sábado, 10 de outubro de 2015

A TERCEIRA MARGEM... - Crônica de Dôra Borges (Belo Horizonte, MG)

A TERCEIRA MARGEM DO RIO
(Inspirado em “A Terceira Margem do Rio” de Guimarães Rosa)
                                                                                      
Cá estou, no meio de um rio, numa canoa sem remo...
Meu pensamento, meus desejos ou meu sonho hão de me levar para uma das margens, mas ainda não sei quem me conduzirá. Em meio à minha dúvida, olho para trás e percebo o quão distante está o cais de onde parti; mal posso enxergar as árvores frondosas, de raízes grossas que ficaram daquele lado. Voltar não seria uma boa opção. Sei bem o que encontrar nesse caminho, pois já o percorri e nada mais tenho a me motivar além de lembranças de lugares e momentos que não mais serão revividos. Então procuro olhar para frente, tentando vislumbrar a outra margem, mas não consigo ver claramente a distância que ainda tenho que percorrer para chegar ao meu destino.

O azul claro do céu é espelhado na imensidão das águas límpidas. Algumas nuvens flocos de algodão espalham-se pelo horizonte, além da Serra da Saudade, de onde o sol nasce como que suspirando de satisfação por mais um dia de luz. Apesar da beleza indescritível dessa cena, sinto medo.

Há um desafio muito grande à minha frente e eu não consigo sequer entender o seu propósito. A minha grande sorte é poder ter contado com a calmaria das águas.  Ainda assim, eu não posso me acomodar, pois as pequenas ondas, por certo, irão me levar rio abaixo se eu não me decidir rápido. Algo tem que falar mais alto dentro de mim. Estou confuso, muito confuso.


Minha única companheira nesse momento é a solidão. Às vezes até gosto da sua companhia; ela me faz refletir. Mas não há tempo para reflexões. Preciso tomar uma decisão. O rumo da minha vida depende inteiramente desse desfecho.

O meu pensamento põe-se a trabalhar intensamente a meu favor. Vai deslizando pela minha trajetória até chegar à minha infância, de onde tento buscar respostas nas minhas brincadeiras de menino, nas estratégias do pique-esconde, no tinir das bolinhas de gude e até nos malabarismos da minha pipa colorida, de rabiolas enormes, a cometer estripulias no ar, numa competição frenética com as suas tímidas companheiras de vôos. Meu pensamento viaja tão distraído que quase chega a me trair. Então retomo a responsabilidade que tenho em mãos.

Continuo a pensar de forma mais madura e, um tanto quanto, racional. Não vejo saída. Meu pensamento é muito volátil, acompanha um monte de previsões, de tendências, de convenções, de cotações, de percentuais que não me levam a nada. E se eu penso como todo mundo, corro o risco de não saber quem eu sou; sendo diferente no pensar, o mundo todo não irá me entender. Não vejo saída.

Tenho vontade de saltar no rio... olho para meu reflexo no espelho d’água e já não me conheço. Não consigo mais pensar em nada. Desejo ser aquela garça que voa distante e que, certamente, não conhece qualquer tipo de problema e nem tem que tomar uma decisão tão importante. Mas eu não poderia, porque ela jamais irá alcançar o meu destino. O seu universo é pequeno demais para mim.

Desejo ser um peixe grande e nadar até a próxima margem. Mas e depois? Como sairei das águas? Como haverei de prosseguir?  De respirar numa outra realidade? Resta-me ser uma estrela e ficar distante, só a observar o meu barco abandonado, descendo o rio sem pressa. Mas não, o meu barco abandonado - companheiro de tantas travessias, poderá encontrar uma queda, uma cachoeira, onde a correnteza o jogará direto e vorazmente contra as pedras e o destruirá. Não vou suportar ver isso sem poder fazer nada por ele... não posso, mesmo que o brilho de estrela me seja tentador. Assistir tudo à distância é decreto de covardia. Vejo que o meu tempo é cada vez mais escasso e eu estou desesperado.

Resta-me sonhar. Os sonhos são alentos e nos conduz a alguma esperança. Quando audaciosos, nos faz rir; quando pequenos, nos faz crer. Sonhar é algo mais que planejar. Tem um sentido maior. Posso sonhar com o encanto da outra margem, com a ternura das crianças brincando na terra, com um cachorro rabicó correndo atrás delas e até ouvir os risos puros que as brincadeiras lhes proporcionam. O sonho pode me trazer a felicidade, o beijo da amada, um forte abraço de mãe, a poesia das belas tardes de verão... mas é sonho. E o meu barco está deslizando lentamente em busca de uma certeza. Não posso desvirtuá-la.
 Olho para o alto na esperança de encontrar uma resposta para aliviar o meu desatino, mas meus olhos são ofuscados pelo brilho do sol, que agora está a pino, quase queimando o meu viver.  Nesse momento, sou eu e o meu destino, à espera de uma resposta. Busco sentido de uma margem à outra do rio e não encontro. Reconheço a minha vulnerabilidade.

Meu pensamento é moldado pelo mundo, e dele não se desprendeu desde que cheguei ao cais para essa travessia. Dele nada posso esperar a não ser incertezas e desvairismos. Meu pensamento não tem lógica, não é concatenado com a minha angústia; mais parece rascunho de um roteiro de filme, rabiscado inúmeras vezes, sem encontrar a conjunção de cenas para um bom desfecho.

Por um outro lado, meus desejos são pequenos demais para me impulsionarem, são quase inocentes, muito limitados por uma razão sem sentido. Não raro me pego desejando ter mais tempo para desperdiçar em coisas fúteis, para trabalhar mais, para conquistar mais, para me realizar, ter sucesso. Percebo que, mesmo sem tempo, vou ganhando o mundo e perdendo a mim mesmo a cada conquista. Deixo um pouco do amor que me resta, em cada esquina para, quem sabe, quando eu me perder por completo, possa voltar e encontrá-lo de braços cruzados, bêbado de tristeza, à minha espera. O amor de mãe, o amor de vó, o amor de pai, de irmãos e o meu amor próprio que me faz sentir vontade de amar. Conjugar o verbo amar na sua essência, buscar completude, partilha em cada brilho de olhar. Ah, o amor, quisera eu encontrar nesse sentimento nobre, a minha grande resposta. Estou cansado... já não tenho mais forças para chegar ao meu destino.

Entrego-me ao meu próprio infortúnio, quase que totalmente adormecido pela fadiga da busca por uma forma de atravessar o rio, e ser feliz. Meu olhar perdido é ofuscado por imagens distantes; não encontro um sentido maior que me faça prosseguir...


Temo a noite e as nuvens carregadas que possam trazer uma tempestade e me levar o barco. Estou à deriva e novamente elevo meus olhos para o céu. Em silenciosa prece, ofereço o meu pensamento, meus desejos, meus sonhos a essa terceira margem do rio e adormeço para acordar no meu destino. Eis a minha sina.

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