sábado, 28 de novembro de 2015

DO OUTRO LADO DA ESQUINA... - Crônica de Gilka Coimbra (Uruguaiana, RS)

DO OUTRO LADO DA ESQUINA NO INICIO DO BECO

Desce uma névoa fria e a cidade dorme. Amparados um no outro, os corpos entrelaçados abraçam a criança que no meio deles se aquece. A coberta estreita resiste à tensão da mão que a segura para que as costas da mulher não fiquem a descoberto. Ele precisa protegê-los – a mulher e o filho –  por isso se esforça e leva avante o desafio de sobreviver.

Na rua deserta, só o vento anda. Desliza, esfregando-se das soleiras das portas às pontas das calhas geladas nas quinas dos telhados. Numa dança solitária e voluptuosa a corrente de ar circula, volteia, retorna e quer entrar no pequeno casebre. O homem sente o frio que sopra pelas frestas e aconchega mais o pequeno corpo que choraminga. Estica o braço e ajusta a proteção na tentativa do amparo. No movimento, a cama de ferro ringe. Encontrou-a abandonada na lateral de uma casa de onde partia um caminhão de mudança. Sem uma palavra, mas com um olhar de consentimento e um movimento rápido de cabeça o homem do caminhão passa adiante a velha cama. Proprietário agora, a cama é seu primeiro bem.

A rua sempre o acolhera. E assim foi quando tomou posse do casebre abandonado, em ruínas, meio ladeado no fim beco sem saída. Deitados os três, ele permanece acordado, não quer que ela desperte para a vida de ninharias.  Sem sono, observa o fogo trêmulo e mirrado, entre os tijolos no
chão, que acompanha a direção do vento e de suas lembranças. Pequenas línguas de fogo, testemunhas rasteirinhas da miséria, resistem acesas.  Solidárias.

Sem trabalho e sem aparência confiável perambulava catando comida. Sem ânimo, só a fome fazia eco. Perdido por encruzilhadas difíceis, em uma delas, alguém esbarrou nele com pressa como se a polícia viesse atrás. Quando a viu, sem muito pensar pegou-a pela mão e, em desenfreada carreira, fugiram juntos. Foi necessidade a primeira vista: amigos, amantes, irmãos. Foi pele, foi química. Família.

Juntaram os trapos, os cheiros, os corpos, as poucas ambições para partilhar na pobreza – um dia de cada vez.  Felizes e amparados um no outro, dividiam o teto, a comida e a cama de ferro. Faziam coincidir, com voracidade, o desejo carnal nos braços um do outro por paixão e para distrair a indigência.

E o tempo passou e as ilusões fizeram moradas e a vida parecia melhor. Ele arrumou um serviço. No mesmo dia recebeu a notícia de que ela estava esperando criança.  Mais uma boca para aplacar a fome e agasalhar do frio. Perdeu o sono. A fome que, bem ou mal, matavam dia por vez naquele longo inverno continuaria seu curso.

Um lusco-fusco avermelhado pinta por dentro o velho casebre. As brasas ainda ardem na noite fria e o homem em alerta, que desde então, só cochila – desperta.


O vento assobia, não dá trégua.  Levanta da cama e ela ringe como quem adverte. Cobre-os com cuidado, aconchegando a coberta às costas e aos pezinhos da pequena criança para compensar sua ausência. Vai até a pequena janela e olha. Um vulto branco o surpreende, sacode-se como alguém que acena. Abre a porta e recebe a friagem da madrugada, primeiro no rosto e depois no corpo todo, crestando seus pelos. Dá mais alguns passos para distinguir melhor a figura lá do outro lado da esquina no início do beco. Ouve o choro da criança, mas vai em frente. É quando a vê – uma grande faixa de pano, presa por só um dos lados no poste. Enrodilha-se e, quando se estende ele lê: Campanha do Agasalho – Participe!

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