sábado, 24 de outubro de 2015

NÃO ACREDITO EM BRUXAS - Conto de Maria da Graça Rodrigues (Porto Alegre, RS)

NÃO ACREDITO EM BRUXAS

Seria aquela uma boa notícia? Ivana tinha dúvidas. E o apartamento pronto e decorado? E todos seus planos para depois de casada que incluíam Porto Alegre?

Analisando bem e friamente a promoção de Pedro Ernesto para a capital paulista era uma bela notícia. Mas como pensar na vida em São Paulo de uma hora para outra? 

— Ivana, que cara é essa? Uma promoção sonhada por qualquer executivo da idade do Pedro!   Talvez você consiga uma transferência para acompanhar seu noivo. Se não der, poderá se dar o luxo de ser só dona de casa. E dona de casa rica, daquelas que podem passar o dia fazendo compras, indo à ginástica, ioga, salão de beleza e fazendo chás para ajudar as crianças pobres e não precisar mais ralar todos os dias traduzindo documentos e cartas chatas atrás desse computador. 

A amiga tinha razão. E além do que, tinha certeza que seria feliz em qualquer lugar do mundo, desde que fosse com ele, Pedro Ernesto.

— Está bem, Carol, cedo aos seus argumentos, mas agora me dê licença, tenho que traduzir esse contrato antes do meio dia.        

Celular na mão,
esperava aflita a notícia ser dada pelo noivo.

O visor continuava em branco. Talvez Pedro Ernesto estivesse muito ocupado lá em São Paulo tratando do novo posto em reuniões exaustivas.  Ela precisava se acalmar, logo-logo ele daria sinal. 

Respirou fundo. Antes de retomar o contrato, deu uma passada em seus e-mails pessoais, talvez houvesse uma mensagem dele.

Havia.

Estimada Ivana
Sinto dizer-lhe tudo assim por e-mail, mas eu teria que lhe  falar mais cedo ou mais tarde. Temos que terminar. Chegou minha promoção/remoção tão esperada. Daqui a pouco entrarei na reunião com o diretor geral.

Vou passar o Reveillon aqui em São Paulo. Espero que você  entenda minha situação. Namorar de perto já é difícil, imagine morando longe. Nosso casamento, então, se tornou inviável. Dia 02 de janeiro passarei aí na firma, tenho que terminar um projeto com a minha equipe daí. Então falaremos pessoalmente.

Sem mágoas?

Beijos Pedro Ernesto.
Ah! Feliz Natal e um próspero Ano Novo.

Ambiente de trabalho. Obrigatório manter a compostura. Ninguém ali na firma precisaria saber o que ela estava sentindo. Tomou um expresso duplo. Ajudaria na concentração para continuar a jornada como se nada tivesse acontecido. Aceitaria os parabéns com um sorriso e evasivas se acaso lhe perguntassem sobre o casamento e se ela iria para São Paulo também e se já havia pedido transferência e um monte de outras indagações daquele bando de intrometidos.  

Faria força para disfarçar a dor. Teria classe.

Gostaria de ter classe. Faria tudo para manter a linha, mas qual o quê! Em poucos minutos o nó na garganta explodiu. Não havia outra saída, correu ao banheiro, se agachou em um canto e ali gostaria de ficar resto da vida chorando com o rosto escondido entre as mãos se as colegas intrigadas e solidárias não tivessem corrido atrás, sem imaginar o quanto ela queria ficar só e em paz. 

Água com açúcar, um analgésico, um chá de camomila. Cada uma  oferecia algum alívio, algo que pudesse acalmar aquele desatino de dor.    

Mas, Carol, tinha algo a sugerir para o coração partido de sua melhor amiga. Sempre há na vida uma saída boa, prática e segura, por mais intrincado que um caso possa parecer. Este, seu lema.        

— Tudo tem solução, Iva. Tem uma muito simples, mas certeira.

— Este caso não tem solução, Carol. Agradeço sua boa-vontade, mas só me resta chorar. E chorar para o resto de meus dias.

— Conheço uma mulher, Iva. Uma maga poderosa, se chama mãe Teresa, mora lá na praia do Rosa.

—  Carol, não acredito nessas bruxarias, minha amiga, desculpe.

— A gente aproveita o feriadão de fim de ano e vai visitá-la lá na praia do Rosa.  Acredita, Iva. Ela vai te ajudar.

O grupo feminino constrito, braços cruzados, encostadas no azulejo frio concordavam com Carol. Nestas horas é bom usar os recursos disponíveis no universo.         

—Não e não. E digo mais, não quero Pedro Ernesto de volta, se fosse fazer um trabalho com uma bruxa seria para fazê-lo morrer!

— Credo, Iva! Bem... até onde eu sei, mãe Teresa também faz coisas desse tipo, se você quiser mesmo, a gente providencia.

— Gurias, estou brincando, deixemos para lá. 

— Tem certeza?        
                               
Ver Pedro Ernesto sofrer. Ah! se tivesse mesmo um poder para causar algum mal a ele. Chegar no dia dois de janeiro de volta à firma e vislumbrar a cara de luto de todos lamentando o passamento de um seus mais talentosos jovens executivos. E  de uma forma tão trágica, tão brutal!

Fez o sinal da cruz. Pensamentos dessa ordem?  Vade retrum!

                                                           ****               

Ivana seguia quieta pela estrada Geral do Rosa, carregando seu fardo de dor junto ao pacote de barras de cereais, chimarrão, canga, protetor solar  e  um guarda-sol desbotado. 

Mal ouvia o  alarido do grupo de amigos  ao seu redor.

Haveria uma festa. Uma enorme festa numa casa bacana ali no Rosa.  Carol conseguira convites. 

 — Carol, você pode me levar amanhã até a tal bruxa que mora aqui?

— Na tenda de mãe Teresa? Claro, amiga! Se decidiu, então?  

Sim, Ivana já não conseguia carregar sozinha aquela mágoa funda, pediria ajuda aos orixás. Olhou para o céu sem nuvens de sol forte, estendeu a canga colorida nas areias brancas que ardiam de tão quente naquele fim de dezembro na praia do Rosa.

                                               ****   

Contrastando com o dia claro, a sala de mãe Teresa era mal iluminada. Os olhos de Ivana custaram a decifrar a figura de pele morena, cabelos brancos e olhos pintados com um cajal preto que a olhavam fixamente  ordenando-a que sentasse na cadeira diante de uma mesa coberta por uma manta indiana de seda. Apenas algumas velas e uma lâmpada fraca impediam que a peça, onde rescendia um forte cheiro de incenso, ficasse mergulhada na mais completa escuridão.

A maga tomou as mãos de Ivana entre as suas. Iniciou uma espécie de ladainha. Minutos depois decretou que a moça estava sofrendo. Uma dor forte dilacerava seu coração.  Se concentrou um pouco mais e descobriu que ela viera até sua casa levada por desejo de vingança. Um ódio muito grande tomava conta de todo o seu ser. A causa de tudo era uma imensa ingratidão que sofrera.

Ivana deveria se tranquilizar. Aquilo não passaria em branco, tanta dor não ficaria de graça. Tinha todo o direito de dar o troco para quem lhe causou tanto mal. Ela estava ali para isso, esse era seu trabalho, fazer os pecadores pagarem por seus pecados.  A moça deveria ouvir com atenção e cuidado, seguindo à risca tudo o que ela viesse a lhe orientar.  

Se ela tinha um objeto pessoal do ser amado a quem se destinava o feitiço? Sim, tinha um retrato onde ele aparecia sorrindo. Servia, mas precisava também algo do corpo, até mesmo, um fio de cabelo. 
                
A fotografia, o cabelo, uma vela bem grande, um litro de aguardente, charutos  e  rosas vermelhas.  Tudo colocado em um cesto e na meia noite de uma sexta-feira jogaria em uma encruzilhada qualquer recitando uma reza que mãe Teresa lhe entregou com todo o zelo garantindo-lhe que jamais seus trabalhos falharam. Eram certeiros.           

                                                           ****

A casa de quinhentos metros quadrados do ricaço se tornou pequena para tanta gente vestida de branco.

Carol saltitava apanhando duas taças de champanhe na bandeja que passava equilibradas nas mãos de um garçom.

— Champanhe vindo da França sua pobretona, aproveite, beba! Não é todos os dias que chove na nossa horta! 

— Pra falar a verdade, Carol, o que eu quero mesmo é ir para casa dormir, ir embora desta festa barulhenta.

— Olhe Iva, aquele cara está vindo para cá, acho que vai convidar uma de nós duas  pra dançar. 

Por educação, Ivana aceitou dançar com um rapaz que nunca tinha visto antes, mas com um rosto que lhe parecia familiar. Forte e musculoso. Surfista provavelmente, pensou. Dançava bem, era alegre e engraçado.

Viu Carol fazendo-lhe sinais aflitos. 
Pediu licença, voltaria logo. 

Sentiu o braço da amiga puxando-a para um canto.

O rapaz não era surfista, era um jogador de futebol famoso, Carol não  sabia precisar se era do Inter ou do Grêmio. Parece que se chamava Edson, algo assim, talvez fosse Gledson.

— Ai, Iva, toma cuidado! Tem muito jogador de futebol que é  estuprador. 
   
Ivana voltou ao salão onde Edson ou Gledson a esperava com duas taças transbordantes de champanhe. Reparou que ele tinha um sorriso enorme. Dentes perfeitos. Um sotaque bonito de baiano.

Brindaram.  Dançaram.  Tomaram mais champanhe. Ivana até cantou.  Apesar de ser grande e forte ele se movimentava de uma maneira suave,  numa ginga elegante de lutador de capoeira.

À meia-noite desceram em direção ao mar. Pularam juntos sobre sete ondas. No retorno, em dado momento ele entendeu de parar no meio da subida. A multidão seguia em algazarra.  Aos poucos o vozerio foi ficando mais distante, só ouviam a brisa e as batidas das ondas lá embaixo. Ficou sozinha com o rapaz de mãos firmes e braços fortes que, ali no meio do morro, acariciou seus cabelos, seu rosto, dizendo-lhe que ela era a loira mais linda que ele já havia beijado. 

Acordou no dia primeiro de janeiro numa cama enorme com lençóis branquíssimos, em uma pousada bem diferente daquela onde estava hospedada com os amigos. 

Tomou banho de Jacuzzi, vestiu um roupão fofo e branco. O jogador já havia solicitado o café da manhã na sacada.

O mesmo sorriso, o mesmo doce no olhar, a voz de veludo falando-lhe de sua infância de menino pobre que agora era convidado a jogar em um time grande em Berlim.

E foi com a mesma voz mansa que fez a ela uma proposta.

— Seria maravilhoso, Ivana, se você me acompanhasse à Alemanha. No fundo, no fundo, estou um pouco assustado com esse convite. Ir sozinho pra tão longe, sem conhecer a língua local. Venha comigo, vai ser bom pra nós dois.   

Olhando o vai-e-vem das ondas, escutando  o barulho do mar  Ivana foi sentindo outra vez o calor do rapaz de sorriso largo que se aproximava devagar, escalando milímetro a milímetro o seu corpo por inteiro. 

                                               **** 

Sobre sua mesa de trabalho, um buquê de rosas vermelhas acompanhado de um bilhete do baiano bonito: Rosas para a mais bela rosa da praia do Rosa.

— Iva, a  poesia é de última, mas as rosas e o gesto são lindos!

Colegas de outros setores que jamais lhe haviam dado bom-dia vieram render homenagens e cumprimentos. Até o diretor desceu ao segundo andar. 

— Aí hein? Não dizia nada, vai mesmo para Berlim com ele?  

Só entendeu o que estava acontecendo quando Carol lhe mostrou a página de uma coluna social na internet. Havia uma negociação para o ídolo da torcida gaúcha ir para a Alemanha. Sim, mas o famoso centroavante assegurava que só deixaria o Brasil se a bela gaúcha ali a seu lado aceitasse embarcar com ele para aquela terra distante.

Pedro Ernesto foi o único a ficar em seu lugar.

Ivana não olhou para ele. Preferiu dar-lhe as costas. Não quis ver o que ele faria, não quis saber o que ele diria, nem saber se havia um fio de cabelo caído, por puro descuido, na lapela impecável de seu paletó.

Escolheu não deixar que os olhos dele topassem com os seus.


Não permitiu que ele visse a alegria estampada no seu rosto dourado pelo sol do verão.  

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