quinta-feira, 15 de outubro de 2015

GUARDIÃ - Conto de Ricardo Fabrício Martins Bastos (Santa Cruz, RS)

GUARDIÃ

Já se vão dez dias que só chove. Era mansa no começo e foi aos poucos escurecendo o tronco dos dois cinamomos próximos à porteira. No chão, apesar de não ser outono, um tapete amarelado de folhas cruzava a cerca e se estendia até quase o brete de cascalho avermelhado. Era uma boa estrada, nunca se ouvira falar de carro atolado. Não fosse a água da sanga, logo ali embaixo, ter crescido até não dar mais passo, o ônibus ainda viria. Mas já no quinto dia de chuva Isabelita esteve plantada do lado de lá da cerca até depois das sete e nada da condução. E lá ficou, com seus cadernos escondidos sob a capa de encerado amarelo, até que João Domingo, mangueando umas vacas, por ali cruzou e a mandou de volta. Enquanto não chegava à porta da velha casa em meia-água, franqueada por uma grossa parede branca há muito devendo uma pintura, manteve a esperança e o olhar mirando o rumo do brete. Mas, durante muitos dias ainda, nada sobre rodas viria daquele lado, ou de lado algum.

O fio de água que descia das telhas às vezes mermava, às vezes engrossava em frente à janela onde Isabelita passava as horas que abundavam e aborreciam a sala. No sopé da coxilha, a mesma estrada e adiante, campo e mais campo, salpicado aqui e acolá de uns capões, ora de mato, ora de eucalipto. Por vezes eles sumiam no aperto da chuva, ou se enfumaçavam na neblina de um breve estio. Naquela mesma bruma, ela tinha uma distante lembrança de seu pai inclinado sobre o cavalo para abrir a porteira sem apear. Era um homem corpulento e muito metido em
seus próprios pensamentos. Sua voz era um grunhido raro e obscuro, que sempre trazia uma ordem, mas que determinava sem ralhar. Abrindo-se o armário da mãe, há um canto onde estão algumas roupas dele. Não deviam ser muitas, pois na memória de Isabelita ele estava sempre com a camisa de mangas compridas, axadrezada, amarela e com listras azuis. Nunca o ouvira em uma discussão sequer. Apenas um de seus grunhidos interrompeu a janta, dizendo que havia um emprego para os lados de Alegrete, e na manhã seguinte o cavalo encilhado silenciou o olhar da mãe como a uma lagoa que se cobre toda de aguapés. Desde então, as mãos dela endureceram para a costura e seus braços ficaram mais fortes. João Domingo não entrou mais no ônibus com Isabelita, ganhou um pala espanhol e um chapéu de abas largas, que trazia sobre o corpo quando a mandou voltar para casa naquela manhã.

Certa vez, quando ainda voltavam juntos da escola, Domingo lhe mostrou na contracapa de um caderno um calendário. Lá estavam todos os dias do ano, organizados em meses que misteriosamente não tinham o mesmo número de dias. As letras eram os outros nomes dos dias, que lhe diziam muito mais respeito. O “D” da missa pelo rádio e das alegrias adultas, cheias de vinho, o cheiro de carne assando. De segunda a sexta, esperar o ônibus, sentar na janela e atravessar aquelas imensidões de campos, tentando decorar o nome de seus donos. A alegria na vila, colorida pelas gôndolas das lojas palestinas e as propagandas de refrigerante. Até chegar à escola, um prédio retangular muito desprovido de graça, assentado quase à beira do rio, parava em cada vitrine, carregando nos olhos dezenas de badulaques que penduraria nas paredes do quarto ou da sala. Apetrechos de cozinha, que talvez redesenhassem um sorriso no rosto de sua mãe.

Mas foi no posto de gasolina que se materializou a ideia. Juntou toda a coragem que trazia nos bolsos e pediu ao senhor de macacão azul uma daquelas folhinhas. Aquelas com as belíssimas paisagens de montanhas cobertas de neve, praias cobertas de gente e de sol e a mais intrigante de todas, a de uma cidade grande à noite, com suas ruas iluminadas repletas de carros que deixam rastros coloridos de luzes mágicas derramadas pelos faróis. Já sabia onde pendurá-la e saberia também como riscar cada dia, toda a manhã.

Depois, voltar com o estômago grudado às costas; descer da condução, aguardada pela cachorrada na porteira. Para tudo o que a chuva não deixava acontecer havia um dia, em um ciclo que se completava no sábado, ajudando nas tarefas domésticas, embaladas pelo rádio a todo volume e a delícia de uma casa completamente aberta.

Ainda com as mãos sobre uma pilha de livros fechados, apoiados em uma mesinha da precária biblioteca de escola municipal, Isabelita olhava sem traduzir o calendário da parede. Não eram mais as mesmas paisagens nem os mesmos dias, agora que os dias e as horas moram tão dentro de si, que já não se fazem necessárias as folhinhas, ou mesmo os relógios. Sua vida na cidade tinha um rumo inflexível, faça chuva ou faça sol. Sem os lapsos e o largo compasso marcado por estações do ano, pessoas que se vão ou que chegam, secas e enchentes. Em seguida o sinal vai tocar e a secretária estará esperando junto à porta que ela passe, carregando a caixa de giz e o caderno de chamada.

A chuva cessara, mas a sanga seguia alta, tratando de processar a água recolhida nas suaves inclinações das coxilhas mais distantes. Para o outro lado da estrada, lá quando o brete se estreita, viu-se primeiro um ponto negro, depois um vulto sobre o cavalo que se aproximava a trote marchado. Um vento do oeste já desgrudava do chão e fazia rolar uma a uma as folhas caídas dos cinamomos. As poças e os pequenos córregos ainda acumulados pelos caminhos se encrespavam com as promessas de estio.

Como se uma música parasse, fez-se um silêncio que começou na cozinha: cessou o batifúndio de panelas e uma pequena janela se abriu rangendo. E se alastrou pela redondeza, por onde Domingo apartava a terneirada com ajuda do tio, que andava agregado por ali há meses. Silêncio que em seguida foi rompido pela cachorrada ao desistir do movimento do gado e ir-se posicionar ruidosamente junto à porteira.

Pedro Amaro dos Santos..., diriam os lábios cerrados da mãe. Diz que não és tu, segue a estrada depois da porteira, abana com as pilchas de algum vizinho e vai em direção à vila. Por que me vens agora que a vida já continuou e virou essa outra coisa? Que hás feito do emprego? Em dois anos e meio só uma vez conseguiste mandar notícias e algum dinheiro. Restam duas notas dele na lata que ainda guardamos no mesmo armário da cozinha. Por aqui fomo-nos virando, se pouco se ganha, pouco se gasta. Que não seja doença, meu Deus. Logo depois que te foste, abriu uma fruteira na vila que aceitou vender nosso queijo e com isso dava pra roupa e o material da Isabelita. Será que choveu pra lá? Esse poncho só pode estar encharcado. Nem preciso contar que o Domingo largou o colégio. Olha ele lá nas mangueiras.

Isabelita calava outras coisas. Teria que calcular o tempo passado desde então. Que mundo era aquele de onde o pai retornava; será que alguém anotou o dia exato da partida; isso quer dizer que a água já baixou e amanhã passa o ônibus; onde vai sentar o tio na hora da janta?

Há dias em que é melhor passar o recreio na biblioteca. O permanente matraquear da sala dos professores não a incomodaria tanto se a cada instante não fosse chamada a opinar sobre as frivolidades lá servidas com bolachas recheadas e café muito doce. A biblioteca é o lugar menos frequentado naqueles vinte minutos. Há apenas uma secretária encarregada de fechá-la tão logo se encerre o intervalo. E que se cala depois de responder à saudação da professora.
João Domingo disse para o tio soltar o gado do tronco para a mangueira, decretando o final do dia de trabalho. Não se dirigiu à porteira, mas à porta da casa aonde já acudiam Isabelita e a mãe.
– O senhor adelgaçou meia rês – disse João ao que apeava, aliviando o semblante do homem, que chegou a surpreendê-los com um meio sorriso.

Abraçou, então, cada um em silêncio. Pediu para entrar, tomou seu lugar à mesa, onde passou até a hora de dormir. Bebeu um pouco, comeu e ficou a responder com sim e com não às perguntas que acabaram contanto os poucos detalhes da sua ausência. Pobres histórias de patrões e empregados e de parentes distantes.

A condução, na verdade, demorou ainda dois dias para cruzar por ali. E assim como devolveu Isabelita ao seu ir e vir, também levou João Domingo, um tempo depois, para o alistamento militar. O João, que paleteou suas trouxas para dentro do ônibus indo se sentar junto à irmã. As manhãs na campanha, quando já quer entrar o verão, têm um vento que bate macio no rosto e não deixa suspeitar a aridez que se avizinha. Cruzando sobre a taipa da barragem, o sol enfim se debruçou sobre a lateral do velho ônibus. João Domingo antecipava os procedimentos da baldeação na vila, a descida na rodoviária da cidade. Depois, caminhar até a Junta Militar, o quartel e, se tudo der certo, já ficar por lá.

Às suas costas a secretária chaveou as portas da biblioteca. Devolvida ao pátio da escola, a professora não apressou o passo. Enquanto conferia a existência de giz suficiente, ao fundo da caixa em cuja tampa se acoplava um apagador, descobriria ainda algumas lembranças quebradas. João Domingo descendo na parada, enquanto ela se dirigia ao colégio; o enterro do tio, lá mesmo nos fundos da velha casa branca, em cuja parede deve ter ficado a folhinha; a mudança para o loteamento da Cohab; o pai chegando com a bicicleta recém-pintada de azul-marinho, e os doces tempos do Normal.

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