MILAGRES
EXISTEM?!
Sempre trabalhei
60 horas. Trabalhar até a exaustão era tudo que eu queria, procurava demorar
muito para chegar em casa, diferentemente de todos que anseiam pela volta, para
mim, a volta para casa sempre era dolorosa.
- Onde estava
até essa hora? Com amante? Não me respeita mais? Só anda com mulheres que não
prestam! Boa companhia não eram. Essas perguntas sempre ficavam sem respostas,
pois sabia que se argumentasse seria pior.
E, geralmente
era muito pior! Havia momentos que a loucura era tanta que, ao chegar em casa,
à noite, encontrava os portões com cadeados. A dor de me sentir expulsa, na
rua, a mercê de qualquer coisa, me fazia entrar em pânico. Procurar ajuda?
Jamais! Abrir e contar meus pesares para amigos e parentes? Nem pensar! Em
cidade pequena a vida privada, em segundos, torna-se o assunto predileto de
toda a comunidade. Amigos? Como confiar algo tão sinistro? Pai, mãe? Jamais
levaria tal preocupação para eles, embora eu desconfiasse que eles sabiam muito
mais do que deveriam.
E a vida
continuava como num filme de terror. Perambular pelas ruas, dormir nos fundos
da casa, ou na calçada, com a alma encolhida e a autoestima no chão sob os pés,
tornou-se um hábito difícil de suportar. E durante o dia precisava fechar tudo
isso numa gaveta, guardar a
chave e vestir a máscara da alegria e da
felicidade. Trabalhar todo dia como se tudo fosse cor de rosa. Passar para as
crianças sonhos, esperanças, crenças nas pessoas e nas possibilidades de
escolhas. Tudo isso pesava tanto quanto a tristeza e a dor de estar só, por
decisão e por acreditar que um dia iria melhorar.
Tinha como
companheiras a solidão e a desesperança. A cada novo desenrolar das cenas,
fazia-me de forte para suportar e driblar a angústia e a dor. Aos poucos fui me
afastando dos amigos, da família. E trabalhava cada minuto, cada vez mais, sem
sábados nem domingos. Cada hora era importante para ocupar-me de tal forma que
não precisasse pensar. Eu era tão forte para aguentar as pressões do dia a dia,
as chantagens psicológicas, as pressões e opressões e tão sem forças para
mudar, para fugir desse cotidiano, dando novo rumo à minha vida.
Assim os dias
foram passando. Cada dia mais ameaças verbais, ameaças físicas e psicológicas.
Medo constante, muito medo e, principalmente, o medo de viver, medo de morrer
e, mais do que tudo o medo de mudar.
O cerco foi se
fechando de tal maneira que chegou ao ponto de acordar a noite e encontrá-lo
acordado e ao perguntar o que havia, se perdera o sono, ele respondia:
- Não, estou
pensando num jeito de te matar!
Então meu sono
também não foi mais o mesmo. Dormia pouco, trabalhava mais ainda e,
consequentemente, ia parar no hospital com frequência, mas voltava sempre para
casa novamente. Não sei se por masoquismo, ou por pensar que os filhos
precisavam da família reunida, ou por medo de não ganhar o suficiente para
mantê-los ou por amor, ou por covardia de encarar outra forma de viver. Não
sei. Talvez por desejo de que um milagre acontecesse. Mas o milagre não vinha.
A culminância
foi quando, num determinado dia, durante meu horário de trabalho, ele invadiu a
sala, cheia de pessoas pesquisando, estudando e entrou gritando:
- Sua vadia, sem
moral, traidora, infiel! Dá todo teu dinheiro para os amantes e depois quer me
comprar. Tu não vales nada, sua vagabunda! Ainda vou te matar! Tão rápido como
entrou, saiu porta a fora.
Diante dessa
explosão, eu entrei em estado de choque, e a plateia toda de olhos e ouvidos
atentos, tão assustados quanto minhas colegas de trabalho, só me olhavam, pois
me conheciam muito bem e sabiam que minha vida era trabalhar. Nem nos vizinhos
ia mais. Na sala não se ouvia som nenhum. Nada.
Não consegui me
mexer até que uma colega me pegou pelo braço e me retirou do local. Eu
continuava sem chão. Pedi-lhe que me trouxesse a bolsa e sai sem rumo, meio
trambalhando, aérea, tonta, zonza pela dor, tristeza, vergonha, humilhação, sem
nada ver.
Sei que caminhei
muito tempo até que meus passos me levaram justamente a porta de uma igreja.
Entrei e sentei, sem olhar para lado nenhum, cabeça baixa e lá fiquei,
chorando.
Lembro-me que
perdi a noção do tempo e do espaço, mas um ruído me fez levantar a cabeça e
meus olhos molhados bateram com outros olhos bem a minha frente. Era justamente
uma imagem de Nossa Senhora que me olhava dentro dos olhos. Olhos tão serenos e
límpidos que me deram as respostas às perguntas que me fazia sem parar: que
fazer? Que fazer, meu Deus? Ela sabia. Ela entendia. E ela sabia que eu sabia e
entendia o que me dizia. Bastou isso. Meu coração misteriosamente começou a
acalmar-se. Meus olhos secaram. E a escolha tinha sido feita e aprovada por
ela.
Saí da igreja
direto para a rodoviária. Comprei uma passagem só de ida. Embarquei. Procurei
meu lugar. Sentei. Não sabia bem ainda para onde ia nem o que eu queria, mas
sabia exatamente o que eu não queria. Nunca mais.
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