FEBRE
Tirou o
termômetro da axila. 39° C. Meio do caminho entre o céu e o inferno. Um aumento
de uns 8% na temperatura e pronto. Meninges afetadas e uma hipertermia maligna.
Quentura. Mal-estar. Sozinho na casa quase ampla começou a se preocupar.
“E se aumentar?
Quem vai me ajudar? Preciso achar o celular, deixar aqui do lado... nunca se
sabe...”.
Deitado no
escuro. Silêncio da noite. Voltou ao termômetro. 39,2°C. “Quem pagará o
enterros e as flores se eu me morrer de amores...”. Adorava o poema, mas aquela
não era a hora mais oportuna. Cobriu o corpo. Tremia. Calafrios. Tinha tomado
remédio há pouco tempo. Teria que esperar.
Mais dez
minutos. 39,4°C. Já dá menos que 8%. Daqui a pouco meus órgãos vão começar a
cozinhar. Quem vai me levar para o hospital? E se eu ficar internado, alguém
vai se preocupar com a minha quase morte, o meu quase adeus?
“Da garrafa estilhaçada no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa que é leite,
sangue... não sei.”. Tanta coisa de
Drummond para lembrar e me vem à mente A Morte do Leiteiro. Droga.
O teto está
girando ou é impressão minha? Só pode ser coisa da minha cabeça.
39,6°C. Está
mais para 40 do que para 39. E se eu entrar em coma? Não devo dormir. Vi isso
em algum filme. Vou fazer contas. Dois mais dois igual a quatro. Quatro mais
quatro igual a oito. Oito mais oito igual a dezesseis. Dezesseis... chega...
contas me dão sono. Estou queimando.
Passava a mão
pelo rosto, pelo pescoço e sentia o corpo quente. Arregimentou forças.
Levantou. Passo após passo foi até o banheiro. O banho morno parecida de água
gelada. Estremecia com o corpo escorado na parede. E se eu morrer? Alguém vai
chorar no meu velório? Saiu. Se enxugou lentamente. Sentia as forças acabando.
Caiu na cama. Colocou as cobertas sobre o corpo. Calafrios. 39,8°C. E agora?
Quase quarenta... logo agora que estou bem no serviço. Será que terei
alucinações? Será que vou ver algum parente me esperando do outro lado?
“A morte vem de
longe, do fundo dos céus. Vem para os meus olhos, virá para os teus.”. Você de
novo, Vinícius. Por que não lembro do Poema Enjoadinho ou de um soneto
qualquer?
Que ridículo
isso. Morrer sozinho e de febre. Se fosse ainda uma morte mais digna, vá lá...
mas, de febre... falam por aí que não se morre de febre, mas, dizem que
disco-voador não existe e eu discordo. A tia Edna e a tia Emília juram até hoje
ter visto um depois de uma noitada de pife e caxeta. 39,9°C. Se continuar assim
em três horas estarei ferrado.
“Quem virá jogar
pétalas no meu túmulo de poeta?”. Ninguém. Nem poeta sou. “Quem se abraçará
comigo que terá que ser arrancada?”. Poxa, Vina... de novo este mau agouro. Não
quero morrer... não QUERO... nem vem que não tem. Mas com quase quarenta de
febre... sei não. Só 5% a mais. E é quase nada. A poupança dá um pouco mais que
isso por ano e acho uma mixaria. Se o patrão me oferecer 5% de aumento, vou
achar um insulto. 5% a mais na temperatura é quase nada. E nem tenho testamento
feito.
O meu corpo dói.
Deveria ter convidado a Magnólia para jantar na semana passada.
Não deveria ter
ficado com o troco a mais na padaria. E se eu tivesse aceitado aquela proposta
de emprego no Chile? E não fui para Paris, nem para a Grécia, nem conheci
Estocolmo. E agora? O que te espera é o cemitério.
40°C. Pronto.
Será que meus filhos ficarão bem de preto? A bruxa da mãe deles vai ficar é bem
satisfeita. Quero ficar bonito no caixão, com o rosto corado. Odeio aquelas
maquiagens macilentas. Triste morrer com tanto pela frente. Que sensação
estranha essa de estar perto da morte. Que
calor... será o remédio que tomei fazendo efeito? Que sono...
39,5°C. Acho que
há esperança. 39°C. Talvez eu me safe dessa. 38°C. Acho que sim. 37°C. Não
acredito. 36°C. Mas ainda estou fraco. Sei não.
36°C e um dia
depois. O troco da padaria devolvido.
36°C e uma
semana. Magnólia aceita o convite.
36°C e um mês.
Nada de emprego no Chile.
36°C e dois
meses. As passagens para Paris, Atenas e Estocolmo estão marcadas para o ano
que vem. Com a Tânia. A Magnólia, coitada, não passou do jantar.
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