sexta-feira, 23 de outubro de 2015

ESPERA - Conto de Valéria Surreaux (Uruguaiana, RS)

ESPERA

As criadas faziam sabão com graxa de ovelha, mas só serviam para lavar as roupas, depois eram perfumadas com essência de lavanda trazida esporadicamente pelo mascate Taulfo. Depois as roupas eram estendidas nas pedras para quarar. Taulfo cruzava a porteira com a carroça lotada de fazendas, talcos, pós de arroz, Água Java, Leite de Magnésia e sabonetes Lady. Estes sim, finos, vindos de longe, serviam para o banho dos patrões. Alice, Tereza a Amélia davam gritinhos enquanto separavam todos os produtos de toillete. Seu Antônio e Francisco se interessavam só pelo fumo e pela erva argentina. Corina, a empregada era quem lembrava das ervas para o chá calmante de dona Joana, que depois da morte do filho se desinteressou pelo mundo, pelo feitio dos vestidos das meninas e até pela transmissão do Repórter Esso. Corina misturava ao chá o Regulador Gesteira para amenizar a artrite e a tristeza. Ela o sorvia com o olhar perdido. Seu único interesse era se chovia ou não, se estava ventando ou esfriando como se isso pudesse fazer diferença na sua vida limitada as paredes azuis – hortênsia do amplo quarto da estância onde passavam os meses de inverno , só voltando para a cidade quando os campos se enchiam de marias -moles e florzinhas lilases e cor-de-rosa.

A cidade tinha o glamour das confeitarias, das colunas sociais, das fofocas do
centro, dos rapazes de família galanteando as moças nos bailes do Clube Comercial. A revista Fon-Fon apresentava o que estava em voga e Amélia, a filha mais velha tratava de encomendar vestidos e chapéus da capital, principalmente para Alice a mais faceira de todas, a única que jamais repetia o vestido, sempre impecável para receber as visitas. Era a mais bonita das irmãs, tinha os traços mais delicados e os olhos cor de tempestade lhe assegurava a condição da mais cortejada do grupo de amigas. Não se interessava por prendas domésticas, como as irmãs. Tocava piano, somente, porque fora obrigada pela mãe. Toda moça precisava tocar um instrumento para se apresentar nos saraus organizados por Dona Carmelita, de dois em dois meses e era o acontecimento social mais aguardado da cidade. Teobaldo lhe fazia a corte e dedicava-lhe poesias de sua autoria. A família fazia gosto, era um rapaz direito, estudava na escola militar em Porto Alegre e se preparava para cursar medicina. Alice não se interessava por Teobaldo e por nenhum outro pretendente. . Dizia que alguém estava a sua espera, que os sonhos lhe faziam essa profecia e cultuava santos em um altar improvisado na mesa de cabeceira de seu quarto, forrado de cambraia e com um cheiro enjoativo de velas que remetia a velórios intermináveis. Tereza segurava suas mãos e dizia com candura que talvez fosse Onofre esse homem tão esperado ou quem sabe, Rômulo, mas ela negava. Não, não era nenhum deles. Ela o via nitidamente nos sonhos. Olhos claros, cabelos negros duros de brilhantina, sorriso largo, bigode fino. Muito diferente de todos os outros. Amélia fazia as vezes da mãe, tentava em vão remove-la de seus delírios, mas nada a demovia da convicção de que um dia ele chegaria. Esperava impecável, ereta em espartilhos e pálida de pó de arroz. Não saía mais às ruas, limitava-se a janela da sala de jantar onde esperava com olhos aflitos o homem que não existia em lugar algum. Passou a esperá-lo durante a noite. Bem antes do anoitecer enchia a banheira e tomava banho até terminar o sabonete Lady, fazendo que Amélia e as empregadas deixassem apenas uma lasca para que o banho não demorasse tantas horas. Quando enfim, o sabonete terminava, ela vestia vestidos de gala, atava o cabelo escuro na nuca, pintava os olhos de preto azulado, descia as escadas do casarão e tocava piano até amanhecer. Antônio não se importava com as excentricidades da filha sempre envolvido com a maçonaria e a política. Joana, a mãe, achava as músicas bonitas, chorava quase sempre.


As irmãs casaram, tiveram filhos. Alice não viu o tempo passar. Compareceu friamente ao velório dos pais, primeiro Antônio, depois Joana que foi punida com uma vida longa. Alice tomava banhos intermináveis e atravessava os anos e as madrugadas com os melhores vestidos de gala, tocando piano e roubando o sono de todos. Não notou as rugas, os vincos ao redor da boca, os quadris aumentados, as mãos cheias de pintas escuras. Esperava. Uma noite ele chegaria encantado pela sua música, sua elegância e seu perfume de flor.

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