ADORNO
DESLOCADO
Era
uma caturrita madura. Quinze anos! A metade da expectativa de vida estimada
para a raça myiopsitta monachus. Todo esse tempo na mesma família. Não se
queixava da vida, gostava tanto daquela gente que queria cantar para eles. Mas
o esforço era traduzido, sempre, pelo monótono e repetido currupaco.
Trocou
de gaiola três vezes, uma boa média para o tempo de vida na casa. Mesmo sendo
do mesmo modelo, da mesma cor e tamanho, era uma gaiola nova. Ficava agitada
com o cheiro da tinta fresca.
Era
uma caturrita madura e feliz. Parecia não ter queixas. No entanto para surpresa
do dono algumas vezes, mostrava-se inquieta. Virava a cabeça rápida e vibrátil,
repetidamente. Depois a escondia, em baixo da asa esquerda, para cochilos em
tempo de longa espera. E se acalmava e não se reparava nela nenhuma aflição.
Voltava a ser madura e feliz. Nesses períodos mais agitados, estranhava a
ausência de um companheiro, até porque ouvia sempre a voz da dona repetindo:
–
Linda, lindinha. – enquanto passava o dedo por entre os ferros da grade e
alcançava sua
plumagem sedosa.
O
espelho da cristaleira, encostado na parede em frente, ressaltava suas cores. A
testa cinza-azulada, as bochechas de um cinza-pálido contrastavam com o verde
brilhante da nuca e do pescoço.
–
Linda, lindinha. – sussurravam para ela. Mesmo assim, não conhecera nenhum
macho da sua espécie. Ano após ano, permanecia ora num, ora noutro pé,
observando a rotina. Foi quando desenvolveu sutilezas nos currupacos só para
agradar os donos da casa.
As
brigas que assistia, entre eles, por trás das frágeis grades, e o sofrimento
das horas do desatino tranqüilizavam seu estado de solteirice.
Era
uma caturrita madura, feliz e solteira. A gaiola seria pequena e incômoda para
dois. Não poderia dar seus pequenos pulinhos entre os estreitos poleiros,
espanejar-se, arrepiando o pescoço no meio da manhã. A ração seria dividida. As
pequenas sementes e os gominhos de frutas passadas, que sobravam à mesa, não
estariam a salvo. As folhas crocantes, enfiadas por entre as hastes da gaiola,
seriam disputadas e degustadas às pressas. Não, não! Era uma caturrita madura,
feliz e solteira... Até o dia em que venderam a cristaleira com espelho e tudo
e trocaram a gaiola de lugar.
As
grades listravam agora outras imagens, novas, depois da janela. Abriu as asas
em sobressalto. Abotoando e desabotoando os olhos emitiu currupacos
estridentes, indecisos. Espichou o pescoço e intuiu ser – apenas um adorno
deslocado. E passaram-se outros tantos anos.
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