quarta-feira, 21 de outubro de 2015

MILAGRES EXISTEM?! - Conto de Maria de Lourdes (Pelotas, RS)

MILAGRES EXISTEM?!

Sempre trabalhei 60 horas. Trabalhar até a exaustão era tudo que eu queria, procurava demorar muito para chegar em casa, diferentemente de todos que anseiam pela volta, para mim, a volta para casa sempre era dolorosa.

- Onde estava até essa hora? Com amante? Não me respeita mais? Só anda com mulheres que não prestam! Boa companhia não eram. Essas perguntas sempre ficavam sem respostas, pois sabia que se argumentasse seria pior.

E, geralmente era muito pior! Havia momentos que a loucura era tanta que, ao chegar em casa, à noite, encontrava os portões com cadeados. A dor de me sentir expulsa, na rua, a mercê de qualquer coisa, me fazia entrar em pânico. Procurar ajuda? Jamais! Abrir e contar meus pesares para amigos e parentes? Nem pensar! Em cidade pequena a vida privada, em segundos, torna-se o assunto predileto de toda a comunidade. Amigos? Como confiar algo tão sinistro? Pai, mãe? Jamais levaria tal preocupação para eles, embora eu desconfiasse que eles sabiam muito mais do que deveriam.

E a vida continuava como num filme de terror. Perambular pelas ruas, dormir nos fundos da casa, ou na calçada, com a alma encolhida e a autoestima no chão sob os pés, tornou-se um hábito difícil de suportar. E durante o dia precisava fechar tudo isso numa gaveta, guardar a
chave e vestir a máscara da alegria e da felicidade. Trabalhar todo dia como se tudo fosse cor de rosa. Passar para as crianças sonhos, esperanças, crenças nas pessoas e nas possibilidades de escolhas. Tudo isso pesava tanto quanto a tristeza e a dor de estar só, por decisão e por acreditar que um dia iria melhorar.

Tinha como companheiras a solidão e a desesperança. A cada novo desenrolar das cenas, fazia-me de forte para suportar e driblar a angústia e a dor. Aos poucos fui me afastando dos amigos, da família. E trabalhava cada minuto, cada vez mais, sem sábados nem domingos. Cada hora era importante para ocupar-me de tal forma que não precisasse pensar. Eu era tão forte para aguentar as pressões do dia a dia, as chantagens psicológicas, as pressões e opressões e tão sem forças para mudar, para fugir desse cotidiano, dando novo rumo à minha vida.

Assim os dias foram passando. Cada dia mais ameaças verbais, ameaças físicas e psicológicas. Medo constante, muito medo e, principalmente, o medo de viver, medo de morrer e, mais do que tudo o medo de mudar.

O cerco foi se fechando de tal maneira que chegou ao ponto de acordar a noite e encontrá-lo acordado e ao perguntar o que havia, se perdera o sono, ele respondia:
- Não, estou pensando num jeito de te matar!

Então meu sono também não foi mais o mesmo. Dormia pouco, trabalhava mais ainda e, consequentemente, ia parar no hospital com frequência, mas voltava sempre para casa novamente. Não sei se por masoquismo, ou por pensar que os filhos precisavam da família reunida, ou por medo de não ganhar o suficiente para mantê-los ou por amor, ou por covardia de encarar outra forma de viver. Não sei. Talvez por desejo de que um milagre acontecesse. Mas o milagre não vinha.

A culminância foi quando, num determinado dia, durante meu horário de trabalho, ele invadiu a sala, cheia de pessoas pesquisando, estudando e entrou gritando:
- Sua vadia, sem moral, traidora, infiel! Dá todo teu dinheiro para os amantes e depois quer me comprar. Tu não vales nada, sua vagabunda! Ainda vou te matar! Tão rápido como entrou, saiu porta a fora.

Diante dessa explosão, eu entrei em estado de choque, e a plateia toda de olhos e ouvidos atentos, tão assustados quanto minhas colegas de trabalho, só me olhavam, pois me conheciam muito bem e sabiam que minha vida era trabalhar. Nem nos vizinhos ia mais. Na sala não se ouvia som nenhum. Nada.

Não consegui me mexer até que uma colega me pegou pelo braço e me retirou do local. Eu continuava sem chão. Pedi-lhe que me trouxesse a bolsa e sai sem rumo, meio trambalhando, aérea, tonta, zonza pela dor, tristeza, vergonha, humilhação, sem nada ver.

Sei que caminhei muito tempo até que meus passos me levaram justamente a porta de uma igreja. Entrei e sentei, sem olhar para lado nenhum, cabeça baixa e lá fiquei, chorando.

Lembro-me que perdi a noção do tempo e do espaço, mas um ruído me fez levantar a cabeça e meus olhos molhados bateram com outros olhos bem a minha frente. Era justamente uma imagem de Nossa Senhora que me olhava dentro dos olhos. Olhos tão serenos e límpidos que me deram as respostas às perguntas que me fazia sem parar: que fazer? Que fazer, meu Deus? Ela sabia. Ela entendia. E ela sabia que eu sabia e entendia o que me dizia. Bastou isso. Meu coração misteriosamente começou a acalmar-se. Meus olhos secaram. E a escolha tinha sido feita e aprovada por ela.

Saí da igreja direto para a rodoviária. Comprei uma passagem só de ida. Embarquei. Procurei meu lugar. Sentei. Não sabia bem ainda para onde ia nem o que eu queria, mas sabia exatamente o que eu não queria. Nunca mais.



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