QUERÊNCIA
Uns tempos
atrás, escutar a canção Negrinho do Pastoreio era, principalmente, recordar a
bela voz que a interpretava, agora só em discos de vinil e talvez em um ou dois
CDs. Seu intérprete mais divulgado, Leopoldo Rassier, vencedor de vários
festivais nativistas, partiu faz alguns anos.
Barbosa Lessa, o
autor, deixou mais de sessenta trabalhos escritos entre romances, poesia,
livros de folclore, composições. Vivia e criava, segundo ele próprio, num lugar
que nem sítio era, um pedaço de mato, cercado de lagos para dar de beber aos
beija-flores.
Num painel
psiquiátrico sobre depressão, um dos painelistas valeu-se da notícia da morte
do compositor para deixar sua mensagem aos telespectadores: “Negrinho do
Pastoreio, acendo esta vela pra ti e peço que me devolvas, a querência que eu
perdi”. A depressão, segundo o psiquiatra, tem muito a ver com as perdas
sofridas, especialmente aquelas ligadas à infância, à família, às expectativas
, enfim, à querência de cada um.
No retorno de
pequenas viagens realizadas na infância, quando entrávamos na estrada que
cortava as planuras de minha terra natal, eu observava como o pôr-do-sol era
colorido, o vento cheirava a pasto úmido, os quero-queros, em sintonia comigo,
alardeavam o apelo telúrico e os sentidos se misturavam tanto que eu passava
para um estado de alteração da consciência. Eu perguntava para os adultos
companheiros de viagem se eles sentiam a mesma coisa e certa vez meu pai me
esclareceu: é o sentimento de volta à querência. Voltar à querência tornou-se
para mim o desejo mais exaltado. Antes era algo que tinha de ser concretizado
fisicamente, hoje o sentimento é tão profundo que posso vivenciá-lo sempre,
onde quer que eu esteja, ao voltar para onde moro com meus guardados, desde que
eu veja o céu, os campos e o mar, há alguns anos incorporado a minha vida.
Todas as pessoas
devem acessar a querência interior quando se sentirem fragilizadas em meio a
disputas em que se veem envolvidas, muitas vezes involuntariamente, quando tudo
o que queriam era rever um pago coloreado de pitanga, um banho de sanga, um
sentimento de liberdade, respirado através de uma corrida pelas coxilhas.
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