sábado, 2 de janeiro de 2016

ADORNO DESLOCADO - Conto de Gilka Coimbra (Uruguaiana, RS)

ADORNO DESLOCADO

Era uma caturrita madura. Quinze anos! A metade da expectativa de vida estimada para a raça myiopsitta monachus. Todo esse tempo na mesma família. Não se queixava da vida, gostava tanto daquela gente que queria cantar para eles. Mas o esforço era traduzido, sempre, pelo monótono e repetido currupaco.

Trocou de gaiola três vezes, uma boa média para o tempo de vida na casa. Mesmo sendo do mesmo modelo, da mesma cor e tamanho, era uma gaiola nova. Ficava agitada com o cheiro da tinta fresca.

Era uma caturrita madura e feliz. Parecia não ter queixas. No entanto para surpresa do dono algumas vezes, mostrava-se inquieta. Virava a cabeça rápida e vibrátil, repetidamente. Depois a escondia, em baixo da asa esquerda, para cochilos em tempo de longa espera. E se acalmava e não se reparava nela nenhuma aflição. Voltava a ser madura e feliz. Nesses períodos mais agitados, estranhava a ausência de um companheiro, até porque ouvia sempre a voz da dona repetindo:

– Linda, lindinha. – enquanto passava o dedo por entre os ferros da grade e alcançava sua
plumagem sedosa.

O espelho da cristaleira, encostado na parede em frente, ressaltava suas cores. A testa cinza-azulada, as bochechas de um cinza-pálido contrastavam com o verde brilhante da nuca e do pescoço.

– Linda, lindinha. – sussurravam para ela. Mesmo assim, não conhecera nenhum macho da sua espécie. Ano após ano, permanecia ora num, ora noutro pé, observando a rotina. Foi quando desenvolveu sutilezas nos currupacos só para agradar os donos da casa.

As brigas que assistia, entre eles, por trás das frágeis grades, e o sofrimento das horas do desatino tranqüilizavam seu estado de solteirice.

Era uma caturrita madura, feliz e solteira. A gaiola seria pequena e incômoda para dois. Não poderia dar seus pequenos pulinhos entre os estreitos poleiros, espanejar-se, arrepiando o pescoço no meio da manhã. A ração seria dividida. As pequenas sementes e os gominhos de frutas passadas, que sobravam à mesa, não estariam a salvo. As folhas crocantes, enfiadas por entre as hastes da gaiola, seriam disputadas e degustadas às pressas. Não, não! Era uma caturrita madura, feliz e solteira... Até o dia em que venderam a cristaleira com espelho e tudo e trocaram a gaiola de lugar.


As grades listravam agora outras imagens, novas, depois da janela. Abriu as asas em sobressalto. Abotoando e desabotoando os olhos emitiu currupacos estridentes, indecisos. Espichou o pescoço e intuiu ser – apenas um adorno deslocado. E passaram-se outros tantos anos.

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