, que estranhamente, nunca nos pareceu doentio.


Nem depois da sua morte e do desmoronamento que seu desaparecimento me causou, me arrependo. Nunca me arrependi de nenhuma das nossas brigas e se me fosse concedido o milagre de tê-la de volta, nada seria diferente. Nem nosso ritual, nem nossos códigos.

Nosso amor nunca foi maculado.

O que hoje eu sei é que sempre somos covardemente loucos ou verdadeiros ou ferinos com quem sabemos que sempre nos perdoará. A certeza do perdão sempre deu a mim e a ela, a liberdade da selvageria. Nós nos sabíamos compreensíveis e amadas. Só com ela não medi as palavras. Meço agora: palavras, atitudes, explosões. Penso antes de falar. Duvido que alguém me conceda um perdão fácil.


 Mas minha imagem no espelho, que me escuta, perdoa e jamais me falta, não substitui o olhar da minha mãe. Minha mãe não cabe nesse pedacinho de espelho e ali também não cabe mais aquela menina sem noção da finitude, sabendo-se sempre absolvida, com cílios enormes, olhando encantada o mundo a seus pés.

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