A VIDA NO FINAL
DOS SONHOS
Um homem caminha
na rua.
Um homem, que
alguém desavisado daria por perdido na rua, de repente sorri, um simulacro de
sorriso, quase um ricto facial, algo indefinido, mas que, ao se reparar no
intenso brilho que perpassa seu rosto neste breve instante, poderia traduzi-lo como o lampejo de uma
antiga esperança ou apenas a expectativa nervosa diante de um destino
inevitável.
...
Chego a esta
casa. Não lembro quando aqui vim a primeira vez. No entanto, agora já me
habituei, afinal quase tudo na vida consiste em repetições, até quase não
notarmos a diferença entre esta casa, estes móveis, esta vida e as outras. Na
realidade, nesses momentos não me lembro de outras casas ou de outras vidas que
tenha tido. Sempre que penso em mim, me vejo neste sobrado. Mudam somente as
cores, a idade, são sempre as mesmas pessoas, o mesmo cenário.
Subo a escada, e
ao subir carrego junto comigo a sensação estranha de estar indo a lugares cada
vez mais altos, mas ao invés de me dar medo, essa perspectiva me encoraja e ao
mesmo tempo me causa um certo aperto no peito, pela repetição de uma rotina,
pois ao final fica sempre um vazio, fruto do resultado de nunca se chegar a
algum céu ou terraço inesperado, lugar onde eu iria, enfim, encontrar a
redenção ou apenas respostas, ainda que simples.
Assim, não sem
hesitação, detenho-me no segundo piso e dirijo-me a antessala, que logo após,
dá lugar a uma sacada.
Daqui deste
ponto, tenho a clara visão dos diversos outros acessos, posso vislumbrar a
sacada em todo seu robusto pórtico e porta entalhados, no fundo os quartos com
seus móveis pesados e, à frente, num espaço amplo, a sala, em que imponentes se
mostram, em sua lateral, duas grandes janelas, quais molduras de quadros
antigos, em que na pintura já se vão esvaindo as cores e, onde, nesse momento,
é retratado de forma impositiva um crepúsculo de sangue, que em sua força
ultrapassa os limites da tela e vai colorindo todos os recantos.
Reconheço, todas
as vezes, com um leve laivo de assombro, mas, por paradoxal que seja, sem
possíveis dúvidas, o local em que me encontro.
Num torvelinho
estranho, como se num movimento circular de atos, sempre me vejo neste sobrado
antigo, habitado por fantasmas, em que se desenrola uma repetida história,
dividida em atos, no qual atores diversos se esmeram em falas catárticas e
trágicas.
Eles, os
fantasmas, são tantos, no quarto da frente, a menina - que me fita intensa e
carinhosamente e cujo olhar imediatamente me evoca lembranças, mas que ao me
aproximar, como num passe de mágica se desvanece no ar, estranho fantasma em
meio a fantasmas mais acessíveis-, sempre a tomar sol (no canto da casa,
iluminado e quente o dia inteiro); na sala central, ao lado da lareira, a velha
vó, sentada em sua cadeira de balanço; no outro quarto, na lateral superior do
sobrado, na sacada, uma moça esbelta e feliz espreita a rua; na cozinha, em que
a mesa se encontra impecavelmente posta, um homem, cujo semblante revela uma
aparência que mistura algo entre a angústia e a compenetração, apresenta-se
quase imóvel, sentado numa cadeira antiga, como se à espera de uma última ceia.
...
Este é o cenário
de meus sonhos, um sobrado, um sobrado velho e decadente, onde incessantemente
eu me via adentrar em cada um de seus aposentos, e ver seus habitantes
repetindo seus gestos, suas falas e, ao fim, neste restrito mundo, cumprindo
seus destinos.
Novamente eu me
encontrava ali, sozinho com meus fantasmas, mas somente a noite. Deve ser a
decantada familiaridade dos fantasmas com a noite, relatada em inúmeras
tragédias e romances como algo que sempre intriga, a eterna dúvida, por que
será que aparecem somente à noite, estarão ligados a sonhos? O amanhecer, com
sua realidade inexorável, os desfaz? Ou estarão ligados a desígnios universais,
como o adágio, conheceis a verdade (a luz) e ela vos libertará?
...
São sete horas,
lá fora já está escuro.
Um ruído ao meu
lado.
- Boa noite diz
a avó. Aliás, como sempre faz assim que me vê. E, logo após, incontinenti,
inevitavelmente, começa a falar de modo ininterrupto. Entretanto, apesar da
ansiedade e firmeza que transparecem em seu agudo tom de voz secundado por seus
gestos, o que se ouve concretamente é uma fala calma, monótona, é quase a
repetição de um mantra, um rosário de palavras, repleto de conselhos. Percebo
de forma clara que, nestes momentos, sou o filho que morreu, talvez seja também
o neto. De tudo o que é dito, quase em forma de apelo, vejo que suas histórias
me remetem ao passado, a coisas que somente através da repetição poderia lograr
entender. Nestes intervalos, vislumbro toda uma mutação, era a avó, mas, ao
mesmo tempo a mãe, que voltava a ser o centro, a mão que guiava a família por
um caminho, ainda que incerto e tortuoso.
Fui para a
cozinha.
- Bom dia, me
saudou de forma circunspecta o homem sério sentado à cabeceira da mesa. Ao
contrário da vó, este não falava quase nada, somente de intervalos em
intervalos, soltava exclamações sobre a urgência de se fazer o que tem que ser
feito, de persistir em sua missão, e, ao final, em tom de lamento, sobre a
ausência de sentido nestas mortes decorrentes da pura e instintiva violência,
ainda presentes em seres contingencialmente humanos. Jamais mudava de lugar,
era como se ele e tudo o que dizia estivesse preso a uma redoma inescapável, e
que a verdade e urgência que exprimia era apenas um alerta ante a iminência,
não da morte, mas dos desígnios de sua fala. Apesar disso, e da parcimônia dos
gestos, sempre fazia o sinal da cruz, como se desse graças aos ensinamentos,
este nobre alimento do espirito.
Tudo isso, a
cozinha, o fogão, a mesa posta e a luz muito fraca, se confundindo com os tons
do ocaso e se diluindo na imensidão dos cômodos traduzia um palco perfeito para
o meu acompanhante que, calado, com os olhos postos no prato, parecia aguardar
os desdobramentos da peça.
Paredes de um
verde claro, meio decompostas, com manchas escuras de mofo, já havia me
habituado a isso.
...
O menino oferece
uma flor. A menina aceita a flor, um sorriso no rosto do menino, um rubor no
rosto da menina. Um menino, uma menina, dois rostos, dois sorrisos, e uma flor.
Uma menina que desde pequena tinha visões, uma menina que podia prever o
futuro.
Nesse dia previu
sua morte e a de sua família, uma visão terrível, soldados com rostos crispados pela violência,
correndo nas ruas, prendendo, torturando e, num ódio cego, em atos selvagens,
matando de forma bárbara, via tudo isso como se em uma sequência de imagens,
primeiro os tiros, depois o sangue vertendo dos corpos, a expressão de dor e
terror, e o brilho dos olhos a se desvanecer lentamente, um a um, via os
membros de sua família morrendo, um a um, apenas o menino...
...
Fecho novamente
os olhos e, neste breve instante as lembranças voltam fortes.
...
Era chegado o
inverno, período em que a cidade vê-se envolta em brumas.
A chuva fina, a
inocência infantil e o terror escancarado no rosto molhado, olhos desmesuradamente
abertos, olhos que viam além do simplesmente apreensível, viam o instante
seguinte, os passos que a vida dos homens ainda não deu e que a ninguém deveria
ser dado perscrutar.
Faz-se um grande
silêncio, seguido de murmúrios, troca de segredos, feitura de planos.
Pensaram no
início em fugir, no entanto, mais que todos, sabiam que ninguém foge ao destino
retratado nos sonhos, resolveram então desistir deste plano.
Entretanto,
sabedores que de suas vidas restava apenas um lapso de tempo, puseram-se de
acordo, elaboraram pedidos, fizeram preces. Em seus novos planos imaginavam-se
apenas personagens de sonhos e, nessa condição, em que sonhos se contrapunham à
realidade, poderiam, num outro arranjo do destino, completar suas vidas. A
morte não existiria, pois, sendo sonhos, nada poderia atingi-los, nem o descaso
dos homens, nem o esquecimento das mentes. Num recanto oculto, subsistiriam, e
a qualquer noite poderiam voltar e completar seus ciclos, repetir suas vidas.
...
Sobressaltado,
acordo. São sempre os mesmos sonhos, já não sei nem mesmo qual é minha
realidade. E sempre o sobrado.
Afasto o pano
áspero das cortinas e olho para a rua movimentada.
A vida passa lá
fora. Daqui desta sacada, vislumbra-se quase todo este bairro, antigo reduto da
aristocracia, agora relegado ao descaso estatal, como se fossem ruínas antigas,
nos remetendo a algo que não deve ser lembrado.
Mas eis que
surge, ao derredor, de forma presente, quase física, esta aura de mistério que
subsiste em todas as coisas que habitam estes lugares e que, sem pedir licença,
propõe enigmas a serem desvendados.
Vejo a rua, suas
lojas, a rotina absurda de seus míseros habitantes, transformados em meros
objetos, padronizados, embrutecidos, como se fossem a produção em série de uma
linha de montagem, onde demônios tivessem tomado a direção.
Inquieto, subo
ao terraço.
Olho o bairro, a
cidade ao meu redor, e vejo, numa época
anterior, que precedeu a guerra e a decadência, - a vida simples das
pessoas, o riso nas varandas, as cadeiras nas calçadas e o ritmo suave das
conversas ao final da tarde.
No entanto, tal
imagem se me apresenta como acontecida em uma época demasiado remota, quase
anterior aos prédios, à cidade, como se fosse, num quadro da história - o
resquício dos hábitos de antigas reduções guaranis jesuíticas, impregnadas de
antigos e não corrompidos ensinamentos cristãos, que encontraram guarida em
almas simples.
Paro novamente,
não, não é isso, certamente é apenas a lembrança, sempre presente, de que em
algum lugar, algum dia, existiu um lugar onde os homens eram justos, de uma
pureza de pensamentos ainda não corrompidos por discursos de supremacia e
violência.
Inquieto,
recolho-me ao escritório.
Lentamente,
livre de quaisquer amarras, olho ao meu redor e começo a divagar, e nessa
fronteira livre entrelaço meus confusos pensamentos, e em cada coisa vejo
espaços a serem explorados.
As tapeçarias e
seus estranhos desenhos, as pessoas e suas enigmáticas vidas.
Quedo-me
estático e, parece-me, nesse instante, compreender parte deste enigma.
É isso, os
fantasmas impediam-se de ser só, preenchiam meus pensamentos, que é onde se
instala a solidão. Era como se realmente houvesse, em algum lugar, paz, aonde
deuses e homens fossem parte única de um futuro mundo feliz e determinado pela
certeza.
Nesse instante o
barulho familiar do trem interrompe meus devaneios.
Certo, não há
descanso. Mas não se sabendo tem de se buscar. E o que se procura
concretamente? Nem mesmo isso se sabe. Talvez nada de real se procure e somente
reste tempo a ser preenchido.
Enquanto isso,
procuro incessantemente este “algo”, nas revistas e jornais, nos vídeos e
fotos, os quais, pouco a pouco me revelam novos postulados sobre o mundo, sobre
a vida, sobre a vida dos homens.
Mostram-me de
uma forma exata, como a ótica dos justos, num verniz, enche a vida de certezas,
interpretando o erro e o justificando, não contente com o fato dele apenas
existir, e não sermos infalíveis.
Não obstante
todas estas constatações não deem fim a minhas dúvidas, persevero sem
esmorecer, e continuo minha odisseia, em busca talvez de paz e novas respostas
ou apenas, com o passar do tempo, do descanso da sanidade conformista de uma
vida pacata.
Concretamente, estes são os processos indefinidos que
compõem a vida de um homem, e que se dão assim, separados, como se não fossem
concatenados, como se faltasse algo que unisse as pontas e, nada que pudesse
ser vislumbrado sob um olhar atento para a realidade teria o condão de
desvendar a verdade.
Não se trata
apenas do tempo, mas da soma, do acúmulo de sensações diárias com o aparente
isolamento inercial dos vários sentidos, que se dá dia após dia, até o instante
em que a mente faz as ligações necessárias e constata que algo mudou. E fomos
nós.
...
Passos furtivos,
olhos presos a janela e aos acontecimentos, olhos que não veem a rua, veem a
ferocidade, não são homens, são animais sedentos de sangue e destruição, lábios
apertados que tremem, engolem um grito de desespero, uma súplica ao que se sabe
inevitável.
A moça olha a
rua, homens fardados passam, uma guerra acontecendo em atos, assassinos passam,
destruindo tudo em seu caminho.
A casa invadida,
a desonra seguida da morte e depois a fuga, ante o horror que os corpos inertes
e o sangue derramado passou a lhes causar.
A casa
solitária, a rua, agora deserta.
A casa fria, já
não há mãe, marido, filhos, restou apenas o menino estendido no porão.
Imagens
distorcidas, sonhos, um garoto coberto de sangue no porão, o porão frio, o
medo, as sombras, os gritos, tiros, e depois de uma espera interminável, a
volta ao silêncio e com ele uma fraqueza e sono invencíveis.
...
Como se estivesse
saindo de um torpor, vagarosamente acordo-me e levanto. A luz fraca dá uma
sensação fugidia de distância, tudo fica translúcido e, envolto em névoa e em
meio a esta atmosfera insólita, me locomovo, e carrego interrogações comigo.
Costumo olhar a
rua, ver o que se passa lá fora à noite. O que vejo me dá a impressão de um
filme antigo, pessoas cruzam nas ruas, namorados, bêbados. Eu também me
embriago às vezes, e as sombras se tornam mais difusas, a sensibilidade atinge
seu limite e quase chego a compreender este algo que me falta, esta peça, o
labirinto, a saída.
As luzes dão uma
cor rosa à cidade, névoa rosa, um colorido estranho, mas apenas ruas rosas,
onde homens cinzas passam, bêbados de amor e incerteza, cansados de trabalhar e
viver, tentando encontrar e não sabendo o que, quase sempre uma mulher, sexo e
só. O diálogo é a fraqueza dos desesperados, fração cinza das noites.
Os bares da
cidade não fecham aos fins de semana, não dormem o sono insone dos que vagueiam
nos labirintos claros da cidade, com vodca e uísque sem gelo.
Neste ponto
sinto que o barulho que deles emerge me aflige os sentidos por ser real e
presente, mas, ao mesmo tempo distante, algo tão cru como a luz de um poste.
É isso, um
espaço de prédios e ruas e carros, externamente frio, mas que em seus cantos
recônditos, tem algo que pulsa, quente, e se move incessantemente em busca de
vida.
São apenas
contornos da cidade escura, prédios em ruínas, como as marcas do tempo.
Vejo sombras
percorrendo as ruas, em claro contraste com a imobilidade dos objetos, que
cansam os olhos e rebelam os sentidos. Apenas tijolos e concreto, firmes,
sólidos alicerces, de preto absorvendo luzes, mas, em meio a tudo ainda existe
movimento, e uma ansiosa alma se rebela e sai para a luz.
No entanto, algo
me escapa, e parece que fica preso em algum recanto da memória. Por isso a
solidão, algo nos falta, perdido, ou talvez não falte nada, e a lembrança de
que um dia fomos deuses não exista. Fica somente o vazio, a mente trai somente
o esquecimento, até mesmo de algo que pode nunca ter existido.
Já estava
cansado. Quando encontraria a resposta? Talvez nunca a encontrasse se, num dia,
por acaso, não houvesse vislumbrado um rosto, que no momento em que o vi,
pareceu-me vagamente conhecido. Ia por uma rua não muito distante do lugar onde
moro, um mercado público de quinquilharias. Seu tipo exótico me chamou a
atenção, destoava do ambiente, seus cabelos negros, grandes olhos azuis,
compunham um rosto extremamente belo, contrastando sua juventude frente às
antiguidades. Entre este breve instante em que fiquei absorto e o momento
seguinte, em que a procurei, já a havia perdido.
Desde este dia,
a tenho procurado em vão, em todos os lugares, no mercado, no bairro, em todos
os lugares públicos e passeios da cidade. De vez em quando me vem a mente a
interrogação, será que não seria apenas mais uma alucinação?
A visão daquele
rosto se prendeu de tal modo a minha vida que precisava encontrá-la para
finalmente saber quem eu era realmente. Os meus sonhos haviam terminado
abruptamente e com eles sumiram também meus fantasmas. Restava somente a
lembrança do sobrado e eu. Entre nós uma porta aberta para o azul do céu, dos
olhos, da vida, e eu me agarrava desesperadamente a esta esperança.
Começava a
recordar minha vida desde a saída do hospital, aonde chegara, segundo me
diziam, trazido da rua, todo ensanguentado, como se estivesse morto. Tinha,
nesta época, mais ou menos 10 anos. Era um tempo estranho, onde as pessoas desapareciam
e ninguém ousava perguntar por elas. Eu, ao contrário, surgira do nada e também
ninguém indagaria minha origem, nem mesmo se soubessem a resposta. Morei
durante vários anos com um velho senhor, recentemente falecido, servidor
público, que trabalhava no Hospital Municipal na época do ocorrido, e só então
decidira descobrir, a partir de suas informações e da abertura democrática, o
mistério que cercava minha vida antes disso.
Em minhas
andanças pela cidade, certo dia, cheguei a um lugar estranho, vagamente
familiar, apesar de eu ter certeza de nunca ter ido a este bairro nestas buscas
incessantes que fizera até este dia. Isto a princípio me intrigou, mas como
todas as coisas em minha vida sucediam-se de forma totalmente estranha e
inesperada, resolvi seguir em frente e, qual não foi minha surpresa, quando, ao
final de uma alameda, meio escondida entre o mato, reconheci, a princípio com
medo e assombro e após com uma intensa e mal disfarçada euforia, o sobrado de
meus sonhos, surgindo decadente, semidestruído, bem a minha frente.
Durante algum
tempo fiquei ali, estático, mas, logo depois resolvi entrar no sobrado. Fui
andando por um caminho quase que totalmente obstruído pelo mato.
Quando estava em
frente a porta, quase que imperceptivelmente ouvi um ruído vindo da entrada.
Voltei-me lentamente e procurei, com o canto dos olhos para ver quem estava
espreitando o lugar. Qual não foi meu espanto quando dei de cara com a moça do
mercado público, sorrindo de uma maneira marota e maliciosa para mim.
Ela então me
contou tudo, éramos nós as crianças dos sonhos, ela os tinha também. Finalmente
descobri que na visão que ela teve, havia me visto coberto de sangue e inerte
no porão, então me supusera morto. Na verdade somente ela se salvaria. Depois
do massacre, fugira e fora ao encontro de alguns amigos de meus pais, que, logo
após terem ciência do fato, procuraram asilo num país estrangeiro e levaram a
menina junto com eles e adotaram-na como sua filha a partir desta época. Nunca
mais tivera visões, somente numa época recente, de tempos em tempos, em sonhos,
vinham a sua mente imagens do sobrado, agora habitado por fantasmas e, junto
com ele, surgia um rosto enigmático de um rapaz em plena maturidade.
Voltara fazia
poucos meses e ficaria apenas alguns dias, vinha apenas tomar posse de seus
pertences, vendê-los e nunca mais voltar a este lugar repleto de lembranças
tristes. Se não tivesse visto no mercado um rapaz extremamente parecido com o
de seus sonhos, não teria mais voltado. A partir daí, convencera seus pais
adotivos a deixá-la passar uma temporada na cidade, ver lugares conhecidos,
exorcizar seus fantasmas. Todos os dias, vinha ao sobrado, na esperança de
encontrar alguma resposta a seus sonhos, mas nunca entrava, era como se fosse
um lugar sagrado e sua presença o profanaria.
De mãos dadas,
juntos, abrimos a porta, e, nesse instante, como se fosse numa procissão,
libertos, saíram, um a um, todos os fantasmas, felizes, tinham realizado seus
intentos, seus filhos estavam novamente juntos. Logo após, entramos, passamos
por móveis empoeirados, quebrados, janelas caídas, portas que conservavam as
marcas da violência, cheias de perfurações de balas e, finalmente, no quarto da
frente, um resto de sol filtrava-se sobre um canto, onde se mostrava, em toda
sua beleza, uma rosa, vermelha, viva, linda.
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