A TERCEIRA
MARGEM DO RIO
(Inspirado
em “A Terceira Margem do Rio” de Guimarães Rosa)
Cá
estou, no meio de um rio, numa canoa sem remo...
Meu
pensamento, meus desejos ou meu sonho hão de me levar para uma das margens, mas
ainda não sei quem me conduzirá. Em meio à minha dúvida, olho para trás e percebo
o quão distante está o cais de onde parti; mal posso enxergar as árvores frondosas,
de raízes grossas que ficaram daquele lado. Voltar não seria uma boa opção. Sei
bem o que encontrar nesse caminho, pois já o percorri e nada mais tenho a me
motivar além de lembranças de lugares e momentos que não mais serão revividos.
Então procuro olhar para frente, tentando vislumbrar a outra margem, mas não consigo
ver claramente a distância que ainda tenho que percorrer para chegar ao meu
destino.
O
azul claro do céu é espelhado na imensidão das águas límpidas. Algumas nuvens
flocos de algodão espalham-se pelo horizonte, além da Serra da Saudade, de onde
o sol nasce como que suspirando de satisfação por mais um dia de luz. Apesar da
beleza indescritível dessa cena, sinto medo.
Há
um desafio muito grande à minha frente e eu não consigo sequer entender o seu
propósito. A minha grande sorte é poder ter contado com a calmaria das águas. Ainda assim, eu não posso me acomodar, pois
as pequenas ondas, por certo, irão me levar rio abaixo se eu não me decidir
rápido. Algo tem que falar mais alto dentro de mim. Estou confuso, muito
confuso.
Minha
única companheira nesse momento é a solidão. Às vezes até gosto da sua
companhia; ela me faz refletir. Mas não há tempo para reflexões. Preciso tomar
uma decisão. O rumo da minha vida depende inteiramente desse desfecho.
O
meu pensamento põe-se a trabalhar
intensamente a meu favor. Vai deslizando pela minha trajetória até chegar à minha
infância, de onde tento buscar respostas nas minhas brincadeiras de menino, nas
estratégias do pique-esconde, no tinir das bolinhas de gude e até nos
malabarismos da minha pipa colorida, de rabiolas enormes, a cometer estripulias
no ar, numa competição frenética com as suas tímidas companheiras de vôos. Meu
pensamento viaja tão distraído que quase chega a me trair. Então retomo a
responsabilidade que tenho em mãos.
Continuo
a pensar de forma mais madura e, um tanto quanto, racional. Não vejo saída. Meu
pensamento é muito volátil, acompanha um monte de previsões, de tendências, de
convenções, de cotações, de percentuais que não me levam a nada. E se eu penso
como todo mundo, corro o risco de não saber quem eu sou; sendo diferente no
pensar, o mundo todo não irá me entender. Não vejo saída.
Tenho
vontade de saltar no rio... olho para meu reflexo no espelho d’água e já não me
conheço. Não consigo mais pensar em nada. Desejo ser aquela garça que voa
distante e que, certamente, não conhece qualquer tipo de problema e nem tem que
tomar uma decisão tão importante. Mas eu não poderia, porque ela jamais irá
alcançar o meu destino. O seu universo é pequeno demais para mim.
Desejo
ser um peixe grande e nadar até a próxima margem. Mas e depois? Como sairei das
águas? Como haverei de prosseguir? De respirar
numa outra realidade? Resta-me ser uma estrela e ficar distante, só a observar
o meu barco abandonado, descendo o rio sem pressa. Mas não, o meu barco
abandonado - companheiro de tantas travessias, poderá encontrar uma queda, uma
cachoeira, onde a correnteza o jogará direto e vorazmente contra as pedras e o
destruirá. Não vou suportar ver isso sem poder fazer nada por ele... não posso,
mesmo que o brilho de estrela me seja tentador. Assistir tudo à distância é
decreto de covardia. Vejo que o meu tempo é cada vez mais escasso e eu estou
desesperado.
Resta-me
sonhar. Os sonhos são alentos e nos conduz a alguma esperança. Quando
audaciosos, nos faz rir; quando pequenos, nos faz crer. Sonhar é algo mais que
planejar. Tem um sentido maior. Posso sonhar com o encanto da outra margem, com
a ternura das crianças brincando na terra, com um cachorro rabicó correndo
atrás delas e até ouvir os risos puros que as brincadeiras lhes proporcionam. O
sonho pode me trazer a felicidade, o beijo da amada, um forte abraço de mãe, a
poesia das belas tardes de verão... mas é sonho. E o meu barco está deslizando
lentamente em busca de uma certeza. Não posso desvirtuá-la.
Olho para o alto na esperança de encontrar uma
resposta para aliviar o meu desatino, mas meus olhos são ofuscados pelo brilho
do sol, que agora está a pino, quase queimando o meu viver. Nesse momento, sou eu e o meu destino, à
espera de uma resposta. Busco sentido de uma margem à outra do rio e não
encontro. Reconheço a minha vulnerabilidade.
Meu
pensamento é moldado pelo mundo, e dele não se desprendeu desde que cheguei ao
cais para essa travessia. Dele nada posso esperar a não ser incertezas e desvairismos. Meu pensamento não tem lógica,
não é concatenado com a minha angústia; mais parece rascunho de um roteiro de
filme, rabiscado inúmeras vezes, sem encontrar a conjunção de cenas para um bom
desfecho.
Por
um outro lado, meus desejos são pequenos demais para me impulsionarem, são quase
inocentes, muito limitados por uma razão sem sentido. Não raro me pego
desejando ter mais tempo para desperdiçar em coisas fúteis, para trabalhar
mais, para conquistar mais, para me realizar, ter sucesso. Percebo que, mesmo
sem tempo, vou ganhando o mundo e perdendo a mim mesmo a cada conquista. Deixo
um pouco do amor que me resta, em cada esquina para, quem sabe, quando eu me
perder por completo, possa voltar e encontrá-lo de braços cruzados, bêbado de
tristeza, à minha espera. O amor de mãe, o amor de vó, o amor de pai, de irmãos
e o meu amor próprio que me faz sentir vontade de amar. Conjugar o verbo amar
na sua essência, buscar completude, partilha em cada brilho de olhar. Ah, o
amor, quisera eu encontrar nesse sentimento nobre, a minha grande resposta. Estou
cansado... já não tenho mais forças para chegar ao meu destino.
Entrego-me
ao meu próprio infortúnio, quase que totalmente adormecido pela fadiga da busca
por uma forma de atravessar o rio, e ser feliz. Meu olhar perdido é ofuscado
por imagens distantes; não encontro um sentido maior que me faça prosseguir...
Temo
a noite e as nuvens carregadas que possam trazer uma tempestade e me levar o
barco. Estou à deriva e novamente elevo meus olhos para o céu. Em silenciosa
prece, ofereço o meu pensamento, meus desejos, meus sonhos a essa terceira
margem do rio e adormeço para acordar no meu destino. Eis a minha sina.
Nenhum comentário:
Postar um comentário