SOZINHO-ME
Por trás da
cortina espio a rua na hora do desbotar do sol. Em cima da cama as folhas
amarelecidas escorregam da pasta, nelas, a escrita de traços firmes guarda as
lembranças trançadas de um tempo que tive à disposição.
Há poucos dias li que havia uma vantagem em
saber esperar sem esperança, porque é esperar sem dor. Por isso deixo-me estar
ali, confinada em minhas memórias. Os filhos aparecem e se revezam, mas não
lhes dou mais tanta importância. Já lhes
dei o melhor de mim.
Guardei as
cartas todas que recebi, num fundo falso de uma das gavetas do pequeno
oratório. Ali mesmo, bem abaixo do nariz da família e de todos os santos de
minha devoção. Só eles sabem onde elas estão. Não perdi a fé, só o rumo do
coração. Sei que devo desfazer-me delas enquanto é tempo, mas sem vontade ou
coragem, ainda não...
Na companhia das
imagens sagradas, no canto do quarto, puxo a cadeira para bem mais perto e,
como quem busca ombros para escoar as falas, leio baixinho os secretos relatos
dos encontros fortuitos que tivemos naquele longínquo verão. Eu era só uma
menina.
Vez ou outra eu vigio a porta do quarto e, como quem pede desculpas, abaixo a cabeça. Gosto desse lugar mais do que qualquer outro da casa. Os olhos vitrificados de cima do oratório têm um modo especial de me escutar. Na relação com meus santos, eu encontro uma porta invisível e para ela sou convidada. Atravesso e sozinho-me.
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