CUCO
Queria que a
mulher estivesse sob as rodas da pick-up.Obrigar o velho a ficar lá, naquele
fim de mundo, não era justo. Ainda que tivesse abandonado tudo e todos. Minhas
irmãs, todas mais velhas, nem se importaram. Disseram que era longe, que o
carro iria atolar. Eu, movido mais por curiosidade do que por amor, resolvi
fazer aquilo pelo velho. Merecia, afinal.
Por vezes, minha
vista nublava-se. Vinham à tona as recordações de uma infância marcada (e
salva) pela presença rude, mas inspiradora de meu pai. Nunca fora homem de
cultura. Sabia, porém, fazer muito com pouco. Inventava brincadeiras, era
criativo, e isso encantava meu mundo de menino. Por alguns anos, minhas tardes
reservaram muitas surpresas, engendradas pela mente privilegiada de um simples
relojoeiro.
Não eram apenas
as lágrimas a turvar-me a visão. Minhas memórias também manquitolavam, num
esforço contínuo para encadear fatos e datas.
A solidão da
noite foi desvanecendo essas brumas, aos poucos. Mas resta sempre um vazio a
ser preenchido. É como se essa lembrança fosse um galho teimoso de árvore, que
depois da tempestade pendura-se lá no alto, prestes a atingir o
solo. Mas que
não cai. Um fugaz perfume, uma nota perdida, uma sensação. Tudo isso pode ser
esse galho. Para mim, ele era uma brincadeira que meu pai fazia para me
distrair em noites de susto e de insônia. Lembrei-me de nossas risadas, do
cheiro do velho cobertor. Entretanto, o motivo dessa alegria teimava em não
sair das sombras.
O carro pareceu
estacionar por conta própria. Havia uma cerca de arame, uma porteira. E lá, bem
ao fundo, uma luminosidade débil, entre copas opulentas, revelava a presença
humana no campo. Soprava um ar frio de prenúncio de inverno. O barulho das
correntes pareceu ser um relâmpago que, brevemente, iluminou meu cérebro
cansado. Todavia, a escuridão em minha mente voltou.
As preocupações
atuais retornaram então, com força. Sabia que meu pai tinha tido outros filhos
com essa mulher. Que idades teriam? Seriam parecidos conosco? Talvez nem
soubessem escrever o próprio nome. E esse funeral, à moda antiga? Meu pai
realmente apaixonara-se por ela. Ao estacionar em frente da casa, fui tomado
por uma estranha sensação de conforto. Logo à porta, a viúva. Tez morena, nem
velha, nem moça. Tinha um sorriso conformado nos lábios, e conversava
calmamente com um matuto.
Ela, após
reconhecer-me, ofereceu cachaça e biscoitos. Tudo muito simples. Identifiquei
meu pai nas roupas gastas daquela gente, em seus sorrisos melancólicos, no
assoalho barulhento da casa velha. Fui até o caixão. Derramei lágrimas mais
saudosas do que tristes, e sentei-me. Durante algumas horas fui absorvido por
aquele estranho ritual. Nem em meus mais criativos devaneios vira-me “bebendo”
o corpo de meu pai. Já era madrugada alta quando começaram a conversar mais
animadamente. Alguns até cantavam.
A agitação
atraiu alguns vizinhos e acordou uma menina, que devia então ter cinco ou seis
anos de idade. Pelas feições, logo vi que era a temporã do velho. O mesmo olhar
curioso, e as covinhas que todos os outros irmãos também tinham. Sonolenta,
pegou-se à saia da mãe. Mas logo transitava por entre senhoras gordas e
caipiras cheirando a pinga. Então, de maneira espantosa, aquela velha
brincadeira de minha infância tomou forma novamente, bem diante de meus olhos.
A menina,
agilmente, havia se empoleirado em um banco. O que fez em seguida arrancou
risos dos mais ébrios, e um soluço de meu peito. Com a mortalha, descobria e
tornava a cobrir o rosto de meu pai, branco como cera. Sem sequer notar-lhe as
feições, a pequena sorria a cada aparição do semblante cadavérico e gritava,
com voz fina:
-Cuco, cuco!
Da cozinha,
vinha a fragrância de um bolo recém-tirado do forno.
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