sábado, 2 de janeiro de 2016

IMPRESSÕES DE UM SONHO QUE EXISTIU - Conto de Glauco Callia (São Paulo, SP)

IMPRESSÕES DE UM SONHO QUE EXISTIU

Tento dizer algo sobre você à mim mesmo mas tudo que encontro são palavras mescladas com imagens lembranças, flashes de sensações, lapsos de uma noite levada pelas ondas, escondida sob a areia .Talvez a tentativa fosse de se conformar com tudo que aconteceu tentando, repito, tentando virar a página daquela noite cuja Lua conspirou para que meus lábios se atracassem nos teus, para que meus olhos com seus cílios raspassem nos teus e continuassem como um pincel no teu pescoço, pintando seu colo com matizes e vernizes que viraram segredos na palheta de nossas memórias cúmplices, na tela daquela noite eterna cuja única testemunha é uma tartaruga insólita que veio dar na praia, tirando um leve sorriso dos nossos rostos grudados....Eu quero mas preciso convencer-me da realidade de algumas muitas, poucas, horas nas quais brincamos de atores de Cortázar em um Jogo de Amarelinha...

Disse em teu ouvido poesias tiradas de experiências de outros tempos e você riu da minhas palavras que não se usam mais, olhou meu rosto sério ao pensar nas possibilidades dos acontecimentos dos tempos, do jogo caótico de amarelinha a ser desencadeada por um beijo em tua boca, pelo sequestro de sua língua, da garrafa de Porto que foi esvaziada nesta mesma boca, dando aos nossos beijos ébrios um ar de coisa profana, deitados pelo chão, eu sobre ti, você sobre mim, deitados não... rolando...de um lado a outro...não lembro bem quando o beijo começou, nem quando terminou, assim como um sonho sem antes nem porquês, um jogo onírico no qual voava pra longe da terra e de minha vida real tão repleta de pequenos problemas, plena de grãos de areias que emperram grandes engrenagens de
projetos que não se executarão, impressões ruins levadas longe pelo toque do teu corpo...

Como num sonho acordei sozinho em minha cama, abalado pelo vazio das sensações dos sonhos que acabam, dos livros que se fecham após a segunda página, das histórias que terminam sem final, das bocas que se separam levando aos olhos um sentimento de melancolia...

Acordei sozinho. Como piada de fauno, olhei no espelho sem me reconhecer, fitei longamente meus olhos que há poucas horas só fitavam o teu olhar castanho... Tentando sem sucesso com as mãos baixar os poucos fios de cabelo ainda com a sensação mágica dos teus dedos por dentre eles, a camisa entreaberta exatamente no espaço onde recostava sua cabeça e suspirava segredos de menina que jamais vou entender...Esta manhã sou uma imagem fossilizada da noite passada, apenas com as impressões marcadas da sua existência...sei que fiquei horas imóveis sentado na cama, olhando para os espelho e ao fechar os olhos movido pelo sono da noite não dormida, os mesmos olhos fechados voltavam a ver os contornos dos teus ombros, os segredos displicentes do teu decote, pernas, braços, nuca e todos aqueles espaços infinitos do tempo duma noite, que como imagens dum caleidoscópio mágico, tentam reconfigurar sem muita clareza a existência das horas passadas...


Penso em você e confundo a nossa noite com poesias de Neruda, confundo os nossos tempos com os tempos que nunca tive, confundo meu olhar no espelho, nos olhos que se confundiram com os teus, confundo tudo e me confundo nos restos dos dois espalhados pela manhã, no teu cheiro em minha roupa, no fio de cabelo que ficou preso em minha camisa como uma corda de cabo de guerra do jogo sem vencedores que ambos perdemos ao nascer do dia, agora você dorme, a boca que era minha agora pende entreaberta num suspiro, os olhos infinitos fechados movem-se denunciando os sonhos que eu aqui como voyeur imaginário queria descobrir, entrar nos teu sonhos e conhecer os teus desejos, para que, na próxima madrugada infinita, será que existirá, se é que existiu, poder assim os realizar. Caio na cama e vencido pelo cansaço tento ainda escavar na memória recente os traços da noite passada, mas meus tempos me vencem, fico imóvel e adormeço na esperança do sonho recomeçar...

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