DE CÃES E ÉBRIOS
Ia negociando
noções de equilíbrio com a parede, ao caminhar. Completamente bêbado. A roupa
suja, o cheiro a vômito, a ardência na garganta. A personalidade em trapos.
Limpa, apenas a memória, mas, ainda assim, lhe rondava uma sensação
desconfortável de que algo voltaria a atormentar, de que a trégua se iria junto
com o porre.
A noite era
úmida, mas, não chovia. Ao passar, a caminho de casa, pelos bares mais
badalados, do centro da cidade, começara a ouvir os risos e gritos debochados
proferidos pelos jovens boêmios. Riam, apontavam, detalhavam seus destroços
como se ele os desconhecesse. De repente alguém gritou, às gargalhadas:
– Não se sabe
quem é o cachorro ou quem é o bêbado!
Foi somente aí
que ele percebeu a presença do cãozinho que o seguia. Era baixinho, de
cinzentos pêlos crespos, rabo levantado e orelhas caídas. Fugia de qualquer
padrão racial.
– Deixa de andar
com este animal… – bradou um gaiato, prosseguindo após uma breve pausa: –
cachorro!
Todos riam. E
todo este riso,
toda esta troça, invadia seu corpo e o atordoava mais que a
cachaça. Foi ficando irritado, se sentindo impotente. Vontade de chorar. Ânsia
por correr, certeza de não comandar mais as pernas. Virou-se para o cão e lhe
atirou um chute. As pernas não eram mais suas, pertenciam à raiva. Errou. Se
não fosse a grade de um edifício teria caído diretamente no chão: bateu com as
costas e foi escorregando, até conseguir se recompor. Pôs-se em pé e continuou
a caminhada.
Notou que,
apesar de sua grosseria, o cachorro continuava o seguindo. Tentou afastá-lo de
si, mas, a única coisa que o animalzinho fazia era latir e chorar. Acabou
desistindo e prosseguiu seu caminho.
Ao chegar em
casa foi deixando um rastro de esquecimento: portão aberto, porta encostada,
luzes acesas, vida arruinada… Atirou-se na velha cama de mola e apagou.
No dia seguinte,
antes que se anunciasse a ressaca, entreviu, ao lado de sua cama, o cãozinho de
pêlo crespo e cinzento. Estava o bichinho deitado com a cabeça sobre uma
pequena poça de sangue. Viu que o sangue saíra da boca. Estava morto. E morreu
com os pequenos olhinhos vagos, como se ainda procurasse por ajuda.
Quando chorara
aos uivos na noite anterior, o cachorro apenas implorava por ajuda, assim como
o ébrio. Ambos vagavam sozinhos na noite, de alma envenenada e com o ego
dolorido. Ambos morriam aos poucos por conta das asperezas do mundo, da maldade
dos outros, da carência de afeto, dos demônios ocultos nas sarjetas. Os cães
são assim, morrem sempre mais cedo. Os ébrios ressuscitam cada vez mais mortos,
a cada ressaca.
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