QUEM
SABE UM DIA ELE VIRÁ ME BUSCAR
O
carteiro me entregou uma caixa que vinha da Amazônia. Subi as escadas correndo
e abri o sedex, o isopor, até chegar a uma garrafa com um líquido cor de
bronze. Liguei para duas pessoas amigas, com quem costumava realizar práticas
esotéricas, e uma delas marcou encontro comigo na minha casa, sábado, às dez
horas da manhã. Éramos duas mulheres sentadas na sala de estar, olhando para um
cálice de cristal sobre a mesinha de centro. Decidimos que sim, íamos conhecer
o Santo Daime, ou ayahuasca (para os índios). Era uma época de profundo
desencanto e tínhamos ouvido dizer e lido que essa experiência nos levaria a
estabelecer uma conexão com o divino.
Bebemos
do líquido amargo, era espesso, Daime chocolate, meu amigo escrevera no
bilhete. Minha amiga deitou no sofá e eu sentei no chão. O chá não fazia
efeito, comentamos. De repente, ela me olhou e gritou: “Não boceja, não boceja,
tu estás te transformando em uma rosa”. Senti vontade de ir ao banheiro e
encontrei tudo diferente. Havia o som de uma cachoeira, o vaso sanitário não
era branco, tinha o formato de uma grande flor cor de rosa, decorada com folhas
verdes. Muito grande para
uma pessoa de estatura média, talvez até para uma
pessoa alta. Saí de lá com muito frio e me enrolei numa pashmina, enquanto
voltava para a sala. O espelho da parede refletia um rosto de índia, mas me
reconhecia nele. A porta da rua inteiramente coberta de besouros nas cores mais
fulgurantes que já vira e um som de tambores que vinha dos móveis de madeira.
Minha amiga quis acender uma vela para a Senhora Rainha da Floresta e a vela,
sobre o aparador, foi crescendo, a chama quase alcançava o teto.
Ela
voltou para seu apartamento bem decorado, sua vida de compromissos sociais e eu
fiquei sozinha. Não podia envolver filhos numa experiência daquelas. Tive
outras experiências, nas outras assisti filmes, que nunca entendi, configurados
no mofo e nas manchas das medianeiras dos edifícios vizinhos.
Um
dia eu estava ao telefone, sentada numa poltrona bem em frente àquela porta que
tinha ficado coberta de besouros coloridos. Ela tinha uma portinhola de vidro
com saliências, que era aberta para saber quem batia. Enquanto esperava a
pessoa com quem precisava falar, configurou-se no vidro a figura de um índio.
Não era um ser humano, era o desenho de um índio. A figura se movimentava,
acompanhava com o olhar quando eu passava, caminhando pelo corredor. Nunca
senti medo, nem quando sobre sua cabeça se desdobravam outras inúmeras figuras,
incluindo pessoas das mais diversas épocas do passado e constantemente uma
quimera.
Era
uma época bem difícil, de filhos que não gostavam muito de estudar, de pais com
problemas de saúde, de solidão.
Passei
a dar aula num curso de inglês que, somando ao meu salário do estado, dobrava
os meus ganhos mensais. Podia ajudar mais os meus filhos e continuava
escrevendo obsessivamente. Tinha boas amigas e amigos em Porto Alegre, que não
me abandonaram nunca, embora não fossem de convivência íntima. Minha vida se
organizava, com problemas, mas no geral estava normalizada.
Um
dia, enquanto telefonava apressadamente, procurei o índio e não o encontrei.
Fiquei preocupada. Não voltaria? E a quimera?
Nunca
mais o vi e, em momentos difíceis, momentos de tomar decisões, senti falta de
sua figura, que tinha sido vista pela minha mãe, por um dos meus filhos e por
uma prima de Uruguaiana.
Deixei
de sentir falta dele anos depois. Agora nem cogito sobre a possibilidade de ter
um selvagem constantemente acompanhando meus passos. Mas ele não era selvagem –
tinha as feições delicadas como as de um anjo. Quem sabe um dia ele virá me
buscar e me levará para perto das estrelas.
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