sábado, 10 de outubro de 2015

SOZINHO-ME - Crônica de Gilka Coimbra (Uruguaiana, RS)

SOZINHO-ME

Por trás da cortina espio a rua na hora do desbotar do sol. Em cima da cama as folhas amarelecidas escorregam da pasta, nelas, a escrita de traços firmes guarda as lembranças trançadas de um tempo que tive à disposição.

Há poucos dias li que havia uma vantagem em saber esperar sem esperança, porque é esperar sem dor. Por isso deixo-me estar ali, confinada em minhas memórias. Os filhos aparecem e se revezam, mas não lhes dou mais tanta importância.  Já lhes dei o melhor de mim.

Guardei as cartas todas que recebi, num fundo falso de uma das gavetas do pequeno oratório. Ali mesmo, bem abaixo do nariz da família e de todos os santos de minha devoção. Só eles sabem onde elas estão. Não perdi a fé, só o rumo do coração. Sei que devo desfazer-me delas enquanto é tempo, mas sem vontade ou coragem, ainda não... 

Na companhia das imagens sagradas, no canto do quarto, puxo a cadeira para bem mais perto e, como quem busca ombros para escoar as falas, leio baixinho os secretos relatos dos encontros fortuitos que tivemos naquele longínquo verão. Eu era só uma menina.

Vez ou outra eu vigio a porta do quarto e, como quem pede desculpas, abaixo a cabeça. Gosto desse lugar mais do que qualquer outro da casa. Os olhos vitrificados de cima do oratório têm um modo especial de me escutar. Na relação com meus santos, eu encontro uma porta invisível e para ela sou convidada.  Atravesso e sozinho-me.

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