sexta-feira, 23 de outubro de 2015

FEBRE - Conto de Paulo Ras (Paranaguá, PR)

FEBRE

Tirou o termômetro da axila. 39° C. Meio do caminho entre o céu e o inferno. Um aumento de uns 8% na temperatura e pronto. Meninges afetadas e uma hipertermia maligna. Quentura. Mal-estar. Sozinho na casa quase ampla começou a se preocupar.

“E se aumentar? Quem vai me ajudar? Preciso achar o celular, deixar aqui do lado... nunca se sabe...”.

Deitado no escuro. Silêncio da noite. Voltou ao termômetro. 39,2°C. “Quem pagará o enterros e as flores se eu me morrer de amores...”. Adorava o poema, mas aquela não era a hora mais oportuna. Cobriu o corpo. Tremia. Calafrios. Tinha tomado remédio há pouco tempo. Teria que esperar.

Mais dez minutos. 39,4°C. Já dá menos que 8%. Daqui a pouco meus órgãos vão começar a cozinhar. Quem vai me levar para o hospital? E se eu ficar internado, alguém vai se preocupar com a minha quase morte, o meu quase adeus?

“Da garrafa estilhaçada no ladrilho já sereno escorre uma coisa espessa que é leite,
sangue... não sei.”. Tanta coisa de Drummond para lembrar e me vem à mente A Morte do Leiteiro. Droga.

O teto está girando ou é impressão minha? Só pode ser coisa da minha cabeça.

39,6°C. Está mais para 40 do que para 39. E se eu entrar em coma? Não devo dormir. Vi isso em algum filme. Vou fazer contas. Dois mais dois igual a quatro. Quatro mais quatro igual a oito. Oito mais oito igual a dezesseis. Dezesseis... chega... contas me dão sono. Estou queimando.

Passava a mão pelo rosto, pelo pescoço e sentia o corpo quente. Arregimentou forças. Levantou. Passo após passo foi até o banheiro. O banho morno parecida de água gelada. Estremecia com o corpo escorado na parede. E se eu morrer? Alguém vai chorar no meu velório? Saiu. Se enxugou lentamente. Sentia as forças acabando. Caiu na cama. Colocou as cobertas sobre o corpo. Calafrios. 39,8°C. E agora? Quase quarenta... logo agora que estou bem no serviço. Será que terei alucinações? Será que vou ver algum parente me esperando do outro lado?

“A morte vem de longe, do fundo dos céus. Vem para os meus olhos, virá para os teus.”. Você de novo, Vinícius. Por que não lembro do Poema Enjoadinho ou de um soneto qualquer?

Que ridículo isso. Morrer sozinho e de febre. Se fosse ainda uma morte mais digna, vá lá... mas, de febre... falam por aí que não se morre de febre, mas, dizem que disco-voador não existe e eu discordo. A tia Edna e a tia Emília juram até hoje ter visto um depois de uma noitada de pife e caxeta. 39,9°C. Se continuar assim em três horas estarei ferrado.

“Quem virá jogar pétalas no meu túmulo de poeta?”. Ninguém. Nem poeta sou. “Quem se abraçará comigo que terá que ser arrancada?”. Poxa, Vina... de novo este mau agouro. Não quero morrer... não QUERO... nem vem que não tem. Mas com quase quarenta de febre... sei não. Só 5% a mais. E é quase nada. A poupança dá um pouco mais que isso por ano e acho uma mixaria. Se o patrão me oferecer 5% de aumento, vou achar um insulto. 5% a mais na temperatura é quase nada. E nem tenho testamento feito.

O meu corpo dói. Deveria ter convidado a Magnólia para jantar na semana passada.

Não deveria ter ficado com o troco a mais na padaria. E se eu tivesse aceitado aquela proposta de emprego no Chile? E não fui para Paris, nem para a Grécia, nem conheci Estocolmo. E agora? O que te espera é o cemitério.

40°C. Pronto. Será que meus filhos ficarão bem de preto? A bruxa da mãe deles vai ficar é bem satisfeita. Quero ficar bonito no caixão, com o rosto corado. Odeio aquelas maquiagens macilentas. Triste morrer com tanto pela frente. Que sensação estranha essa  de estar perto da morte. Que calor... será o remédio que tomei fazendo efeito? Que sono...

39,5°C. Acho que há esperança. 39°C. Talvez eu me safe dessa. 38°C. Acho que sim. 37°C. Não acredito. 36°C. Mas ainda estou fraco. Sei não.

36°C e um dia depois. O troco da padaria devolvido.

36°C e uma semana. Magnólia aceita o convite.

36°C e um mês. Nada de emprego no Chile.


36°C e dois meses. As passagens para Paris, Atenas e Estocolmo estão marcadas para o ano que vem. Com a Tânia. A Magnólia, coitada, não passou do jantar.

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