terça-feira, 6 de outubro de 2015

QUERÊNCIA - Crônica de Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)

QUERÊNCIA

Uns tempos atrás, escutar a canção Negrinho do Pastoreio era, principalmente, recordar a bela voz que a interpretava, agora só em discos de vinil e talvez em um ou dois CDs. Seu intérprete mais divulgado, Leopoldo Rassier, vencedor de vários festivais nativistas, partiu faz alguns anos.

Barbosa Lessa, o autor, deixou mais de sessenta trabalhos escritos entre romances, poesia, livros de folclore, composições. Vivia e criava, segundo ele próprio, num lugar que nem sítio era, um pedaço de mato, cercado de lagos para dar de beber aos beija-flores.

Num painel psiquiátrico sobre depressão, um dos painelistas valeu-se da notícia da morte do compositor para deixar sua mensagem aos telespectadores: “Negrinho do Pastoreio, acendo esta vela pra ti e peço que me devolvas, a querência que eu perdi”. A depressão, segundo o psiquiatra, tem muito a ver com as perdas sofridas, especialmente aquelas ligadas à infância, à família, às expectativas , enfim, à querência de cada um.


No retorno de pequenas viagens realizadas na infância, quando entrávamos na estrada que cortava as planuras de minha terra natal, eu observava como o pôr-do-sol era colorido, o vento cheirava a pasto úmido, os quero-queros, em sintonia comigo, alardeavam o apelo telúrico e os sentidos se misturavam tanto que eu passava para um estado de alteração da consciência. Eu perguntava para os adultos companheiros de viagem se eles sentiam a mesma coisa e certa vez meu pai me esclareceu: é o sentimento de volta à querência. Voltar à querência tornou-se para mim o desejo mais exaltado. Antes era algo que tinha de ser concretizado fisicamente, hoje o sentimento é tão profundo que posso vivenciá-lo sempre, onde quer que eu esteja, ao voltar para onde moro com meus guardados, desde que eu veja o céu, os campos e o mar, há alguns anos incorporado a minha vida.


Todas as pessoas devem acessar a querência interior quando se sentirem fragilizadas em meio a disputas em que se veem envolvidas, muitas vezes involuntariamente, quando tudo o que queriam era rever um pago coloreado de pitanga, um banho de sanga, um sentimento de liberdade, respirado através de uma corrida pelas coxilhas.

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