sábado, 2 de janeiro de 2016

O VELHO - Conto de Athos Ronaldo Miralha da Cunha (Santa Maria, RS)

O VELHO

O Velho levantou cedo. Sempre fora madrugador, colocou água para esquentar e preparou o chimarrão. Mateava solito com seus pesares, longos mates nas intermináveis manhãs. O Velho estava acostumado com a solidão e os mesmos silêncios de todos os dias de sempre.

Eram poucos os ruídos em sua casa: o chiar da chaleira, o ronco do mate, o ronronar do gato e os latidos de um vira-lata no quintal. O gato e o cachorro eram as companhias do Velho e tumultuavam suas manhãs. Enquanto preparava o almoço – arroz, feijão, carne grelhada e salada – o Velho ouvia o rádio. Era nesse instante que se mantinha informado do que ocorria no mundo. À tarde o velho fazia longas caminhadas. Essa era rotina de um solitário e discreto velho. Um ancião com poucos amigos e pouca prosa. Conhecido, apenas, por Velho, o morador mais antigo da rua.

Seus dois filhos, João e Pedro, foram embora para a capital e já faz um bom tempo, a esposa, acometida por uma grave enfermidade, falecera poucos meses após a partida dos filhos. Assim, a sua principal companhia dos últimos vinte anos era a solidão repleta de silêncios. Acostumou-se a viver num exílio em sua própria casa. Isolado em meio ao alvoroço da vizinhança. Recluso em sua nostalgia. Certa feita, não reconheceu a própria voz ao xingar o cusco.

Os filhos visitavam o Velho no Natal e em algum feriado prolongado, mas nos últimos dois finais de ano o Velho passou a virada sozinho. Nesses dias o ronco do mate era melancólico. Semana passada recebera dos filhos um
cartão de “feliz ano novo”. O Joao, o filho solteiro, mandou um cartãozinho simplesmente assinado e Pedro uma breve carta com a figurinha do Papai Noel assinada pelos filhos. O Velho nem se deu conta que no bilhete de Pedro faltou a assinatura da esposa Matilde. Mais um Natal que passaria solitário na companhia do gato e do cachorro vira-latas. Ao abrir a correspondência dos filhos não deixou de recordar quando ele era o Papai Noel das crianças do bairro. Em outros tempos com os filhos ainda criança era ele que organizava as fogueiras de São João, os Natais dos pobres e presentes para gurizada em outubro. A esposa era uma parceira inseparável nas ações solidárias do Velho. Naqueles tempos de convívio familiar e solidariedade o Velho tinha um nome e era uma pessoa popular no bairro. Mas após todos esses anos era apenas, o Velho, e se contentava com isso. Ele não precisava de nome e sobrenome.

Nas últimas semanas o Velho estava acabrunhado. Sentia-se abandonado. O gato, o cachorro e o chimarrão já não preenchiam o marasmo do dia. O Velho não estava suportando a exagerada dose de infelicidade proporcionada pela solidão.

Na noite de 24 de dezembro o Velho resolveu armar a árvore para homenagear o menino Jesus. Arrumou o pinheirinho num canto da sala e colocou uma bola vermelha e outra amarela nos galhos mais embaixo. E ficou ali contemplando a sua árvore de Natal.

– Estou perdendo a peleia para a solidão, não sei se aguento até o próximo Natal – murmurou acariciando o gato ao seu lado no sofá.

À noite serviu a ração dos animais e preparou uma torrada de pão integral e um copo de suco de uva. Essa foi a ceia do Velho. Às 10 horas da noite a janta do Velho já estava feita. Apagou as luzes da casa, pôs uma cadeira no pátio e ficou em busca de uma estrela guia. Rememorando outros Natais.

Na manhã seguinte a rotina seria a mesma. Aquecer a água para o chimarrão e alimentar os bichos. Para o almoço faria um carreteiro no capricho e abriria uma garrafa de vinho. Meia garrafa seria suficiente para fazê-lo dormir a tarde toda. “Quem sabe dormir para sempre”, pensou.

Mas um barulho de carro em frente a casa chamou atenção do Velho. Um táxi. E desembarcaram o filho Pedro e os dois netos. O Velho sorriu – então lembrou que fazia tempo que não sorria – e quase chorou, mas homem não chora e enxugou uma incipiente lágrima.

Sentaram-se na cozinha, um antigo costume da família, e o Velho ofereceu um chimarrão ao filho. Os quatro na cozinha colocando a conversa em dia. Os dois guris já estavam crescidos.

– Dois homenzinhos – falou o Velho e alcançou a cuia para o filho Pedro.

– O mais velho vai para a oitava série e o mais novo para sexta.

– E a Matilde? Não quis vir?

– A Matilde nos abandonou. Fugiu de casa e foi morar na serra, faz seis meses que não tenho notícias dela.

– Os guris tomam chimarrão?

– Nunca tomaram. Nem sabem o que é mate.


Então, o Velho alcançou a cuia do chimarrão para um dos guris. E sorriu. Naquele momento percebeu que tinha vencido a peleia com a solidão.

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