DO OUTRO LADO DA
ESQUINA NO INICIO DO BECO
Desce uma névoa
fria e a cidade dorme. Amparados um no outro, os corpos entrelaçados abraçam a
criança que no meio deles se aquece. A coberta estreita resiste à tensão da mão
que a segura para que as costas da mulher não fiquem a descoberto. Ele precisa
protegê-los – a mulher e o filho – por
isso se esforça e leva avante o desafio de sobreviver.
Na rua deserta, só
o vento anda. Desliza, esfregando-se das soleiras das portas às pontas das
calhas geladas nas quinas dos telhados. Numa dança solitária e voluptuosa a
corrente de ar circula, volteia, retorna e quer entrar no pequeno casebre. O
homem sente o frio que sopra pelas frestas e aconchega mais o pequeno corpo que
choraminga. Estica o braço e ajusta a proteção na tentativa do amparo. No
movimento, a cama de ferro ringe. Encontrou-a abandonada na lateral de uma casa
de onde partia um caminhão de mudança. Sem uma palavra, mas com um olhar de
consentimento e um movimento rápido de cabeça o homem do caminhão passa adiante
a velha cama. Proprietário agora, a cama é seu primeiro bem.
A rua sempre o
acolhera. E assim foi quando tomou posse do casebre abandonado, em ruínas, meio
ladeado no fim beco sem saída. Deitados os três, ele permanece acordado, não
quer que ela desperte para a vida de ninharias.
Sem sono, observa o fogo trêmulo e mirrado, entre os tijolos no
chão,
que acompanha a direção do vento e de suas lembranças. Pequenas línguas de fogo,
testemunhas rasteirinhas da miséria, resistem acesas. Solidárias.
Sem trabalho e sem
aparência confiável perambulava catando comida. Sem ânimo, só a fome fazia eco.
Perdido por encruzilhadas difíceis, em uma delas, alguém esbarrou nele com
pressa como se a polícia viesse atrás. Quando a viu, sem muito pensar pegou-a
pela mão e, em desenfreada carreira, fugiram juntos. Foi necessidade a primeira
vista: amigos, amantes, irmãos. Foi pele, foi química. Família.
Juntaram os
trapos, os cheiros, os corpos, as poucas ambições para partilhar na pobreza –
um dia de cada vez. Felizes e amparados
um no outro, dividiam o teto, a comida e a cama de ferro. Faziam coincidir, com
voracidade, o desejo carnal nos braços um do outro por paixão e para distrair a
indigência.
E o tempo passou e
as ilusões fizeram moradas e a vida parecia melhor. Ele arrumou um serviço. No
mesmo dia recebeu a notícia de que ela estava esperando criança. Mais uma boca para aplacar a fome e agasalhar
do frio. Perdeu o sono. A fome que, bem ou mal, matavam dia por vez naquele
longo inverno continuaria seu curso.
Um lusco-fusco
avermelhado pinta por dentro o velho casebre. As brasas ainda ardem na noite
fria e o homem em alerta, que desde então, só cochila – desperta.
O vento assobia,
não dá trégua. Levanta da cama e ela
ringe como quem adverte. Cobre-os com cuidado, aconchegando a coberta às costas
e aos pezinhos da pequena criança para compensar sua ausência. Vai até a
pequena janela e olha. Um vulto branco o surpreende, sacode-se como alguém que
acena. Abre a porta e recebe a friagem da madrugada, primeiro no rosto e depois
no corpo todo, crestando seus pelos. Dá mais alguns passos para distinguir
melhor a figura lá do outro lado da esquina no início do beco. Ouve o choro da
criança, mas vai em frente. É quando a vê – uma grande faixa de pano, presa por
só um dos lados no poste. Enrodilha-se e, quando se estende ele lê: Campanha do
Agasalho – Participe!
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