sexta-feira, 23 de outubro de 2015

ENXURRADA - Conto de Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)

ENXURRADA

Caminhando sobre folhas amarelas, debaixo de uma chuva fina e fria, bateu à porta um homem de cabelos loiros, olhos verde furta-cor, lábios desenhando um sorriso de criança feliz, os dentes brancos e parelhos. Alexandre da Macedônia? O Grande? Não, simplesmente Alexandre de São José dos Ausentes, professor de Filosofia, dizia ele. Nosso primeiro candidato a inquilino sorria, mas estava preocupado. Havia a história de Josefina, uma cadela por dar cria, e um prazo para deixar o lugar onde ele estava mal acomodado. Ele foi embora porque o quarto não era como esperava e fomos acometidas de uma ansiedade intensa. O homem tinha de ficar aqui, quem sabe até para a cachorra nós encontrávamos um lugar na área coberta, ou no banheiro de empregada. Passamos a reconstituir passo a passo nossa conversa com ele e combinamos que na manhã seguinte o procuraríamos na escola.

Na próxima noite, ele começava a trazer as roupas, de tão feliz por encontrar pessoas que aceitavam a cachorra dele. Na primeira viagem, veio um anjo enorme, colocado entre os nossos cristais: era de uma semelhança muito grande com a nossa primeira visão mística. À mão do anjo, um candelabro com três velas brancas. Uma para cada um de nós, ele tem um papel em nossas vidas, pensávamos.


Nossos horários se desencontravam. Ele passava as noites na casa de um amigo velando o sono, primeiro de Josefina, depois da ninhada. A chave dele abria a porta por volta das cinco da manhã, ouvíamos a mijada sonora como a de um cavalo solto na pradaria e, em seguida, um discreto ronco. Uma tarde ele veio em casa e sentou para conversar, descobrimos nele um homem sábio e solitário. Ele nos contou dos horrores que viveu no lugar onde morava, da gente com quem havia se metido e que agora ele respirava ar puro, sentia paz, dormia sem medo. Passamos a sentir uma brisa que ventilava todo o apartamento e trazia um brilho colorido ao ar que respirávamos. Os cantos dos pássaros eram mais altos e mais variados, como se não vivêssemos no centro da cidade e sim numa casa de campo, mais perto da natureza e do céu.

Gêmeas, ele nos chamava, vamos dar um passeio no parque? Gêmeas, que música vocês gostariam de escutar? Não nos chamava pelos nossos nomes. Bem, na verdade, nem o nosso falecido pai, o Major, conseguia nos distinguir. Isso fez de nós pessoas caseiras e arredias ao contato com outros adolescentes. Só íamos ao banco receber o soldo e ao mercado comprar os suprimentos. Nos assustava o jeito das pessoas nos olharem, os comentários sobre o azul de nossos olhos, os nossos cabelos ruivos, nossa pele translúcida, nossas formas tão fortemente delineadas que faziam assemelhar-nos à sereias.

No dia em que ele trouxe Josefina, ela uivou de tristeza. Fomos saber se ele precisava de ajuda e acabamos os três na sala acalentando a cadela. O toque no animal nos transmitia, aos três, uma sensação de proximidade física de uma intensidade que, por vezes, fazia nos encostarmos as mãos e as pernas uns dos outros. O calor do pêlo nos transmitia suaves estremecimentos pelo corpo, as peles dos três ondulavam, produzíamos um suco desconhecido oloroso a mar. Éramos náufragos no paraíso, ele disse, tirando as roupas apertadas para ficar mais confortável. É tarde, não dormimos, vamos construir um abrigo? Nas montanhas de onde vim está nevando, posso sentir pelo ardor das minhas faces. Os pinheirais brancos, a lenha queima em todos os fogões.

Trouxemos para a sala nossos lençóis mais macios e perfumados, edredons de cetim, travesseiros de penas de ganso. Como nossos corpos eram belos, nossos cabelos, uma seda, ele sussurrava enquanto nos livrava dos robes e camisolas. Ele tinha um sino que se agitava e se desenrolava entre as pernas musculosas. Era generoso com nós duas. Se, com a mão esquerda, acariciava o seio de uma, com a direita afagava os pelos úmidos de outra.; se, com o pé esquerdo percorria a perna de uma, com o direito percorria o ventre e os seios da outra.; se penetrava a caverna de uma com o membro magnífico, com a língua sugava a da outra.

Josefina iniciou um uivo melodioso, não triste, numa cadência que comandou nossos movimentos até produzirmos um grito único e involuntário que nos ancorou a uma ilha resplandecente e acariciada por espumas abundantes.

O animal passou a comandar não só nossas três vidas, mas também a dos outros moradores do prédio. A porta não dava mais conta do entra e sai dos maridos e esposas que deixavam suas obrigações e fugiam para casa naquelas horas de urgência contagiante. O edifício chamava a atenção dos vizinhos pelo movimento conflagrado por uma sinfonia de suspiros, gemidos, ganidos, súplicas, declarações de arrependimento, promessas de presença e devoção eternas. Os vidros trincavam, os comerciantes fechavam as portas e se reuniam às pessoas na calçada e os automóveis congestionavam o trânsito. Os solitários mentiam para si mesmos que aquele era um lugar abençoado e davam-se as mãos e abraçavam-se num transe que se alastrava pelos outros prédios como um tufão.

Procissões começaram a brotar espontaneamente e os edifícios e casas vizinhas foram contagiados pela sublevação.

O povo criou uma coreografia inspirada no movimento de um trem que se punha em marcha para uma viagem a um país onde se gozava de ataques de turbas representantes de todas as etnias. Aquela dança sincopada, resultante do consentimento dos inocentes viajantes do trem, culminava com extremados arrebatamentos manifestados por gritos selvagens, vestimentas dilaceradas e órgãos genitais que prescindiam do restante do corpo para se movimentarem frenéticos até o momento da enxurrada magnânima banhar ruas, praças e avenidas.


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