A MENINA DO
ESPELHO
Dei pra falar
sozinha. No início achei normal. Sentava na cozinha em um cantinho da mesa de
onde, através dos copos de vinho da cristaleira, me cabia um pouco da própria
imagem no espelho. Depois comecei a desconfiar que estivesse virando rotina,
portanto, não era lá muito normal. Preparo meu café, sento, olho para o espelho
e falo tudo o que penso de mim para mim mesma. É um sintoma, percebi, não sei
se de solidão ou de escandalosa autossuficiência.
Minha imagem não me rebate, não magoa, não me
ofende. Nosso encontro já é um ritual. E um ritual que me golpeia com uma
saudade imensa da minha mãe. Nós brigávamos muito e sempre. Nós nos magoávamos
mutuamente e nunca, nunca nos pedíamos perdão na típica forma de pedir perdão.
Nossos perdões eram velados. Discutíamos ao meio dia assombrosamente e ao
entardecer eu telefonava perguntando se ela queria assistir a novela comigo.
Ela sempre queria. Ou ela batia na minha porta perguntando se eu queria os
mamões que ela trazia nos braços, recém-colhidos. Eu nunca gostei de mamão. Mas
sempre queria. Em poucas horas estávamos sedentas pela companhia uma da outra.
Cumprimos até o final esse ritual, que estranhamente, nunca nos pareceu
doentio.
Nem depois da sua morte e do desmoronamento
que seu desaparecimento me causou, me arrependo. Nunca me arrependi de nenhuma
das nossas brigas e se me fosse concedido o milagre de tê-la de volta, nada
seria diferente. Nem nosso ritual, nem nossos códigos.
Nosso amor nunca foi maculado.
O que hoje eu sei é que sempre somos
covardemente loucos ou verdadeiros ou ferinos com quem sabemos que sempre nos
perdoará. A certeza do perdão sempre deu a mim e a ela, a liberdade da
selvageria. Nós nos sabíamos compreensíveis e amadas. Só com ela não medi as
palavras. Meço agora: palavras, atitudes, explosões. Penso antes de falar.
Duvido que alguém me conceda um perdão fácil.
Mas minha imagem no espelho, que me escuta,
perdoa e jamais me falta, não substitui o olhar da minha mãe. Minha mãe não
cabe nesse pedacinho de espelho e ali também não cabe mais aquela menina sem
noção da finitude, sabendo-se sempre absolvida, com cílios enormes, olhando
encantada o mundo a seus pés.
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