GUARDIÃ
Já se vão dez dias que só chove. Era mansa no começo e foi aos poucos
escurecendo o tronco dos dois cinamomos próximos à porteira. No chão, apesar de
não ser outono, um tapete amarelado de folhas cruzava a cerca e se estendia até
quase o brete de cascalho avermelhado. Era uma boa estrada, nunca se ouvira
falar de carro atolado. Não fosse a água da sanga, logo ali embaixo, ter
crescido até não dar mais passo, o ônibus ainda viria. Mas já no quinto dia de
chuva Isabelita esteve plantada do lado de lá da cerca até depois das sete e
nada da condução. E lá ficou, com seus cadernos escondidos sob a capa de
encerado amarelo, até que João Domingo, mangueando umas vacas, por ali cruzou e
a mandou de volta. Enquanto não chegava à porta da velha casa em meia-água, franqueada por uma grossa parede branca há
muito devendo uma pintura, manteve a esperança e o olhar mirando o rumo do
brete. Mas, durante muitos dias ainda, nada sobre rodas viria daquele lado, ou
de lado algum.
O fio de água que descia das telhas às vezes mermava, às vezes engrossava
em frente à janela onde Isabelita passava as horas que abundavam e aborreciam a
sala. No sopé da coxilha, a mesma estrada e adiante, campo e mais campo,
salpicado aqui e acolá de uns capões, ora de mato, ora de eucalipto. Por vezes
eles sumiam no aperto da chuva, ou se enfumaçavam na neblina de um breve estio.
Naquela mesma bruma, ela tinha uma distante lembrança de seu pai inclinado
sobre o cavalo para abrir a porteira sem apear. Era um homem corpulento e muito
metido em
seus próprios pensamentos. Sua voz era um grunhido raro e obscuro,
que sempre trazia uma ordem, mas que determinava sem ralhar. Abrindo-se o
armário da mãe, há um canto onde estão algumas roupas dele. Não deviam ser
muitas, pois na memória de Isabelita ele estava sempre com a camisa de mangas
compridas, axadrezada, amarela e com listras azuis. Nunca o ouvira em uma
discussão sequer. Apenas um de seus grunhidos interrompeu a janta, dizendo que
havia um emprego para os lados de Alegrete, e na manhã seguinte o cavalo
encilhado silenciou o olhar da mãe como a uma lagoa que se cobre toda de
aguapés. Desde então, as mãos dela endureceram para a costura e seus braços
ficaram mais fortes. João Domingo não entrou mais no ônibus com Isabelita,
ganhou um pala espanhol e um chapéu de abas largas, que trazia sobre o corpo
quando a mandou voltar para casa naquela manhã.
Certa vez, quando ainda voltavam juntos da escola, Domingo lhe mostrou na
contracapa de um caderno um calendário. Lá estavam todos os dias do ano, organizados
em meses que misteriosamente não tinham o mesmo número de dias. As letras eram
os outros nomes dos dias, que lhe diziam muito mais respeito. O “D” da missa
pelo rádio e das alegrias adultas, cheias de vinho, o cheiro de carne assando. De
segunda a sexta, esperar o ônibus, sentar na janela e atravessar aquelas
imensidões de campos, tentando decorar o nome de seus donos. A alegria na vila,
colorida pelas gôndolas das lojas palestinas e as propagandas de refrigerante.
Até chegar à escola, um prédio retangular muito desprovido de graça, assentado
quase à beira do rio, parava em cada vitrine, carregando nos olhos dezenas de
badulaques que penduraria nas paredes do quarto ou da sala. Apetrechos de
cozinha, que talvez redesenhassem um sorriso no rosto de sua mãe.
Mas foi no posto de gasolina que se materializou a ideia. Juntou toda a
coragem que trazia nos bolsos e pediu ao senhor de macacão azul uma daquelas
folhinhas. Aquelas com as belíssimas paisagens de montanhas cobertas de neve,
praias cobertas de gente e de sol e a mais intrigante de todas, a de uma cidade
grande à noite, com suas ruas iluminadas repletas de carros que deixam rastros
coloridos de luzes mágicas derramadas pelos faróis. Já sabia onde pendurá-la e
saberia também como riscar cada dia, toda a manhã.
Depois, voltar com o estômago grudado às costas; descer da condução, aguardada
pela cachorrada na porteira. Para tudo o que a chuva não deixava acontecer
havia um dia, em um ciclo que se completava no sábado, ajudando nas tarefas
domésticas, embaladas pelo rádio a todo volume e a delícia de uma casa completamente
aberta.
Ainda com as mãos sobre uma pilha de livros fechados, apoiados em uma
mesinha da precária biblioteca de escola municipal, Isabelita olhava sem
traduzir o calendário da parede. Não eram mais as mesmas paisagens nem os
mesmos dias, agora que os dias e as horas moram tão dentro de si, que já não se
fazem necessárias as folhinhas, ou mesmo os relógios. Sua vida na cidade tinha
um rumo inflexível, faça chuva ou faça sol. Sem os lapsos e o largo compasso
marcado por estações do ano, pessoas que se vão ou que chegam, secas e
enchentes. Em seguida o sinal vai tocar e a secretária estará esperando junto à
porta que ela passe, carregando a caixa de giz e o caderno de chamada.
A chuva cessara, mas a sanga seguia alta, tratando de processar a água
recolhida nas suaves inclinações das coxilhas mais distantes. Para o outro lado
da estrada, lá quando o brete se estreita, viu-se primeiro um ponto negro,
depois um vulto sobre o cavalo que se aproximava a trote marchado. Um vento do
oeste já desgrudava do chão e fazia rolar uma a uma as folhas caídas dos
cinamomos. As poças e os pequenos córregos ainda acumulados pelos caminhos se
encrespavam com as promessas de estio.
Como se uma música parasse, fez-se um silêncio que começou na cozinha:
cessou o batifúndio de panelas e uma pequena janela se abriu rangendo. E se
alastrou pela redondeza, por onde Domingo apartava a terneirada com ajuda do
tio, que andava agregado por ali há meses. Silêncio que em seguida foi rompido
pela cachorrada ao desistir do movimento do gado e ir-se posicionar
ruidosamente junto à porteira.
Pedro Amaro dos Santos..., diriam os lábios cerrados da mãe. Diz que não
és tu, segue a estrada depois da porteira, abana com as pilchas de algum
vizinho e vai em direção à vila. Por que me vens agora que a vida já continuou
e virou essa outra coisa? Que hás feito do emprego? Em dois anos e meio só uma
vez conseguiste mandar notícias e algum dinheiro. Restam duas notas dele na
lata que ainda guardamos no mesmo armário da cozinha. Por aqui fomo-nos
virando, se pouco se ganha, pouco se gasta. Que não seja doença, meu Deus. Logo
depois que te foste, abriu uma fruteira na vila que aceitou vender nosso queijo
e com isso dava pra roupa e o material da Isabelita. Será que choveu pra lá?
Esse poncho só pode estar encharcado. Nem preciso contar que o Domingo largou o
colégio. Olha ele lá nas mangueiras.
Isabelita calava outras coisas. Teria que calcular o tempo passado desde então.
Que mundo era aquele de onde o pai retornava; será que alguém anotou o dia
exato da partida; isso quer dizer que a água já baixou e amanhã passa o ônibus;
onde vai sentar o tio na hora da janta?
Há dias em que é melhor passar o recreio na biblioteca. O permanente
matraquear da sala dos professores não a incomodaria tanto se a cada instante
não fosse chamada a opinar sobre as frivolidades lá servidas com bolachas
recheadas e café muito doce. A biblioteca é o lugar menos frequentado naqueles
vinte minutos. Há apenas uma secretária encarregada de fechá-la tão logo se
encerre o intervalo. E que se cala depois de responder à saudação da professora.
João Domingo disse para o tio soltar o gado do tronco para a mangueira,
decretando o final do dia de trabalho. Não se dirigiu à porteira, mas à porta
da casa aonde já acudiam Isabelita e a mãe.
– O senhor adelgaçou meia rês – disse João ao que apeava, aliviando o
semblante do homem, que chegou a surpreendê-los com um meio sorriso.
Abraçou, então, cada um em silêncio. Pediu para entrar, tomou seu lugar à
mesa, onde passou até a hora de dormir. Bebeu um pouco, comeu e ficou a
responder com sim e com não às perguntas que acabaram contanto os poucos
detalhes da sua ausência. Pobres histórias de patrões e empregados e de
parentes distantes.
A condução, na verdade, demorou ainda dois dias para cruzar por ali. E
assim como devolveu Isabelita ao seu ir e vir, também levou João Domingo, um tempo
depois, para o alistamento militar. O João, que paleteou suas trouxas para
dentro do ônibus indo se sentar junto à irmã. As manhãs na campanha, quando já
quer entrar o verão, têm um vento que bate macio no rosto e não deixa suspeitar
a aridez que se avizinha. Cruzando sobre a taipa da barragem, o sol enfim se debruçou sobre a lateral do velho
ônibus. João Domingo antecipava os procedimentos da baldeação na vila, a
descida na rodoviária da cidade. Depois, caminhar até a Junta Militar, o
quartel e, se tudo der certo, já ficar por lá.
Às suas costas a secretária chaveou as portas da biblioteca. Devolvida ao
pátio da escola, a professora não apressou o passo. Enquanto conferia a
existência de giz suficiente, ao fundo da caixa em cuja tampa se acoplava um
apagador, descobriria ainda algumas lembranças quebradas. João Domingo descendo
na parada, enquanto ela se dirigia ao colégio; o enterro do tio, lá mesmo nos
fundos da velha casa branca, em cuja parede deve ter ficado a folhinha; a mudança
para o loteamento da Cohab; o pai chegando com a bicicleta recém-pintada de azul-marinho,
e os doces tempos do Normal.
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