ENXURRADA
Caminhando sobre
folhas amarelas, debaixo de uma chuva fina e fria, bateu à porta um homem de
cabelos loiros, olhos verde furta-cor, lábios desenhando um sorriso de criança
feliz, os dentes brancos e parelhos. Alexandre da Macedônia? O Grande? Não,
simplesmente Alexandre de São José dos Ausentes, professor de Filosofia, dizia
ele. Nosso primeiro candidato a inquilino sorria, mas estava preocupado. Havia
a história de Josefina, uma cadela por dar cria, e um prazo para deixar o lugar
onde ele estava mal acomodado. Ele foi embora porque o quarto não era como
esperava e fomos acometidas de uma ansiedade intensa. O homem tinha de ficar
aqui, quem sabe até para a cachorra nós encontrávamos um lugar na área coberta,
ou no banheiro de empregada. Passamos a reconstituir passo a passo nossa
conversa com ele e combinamos que na manhã seguinte o procuraríamos na escola.
Na próxima
noite, ele começava a trazer as roupas, de tão feliz por encontrar pessoas que
aceitavam a cachorra dele. Na primeira viagem, veio um anjo enorme, colocado
entre os nossos cristais: era de uma semelhança muito grande com a nossa
primeira visão mística. À mão do anjo, um candelabro com três velas brancas.
Uma para cada um de nós, ele tem um papel em nossas vidas, pensávamos.
Nossos horários
se desencontravam. Ele passava as noites na casa de um amigo velando o sono,
primeiro de Josefina, depois da ninhada. A chave dele abria a porta por volta
das cinco da manhã, ouvíamos a mijada sonora como a de um cavalo solto na
pradaria e, em seguida, um discreto ronco. Uma tarde ele veio em casa e sentou
para conversar, descobrimos nele um homem sábio e solitário. Ele nos contou dos
horrores que viveu no lugar onde morava, da gente com quem havia se metido e
que agora ele respirava ar puro, sentia paz, dormia sem medo. Passamos a sentir
uma brisa que ventilava todo o apartamento e trazia um brilho colorido ao ar
que respirávamos. Os cantos dos pássaros eram mais altos e mais variados, como
se não vivêssemos no centro da cidade e sim numa casa de campo, mais perto da
natureza e do céu.
Gêmeas, ele nos
chamava, vamos dar um passeio no parque? Gêmeas, que música vocês gostariam de
escutar? Não nos chamava pelos nossos nomes. Bem, na verdade, nem o nosso
falecido pai, o Major, conseguia nos distinguir. Isso fez de nós pessoas
caseiras e arredias ao contato com outros adolescentes. Só íamos ao banco
receber o soldo e ao mercado comprar os suprimentos. Nos assustava o jeito das
pessoas nos olharem, os comentários sobre o azul de nossos olhos, os nossos
cabelos ruivos, nossa pele translúcida, nossas formas tão fortemente delineadas
que faziam assemelhar-nos à sereias.
No dia em que
ele trouxe Josefina, ela uivou de tristeza. Fomos saber se ele precisava de
ajuda e acabamos os três na sala acalentando a cadela. O toque no animal nos
transmitia, aos três, uma sensação de proximidade física de uma intensidade
que, por vezes, fazia nos encostarmos as mãos e as pernas uns dos outros. O
calor do pêlo nos transmitia suaves estremecimentos pelo corpo, as peles dos
três ondulavam, produzíamos um suco desconhecido oloroso a mar. Éramos
náufragos no paraíso, ele disse, tirando as roupas apertadas para ficar mais
confortável. É tarde, não dormimos, vamos construir um abrigo? Nas montanhas de
onde vim está nevando, posso sentir pelo ardor das minhas faces. Os pinheirais
brancos, a lenha queima em todos os fogões.
Trouxemos para a
sala nossos lençóis mais macios e perfumados, edredons de cetim, travesseiros
de penas de ganso. Como nossos corpos eram belos, nossos cabelos, uma seda, ele
sussurrava enquanto nos livrava dos robes e camisolas. Ele tinha um sino que se
agitava e se desenrolava entre as pernas musculosas. Era generoso com nós duas.
Se, com a mão esquerda, acariciava o seio de uma, com a direita afagava os
pelos úmidos de outra.; se, com o pé esquerdo percorria a perna de uma, com o
direito percorria o ventre e os seios da outra.; se penetrava a caverna de uma
com o membro magnífico, com a língua sugava a da outra.
Josefina iniciou
um uivo melodioso, não triste, numa cadência que comandou nossos movimentos até
produzirmos um grito único e involuntário que nos ancorou a uma ilha
resplandecente e acariciada por espumas abundantes.
O animal passou
a comandar não só nossas três vidas, mas também a dos outros moradores do
prédio. A porta não dava mais conta do entra e sai dos maridos e esposas que
deixavam suas obrigações e fugiam para casa naquelas horas de urgência
contagiante. O edifício chamava a atenção dos vizinhos pelo movimento
conflagrado por uma sinfonia de suspiros, gemidos, ganidos, súplicas,
declarações de arrependimento, promessas de presença e devoção eternas. Os
vidros trincavam, os comerciantes fechavam as portas e se reuniam às pessoas na
calçada e os automóveis congestionavam o trânsito. Os solitários mentiam para
si mesmos que aquele era um lugar abençoado e davam-se as mãos e abraçavam-se
num transe que se alastrava pelos outros prédios como um tufão.
Procissões
começaram a brotar espontaneamente e os edifícios e casas vizinhas foram
contagiados pela sublevação.
O povo criou uma
coreografia inspirada no movimento de um trem que se punha em marcha para uma
viagem a um país onde se gozava de ataques de turbas representantes de todas as
etnias. Aquela dança sincopada, resultante do consentimento dos inocentes viajantes
do trem, culminava com extremados arrebatamentos manifestados por gritos
selvagens, vestimentas dilaceradas e órgãos genitais que prescindiam do
restante do corpo para se movimentarem frenéticos até o momento da enxurrada
magnânima banhar ruas, praças e avenidas.
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