sábado, 2 de janeiro de 2016

NOITE DE ENTREGA - Conto de Márcio Estamado (Álvares Machado, SP)

NOITE DE ENTREGA

-É ali, embaixo daquela ponte. Olha, o pessoal já chegou.

O marido de Lívia desceu do carro e ajudou-a a descarregar caixas com marmitas: arroz, feijão, batatas e couve.

Logo se juntaram a eles outros voluntários, que vinham carregando caixas de suco, cobertores e dezenas de peças de roupas para o inverno. E ao falar e lançar gracejos amistosos, cada membro do grupo dava a impressão de lançar da boca a fumaça de um cigarro invisível.

Quando a voluntária se voltou para abraçar o marido em agradecimento, ele já estava no banco do motorista. Deu a partida e gritou:

-Me liga quando essa palhaçada acabar!

Todos os presentes baixaram os olhos. Em resposta, Lívia sorriu:

-Não liguem, gente. O Mário não está nos seus melhores dias. É esse frio que estraga o humor dele.

Entre os ajudantes, cujo número aumentava, rumores de que o casamento de Lívia há muito era feito apenas de aparências.

Após mais alguns minutos, o trabalho começou. Como em todas as missões do grupo, uma corrente se formou. Da caixa térmica, trazida por um dos voluntários, saíam as marmitas preparadas por Lívia. Ela estava no fim da fila, junto com outros colegas, que distribuíam também roupas e os copos de suco.

O grupo de moradores de rua era
conhecido dos voluntários. Aquela seria a última ação do mês.

Lívia, sempre com um sorriso no rosto, distribuía as marmitas de mão em mão. O cheiro de corpos sem banho há dias, até semanas, parecia não a incomodar. Velhos, mulheres, crianças e moços vestindo trapos, blusas desgastadas ou simplesmente enrolados em velhos cobertores, recebiam a comida com olhos brilhantes. Poucos agradeciam, mas os voluntários já estavam acostumados a isso.

Algumas daquelas pessoas não eram familiares. Quando o trabalho estava quase no fim, um dos novos moradores da ponte agarrou o braço de Lívia:

-Tu vai ficar aqui.

A voluntária fixou o olhar no rosto do homem. Tinha a barba de dias, cabelos encaracolados e sujos, um hálito nauseante. Era magro, mas forte.

-Meu amigo, eu não posso ficar. Podemos conversar um pouco, mas eu tenho...

O homem teve suficiente agilidade para, sem largar a mão de Lívia, alcançar uma faca próxima a seus pés. Apertou-a contra seu pescoço, abraçando a mulher por trás.

-Vão embora! Vão embora ou eu furo a dona aqui!

Os integrantes do grupo voluntário ainda tentaram dissuadir o morador de rua a entregar a faca. Ao perceberem o sangue que já corria do pescoço da amiga, viram-se obrigados a entregar celulares e chaves dos carros que os tinham levado até ali.

A mulher sentia seu corpo apertado e o hálito quente do homem a gritar junto de seu ouvido:

-Vai, cambada. Se arranquem ou eu furo ela todinha!

Retiraram-se devagar, olhando para trás a cada passo. Em minutos, Lívia ouvia apenas a respiração ofegante do morador de rua.

-Amigo, eu estava apenas tentando ajudar. Conheço todo mundo aqui. Não há razão pra isso. Podemos conversar, o que acha?

-Cala a boca!

Só então Lívia percebeu que não contaria com a ajuda dos outros que ali estavam. Através dos olhos turvos de lágrimas, viu que todas aquelas pessoas já se recolhiam para comer sua refeição em paz.

O homem levou-a para um canto escuro, junto de uma das pilastras da ponte. Lívia escutava carros e caminhões passando em alta velocidade logo acima de sua cabeça. Tremia muito.

-Tira a roupa, dona.
-Mas..

-Tira, porra!

A voluntária obedeceu. Ameaçada pela faca, sob olhares indiferentes dos que comiam e tentavam se aquecer, Lívia despiu-se de casaco, blusa e calças.

-Tá tremendo, né? Tira a calcinha e o sutiã também. Vou te apresentar um amigo.

Ficou nua. Teve dúvidas sobre se a onda de arrepios que perpassava seu corpo vinha apenas da baixa temperatura. Foi então obrigada a deitar-se sobre um dos cobertores que havia doado. Sentiu o corpo daquele homem sobre o seu e a faca ainda em seu pescoço.

Abriu as pernas como se estivesse doando marmitas ou um copo de suco. Logo a dor foi substituída pelo prazer. E Lívia gemeu alto em meio àquela gente sem dignidade.

Quando tudo acabou, o homem mandou-a ligar para casa. A voluntária pegou o celular. Olhando fixamente para seu algoz, Lívia ouviu a voz do marido atendê-la com voz sonolenta. E sua voz ecoou no meio da fria madrugada.


-Mário, sou eu. Aconteceu uma coisa aqui. E eu não tenho hora pra voltar.

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