sábado, 2 de janeiro de 2016

QUEM SABE UM DIA ELE VIRÁ ME BUSCAR - Crônica de Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)

QUEM SABE UM DIA ELE VIRÁ ME BUSCAR

O carteiro me entregou uma caixa que vinha da Amazônia. Subi as escadas correndo e abri o sedex, o isopor, até chegar a uma garrafa com um líquido cor de bronze. Liguei para duas pessoas amigas, com quem costumava realizar práticas esotéricas, e uma delas marcou encontro comigo na minha casa, sábado, às dez horas da manhã. Éramos duas mulheres sentadas na sala de estar, olhando para um cálice de cristal sobre a mesinha de centro. Decidimos que sim, íamos conhecer o Santo Daime, ou ayahuasca (para os índios). Era uma época de profundo desencanto e tínhamos ouvido dizer e lido que essa experiência nos levaria a estabelecer uma conexão com o divino.

Bebemos do líquido amargo, era espesso, Daime chocolate, meu amigo escrevera no bilhete. Minha amiga deitou no sofá e eu sentei no chão. O chá não fazia efeito, comentamos. De repente, ela me olhou e gritou: “Não boceja, não boceja, tu estás te transformando em uma rosa”. Senti vontade de ir ao banheiro e encontrei tudo diferente. Havia o som de uma cachoeira, o vaso sanitário não era branco, tinha o formato de uma grande flor cor de rosa, decorada com folhas verdes. Muito grande para
uma pessoa de estatura média, talvez até para uma pessoa alta. Saí de lá com muito frio e me enrolei numa pashmina, enquanto voltava para a sala. O espelho da parede refletia um rosto de índia, mas me reconhecia nele. A porta da rua inteiramente coberta de besouros nas cores mais fulgurantes que já vira e um som de tambores que vinha dos móveis de madeira. Minha amiga quis acender uma vela para a Senhora Rainha da Floresta e a vela, sobre o aparador, foi crescendo, a chama quase alcançava o teto.

Ela voltou para seu apartamento bem decorado, sua vida de compromissos sociais e eu fiquei sozinha. Não podia envolver filhos numa experiência daquelas. Tive outras experiências, nas outras assisti filmes, que nunca entendi, configurados no mofo e nas manchas das medianeiras dos edifícios vizinhos.

Um dia eu estava ao telefone, sentada numa poltrona bem em frente àquela porta que tinha ficado coberta de besouros coloridos. Ela tinha uma portinhola de vidro com saliências, que era aberta para saber quem batia. Enquanto esperava a pessoa com quem precisava falar, configurou-se no vidro a figura de um índio. Não era um ser humano, era o desenho de um índio. A figura se movimentava, acompanhava com o olhar quando eu passava, caminhando pelo corredor. Nunca senti medo, nem quando sobre sua cabeça se desdobravam outras inúmeras figuras, incluindo pessoas das mais diversas épocas do passado e constantemente uma quimera.

Era uma época bem difícil, de filhos que não gostavam muito de estudar, de pais com problemas de saúde, de solidão.

Passei a dar aula num curso de inglês que, somando ao meu salário do estado, dobrava os meus ganhos mensais. Podia ajudar mais os meus filhos e continuava escrevendo obsessivamente. Tinha boas amigas e amigos em Porto Alegre, que não me abandonaram nunca, embora não fossem de convivência íntima. Minha vida se organizava, com problemas, mas no geral estava normalizada.

Um dia, enquanto telefonava apressadamente, procurei o índio e não o encontrei. Fiquei preocupada. Não voltaria? E a quimera?

Nunca mais o vi e, em momentos difíceis, momentos de tomar decisões, senti falta de sua figura, que tinha sido vista pela minha mãe, por um dos meus filhos e por uma prima de Uruguaiana.


Deixei de sentir falta dele anos depois. Agora nem cogito sobre a possibilidade de ter um selvagem constantemente acompanhando meus passos. Mas ele não era selvagem – tinha as feições delicadas como as de um anjo. Quem sabe um dia ele virá me buscar e me levará para perto das estrelas.

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