O HOMEM QUE INVENTOU O INCENSO
A situação que descreverei
parecerá hoje em dia completamente absurda, mas de fato aconteceu, exatamente
como a relato.
Estávamos no início dos anos 70,
isto é 1870, e eu andava fascinado pelos encantos de uma virgem chamada
Eleonora. Tinha ela cabelos loiros cacheados que roçavam-lhe os ombros. Tinha
um olhar farto de meiguice e inteligência e eu admirava-lhe as coxas grossas e
os pequenos seios redondos. Eleonora possuía cultura espantosa para uma jovem da
sua idade, isto é, dezoito anos. Isto bastaria para que eu ardesse rapidamente,
mas acima de tudo sabia recitar os versos da poetisa francesa Marlenne Ducha,
considerados os mais belos do mundo, e recitava-os em solíricos!
Explico: virgem era a pessoa que
não mantivera contato carnal com nenhuma outra, portanto solteira. Chamavam-na
pura, imaculada. Se durante uma festa, ousasse a virgem encarar um rapaz, era
obrigada a casar ou seria expulsa de casa, se sobrevivesse à ira do pai;
dificilmente casaria pois um rapaz da sociedade não gostaria de ver o bom nome
da família atirado à lama por causa de uma vagabunda.
Como deixei claro no início, a
coisa pode soar absurda, mas falo de uma época em que pedia-se “por favor” para
que outra pessoa nos alcançasse o pote de manteiga, não bastava mexermos o
queixo na direção do que queríamos, seguido de um resmungo inaudível como é
hábito hoje em dia. Qualquer esbarrão na rua que não viesse acompanhado de um
“perdão, cavalheiro”, provocaria um duelo supervisionado por padrinhos.
Explico: “por favor” era como nos
dirigíamos às pessoas quando necessitávamos delas. Perdão era uma forma solene
de pedirmos desculpas. Algo como o “ôpa” que usamos hoje em dia. Porém, naquela
época esbarrado e esbarrador pediam perdão ao mesmo tempo, inclinando os
corpos
levemente e tocando o chapéu, antes de seguirem caminho.
Bem, eu tentei dar cores reais às
atitudes e pensamentos do que hoje chamamos de séculos passados. Para que os
leitores compreendessem como as pessoas eram solenes e graves, pelo menos aos
que não eram íntimos.
Doutor Abreu, o pai de Eleonora,
era médico aposentado, um homem educadíssimo, porém um pouco estranho. Ao menos
assim o descreveria antes de conhecê-lo mais profundamente, o que é o caso, já
que conto a história pelo princípio. Sumia em meio às festas, conversava
sozinho e ficava horas trancado em seu gabinete, local que não deixava ninguém
entrar, excetuando a filha única. Doutor Abreu era viúvo e dava muitas festas
em seu casarão de dois andares. Eu comparecia a todas no intuito de fisgar o
coração da minha amada, comparecia mesmo às festas que não era convidado.
Ficava rondando o casarão até ser visto e ser chamado a entrar, pois não era de
bom-tom fechar a porta no nariz de um conhecido.
Certa ocasião Doutor Abreu comentou
que já estava na hora de casar sua filhinha. Meu coração pulou como um coelho
perseguido por trinta leões, minhas orelhas queimaram, o que causou certo mal
estar, senão repugnância aos presentes. Estávamos bebendo licor, Doutor Abreu,
três sujeitos cretinos que não tiravam os olhos do decote de Eleonora e eu.
Eleonora cerzia o cachecol, fingindo estar alheia a conversa.
Os três cretinos (só os chamarei
assim, pois não lembro mais seus nomes) pareciam ter conquistado a simpatia do
Doutor, seja pelos anéis de ouro ou pela amizade que seus pais mantinham junto
a ele e ficou mais do que claro para mim, que eu era carta fora do baralho,
quando o Doutor disse-me:
- Senhor Arthur, faria a
gentileza de trazer mais licor para estes cavalheiros simpáticos?
Havia um mordomo, mais treze
serviçais a disposição naquela casa, além do pessoal da cozinha. Um dos
cretinos, o que tinha o bigode maior, deu um risinho jocoso enquanto
ajeitava-se no sofá. Eu vi. Hesitei não mais de quinze segundos e ergui-me
tentando aparentar a maior naturalidade possível. Ora, o pedido podia ser uma
prova de grande intimidade ou de total desprezo. Dei passos confiantes e ao
passar por Eleonora abri um grande sorriso amarelo que foi sutilmente ignorado,
pois ela fingia procurar a agulha entre os seus peitinhos de giz. Depois de
pegar a garrafa de licor de ovos, estava voltando ao meu lugar quando dei um
pequeno tropeço, e estando Eleonora levemente inclinada para frente, de costas
para mim, encostei o tecido da minha calça em seu vestido (hoje em dia diríamos
que me aproveitei da posição da criatura e esfreguei-me libidinosamente em sua
bunda).
Foi o que bastou para ela
exclamar um - Oh! E todos os presentes lançarem olhares de desaprovação e nojo.
Inclusive ela.
Dois meses depois estávamos
casados.
Eleonora esquivava-se de mim
sempre que podia, isto é, todas as noites explicava suas olheiras profundas e
seu olhar triste e lacrimoso fingindo estar gripada.
O pai fazia o possível para não
me encontrar, passava a maior parte do tempo trancado em seu gabinete e dizia
coisas como “a hora está chegando!” “em um mês, talvez menos, quero ver quem é
o louco! Opus! Opus!”
Explico: como era costume na
época, fui morar com Eleonora na sua mansão, visto que a simples sugestão de
que após casarmos ela dividiria comigo minha pequena casa, foi recebida como
uma bofetada.
Eu passava os dias tentando
alegrar Eleonora, fazia seus caprichos e mimava-a como uma criancinha. Vez que
outra ouvia um “obrigado”, mas geralmente era um “deixe-me em paz, por favor,
minha cabeça. Esta gripe...” O que acontecia é que quanto mais ela me ignorava,
mais vontade tinha eu de possuir aquele corpo espetacular. Eu me sentia no
inferno. Para aumentar minha angústia às vezes eu batia em seu quarto e
Eleonora fingia pensar que era a criada e mandava-me entrar, estava quase
sempre em frente a penteadeira com os seios brancos, duros e pequenos à mostra.
Deixava-me olha-la alguns segundos através do espelho e depois virava-se
fingindo surpresa e indignação. Restava-me implorar, pedir, suplicar que ao
menos me deixasse tocá-los. Não sei se meu estado ereto atrapalhava a minha
fala, mas ela dizia, com o rosto vermelho:
- O que? O que dizes? Estás
louco? Saia do meu quarto! Comporte-se como um cavalheiro ao menos enquanto sua
esposa encontra-se enferma!
Enferma! Na minha frente
encontrava-se uma das mais belas criaturas que vênus já cuspira! Eleonora,
mesmo dando pulinhos e gritinhos movia apenas milímetros aquelas duas maçãs do
amor.
Um dia bati no gabinete do Doutor
Abreu, estava propenso a revelar-lhe que cinco meses haviam passado e sua filha
continuava tão virgem quanto nascera.
Não havia ninguém no gabinete
principal, então entrei em uma porta que achava-se quase escondida atrás de uma
cortina.
Era uma sala imensa, muito bem
iluminada. Eu avistava o laboratório mais completo que já vira. Vários livros
de alquimia estavam espalhados sobre os balcões e a escrivaninha. Ratos e
cobras submergiam dentro de vidros. Diversos esqueletos amontoavam-se no chão.
Uma chama azul fraquíssima ardia dentro de um cálice de ouro. Eu nunca havia
visto tal elemento em minha vida e segurei o cálice aproximando-o do rosto.
- Não toque nisto, asno inútil! –
Vociferou o Doutor, que recém entrara, tirando o objeto das minhas mãos e
colocando-o de volta sobre o pentagrama riscado a giz sobre o balcão.
- Doutor, como se atreve...
- Oh, desculpe ter chamado o
senhor meu genro de asno inútil. Todos os asnos são úteis, pobres animais. Já
certas pessoas...
- Não admito que me trate dessa
maneira! Aliás, o senhor e sua filha...
- Ora, cale a boca, quatro olhos
de uma figa! Vai se fazer de ofendido e deixar esta casa? Pois eu chegaria ao
ponto de pagá-lo para deixar minha filha em paz!
- Pois as coisas estão nesse pé,
não fico mais um minuto! – Gritei.
- Ora, ora... conheço três
senhores que adorariam ouvir isso. São gente de boa família, inteligentes...
adorariam pedir a mão de minha linda e viúva filha...
- Viúva? Acaso o senhor está me
ameaçando? – Minhas mãos tremiam e o suor grudava a camisa ao meu corpo.
- Claro que não, rapaz. Sou um
cientista, um homem civilizado. Mas o trato é que o senhor suma. Darei um bom
dinheiro, e que suma não só dessa cidade como desse país, será melhor para o
senhor também... pois se a minha meiga filha perdesse a virgindade para o
segundo marido, mesmo estando casada há tanto tempo com o primeiro...
Aquelas palavras entraram em meus
ouvidos e foram cortando meu peito como uma navalha. Então ele sabia. Era um plano
sórdido e sujo (já naquela época as pessoas eram cruéis, porém tinham muito
mais imaginação). Eu não suportando mais a situação teria de sumir, como ele
mesmo dissera. Dariam-me como morto. Ela ficaria livre para casar-se novamente
e teria a sua reputação imaculada, poiso homem que roçara-se descaradamente em
suas nádegas havia assumido compromisso. Já a minha reputação, mesmo sendo dado
como morto...
O que era pior: aquela cadela
guardava-se para outro, um daqueles três cretinos, provavelmente.
Enquanto o Doutor falava da minha
situação humilhante, eu via o gabinete girar, o chão abrir, enfim desmaiava.
Como caí devo ter ficado, pois ao
voltar a mim reparei que continuava no laboratório e o Doutor, de costas,
misturava poções ou algo parecido sobre o balcão.
- Ah, não morreu? – Olhou-me de
soslaio – Já que para a infelicidade de toda a humanidade, o senhor continua
vivo, diga-me, que achas da minha proposta?
- Acho-a infame e desprezível. –
Quase murmurei, sentindo-me um rato.
- Pois bem! Proíbo-lhe de entrar
no meu laboratório, aliás, no meu gabinete também e aviso-lhe que este cálice
contém veneno para acabar com um elefante, que dirá um asno! – Mostrava-me o
cálice contendo a chama azulada.
Naquela noite não dormi, tentando
tomar uma decisão. Matar os dois? Eu nunca mataria uma simples mosca. Pegá-la a
força e depois exibir os lençóis para os criados? Eu não tinha peito para
tanto. Cheguei a conclusão de que minha vida não fazia mais sentido. Se
sumisse, minha reputação cairia por terra e honradez era algo que existia
naqueles tempos. Se ficasse, em breve até os serviçais me destratariam.
Voltei ao gabinete e mesmo na
escuridão pude ver o cálice dourado com o fogo venenoso ardendo. Em um segundo
levei o cálice à boca e sorvi o que não me pareceu outra coisa além de fogo e
menta. Aquilo parecia ir queimando minhas veias. Lembrou-me certo uísque falso
que tomei como legítimo.
O que aconteceu em seguida, foi
espantoso. Pensei que fosse morrer em segundos, mas uma vitalidade jamais
sentida correu pelo meu corpo. Foi como se um sopro divino entrasse pelas
minhas narinas. Eu me sentia forte como dez homens.
Joguei o cálice no chão e
arrombei o quarto de Eleonora. Ela dormia e quando acordou já estava sem
camisola, quando reparou no que estava acontecendo já não era mais virgem e
duas horas depois quando tentei me levantar, dizia que me amava e pedia para
experimentar de quatro.
Com lágrimas nos olhos implorou
que eu a perdoasse. Tudo era ideia do pai, que era bom homem mas não acreditava
que eu fosse capaz de fazê-la feliz, que eu fosse bondoso e a deixasse
experimentar de ladinho e mostrasse como se fazia tudo o que ela imaginava.
Explico: o Doutor Abreu era um
alquimista poderoso e no tal cálice não havia veneno, mas sim o elixir da longa
vida. Como ele me achasse o mais covarde dos homens, mentiu que havia veneno
tentando afastar-me para sempre do cálice dourado, ou seja, tentando pôr fim a
minha vida, acabei dando fim a minha morte. Hoje tenho cento e setenta e dois
anos, com aparência de vinte e cinco. O Doutor Abreu morreu trinta anos depois
sem me perdoar. Ele guardara o elixir para si próprio e como o preparo ideal
demora exatos trinta e três anos, só conseguiria bebê-lo em outra encarnação,
quando provavelmente viria como asno, como não cansava de dizer, olhando-me com
raiva.
Eleonora morreu quatro anos após
o casamento, quando brincávamos com um candelabro aceso e eu imaginava que ela
fingia-se de morta.
Depois do incêndio levei o Doutor
para morar comigo. Dava pena ver aquele velho xingando e contando os dias como
se fossem pérolas. Infelizmente eu tive uma pequena participação em sua morte,
faltando apenas três anos para o elixir ficar completo.
Isso é algo que eu nunca me
perdoarei, pois me afeiçoara ao velho como a um avô rabugento. Aconteceu quando
o Doutor explicava-me sobre o homem que inventou o incenso...mas isso é outra
história e como dizem hoje em dia, tenho mais o que fazer.
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