domingo, 22 de novembro de 2015

CUCO - Conto de Marcio Estamado (Álvares Machado, SP)

CUCO

Queria que a mulher estivesse sob as rodas da pick-up.Obrigar o velho a ficar lá, naquele fim de mundo, não era justo. Ainda que tivesse abandonado tudo e todos. Minhas irmãs, todas mais velhas, nem se importaram. Disseram que era longe, que o carro iria atolar. Eu, movido mais por curiosidade do que por amor, resolvi fazer aquilo pelo velho. Merecia, afinal.

Por vezes, minha vista nublava-se. Vinham à tona as recordações de uma infância marcada (e salva) pela presença rude, mas inspiradora de meu pai. Nunca fora homem de cultura. Sabia, porém, fazer muito com pouco. Inventava brincadeiras, era criativo, e isso encantava meu mundo de menino. Por alguns anos, minhas tardes reservaram muitas surpresas, engendradas pela mente privilegiada de um simples relojoeiro.

Não eram apenas as lágrimas a turvar-me a visão. Minhas memórias também manquitolavam, num esforço contínuo para encadear fatos e datas.

A solidão da noite foi desvanecendo essas brumas, aos poucos. Mas resta sempre um vazio a ser preenchido. É como se essa lembrança fosse um galho teimoso de árvore, que depois da tempestade pendura-se lá no alto, prestes a atingir o
solo. Mas que não cai. Um fugaz perfume, uma nota perdida, uma sensação. Tudo isso pode ser esse galho. Para mim, ele era uma brincadeira que meu pai fazia para me distrair em noites de susto e de insônia. Lembrei-me de nossas risadas, do cheiro do velho cobertor. Entretanto, o motivo dessa alegria teimava em não sair das sombras.

O carro pareceu estacionar por conta própria. Havia uma cerca de arame, uma porteira. E lá, bem ao fundo, uma luminosidade débil, entre copas opulentas, revelava a presença humana no campo. Soprava um ar frio de prenúncio de inverno. O barulho das correntes pareceu ser um relâmpago que, brevemente, iluminou meu cérebro cansado. Todavia, a escuridão em minha mente voltou.

As preocupações atuais retornaram então, com força. Sabia que meu pai tinha tido outros filhos com essa mulher. Que idades teriam? Seriam parecidos conosco? Talvez nem soubessem escrever o próprio nome. E esse funeral, à moda antiga? Meu pai realmente apaixonara-se por ela. Ao estacionar em frente da casa, fui tomado por uma estranha sensação de conforto. Logo à porta, a viúva. Tez morena, nem velha, nem moça. Tinha um sorriso conformado nos lábios, e conversava calmamente com um matuto.

Ela, após reconhecer-me, ofereceu cachaça e biscoitos. Tudo muito simples. Identifiquei meu pai nas roupas gastas daquela gente, em seus sorrisos melancólicos, no assoalho barulhento da casa velha. Fui até o caixão. Derramei lágrimas mais saudosas do que tristes, e sentei-me. Durante algumas horas fui absorvido por aquele estranho ritual. Nem em meus mais criativos devaneios vira-me “bebendo” o corpo de meu pai. Já era madrugada alta quando começaram a conversar mais animadamente. Alguns até cantavam.

A agitação atraiu alguns vizinhos e acordou uma menina, que devia então ter cinco ou seis anos de idade. Pelas feições, logo vi que era a temporã do velho. O mesmo olhar curioso, e as covinhas que todos os outros irmãos também tinham. Sonolenta, pegou-se à saia da mãe. Mas logo transitava por entre senhoras gordas e caipiras cheirando a pinga. Então, de maneira espantosa, aquela velha brincadeira de minha infância tomou forma novamente, bem diante de meus olhos.

A menina, agilmente, havia se empoleirado em um banco. O que fez em seguida arrancou risos dos mais ébrios, e um soluço de meu peito. Com a mortalha, descobria e tornava a cobrir o rosto de meu pai, branco como cera. Sem sequer notar-lhe as feições, a pequena sorria a cada aparição do semblante cadavérico e gritava, com voz fina:

-Cuco, cuco!


Da cozinha, vinha a fragrância de um bolo recém-tirado do forno.

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