sábado, 17 de outubro de 2015

DE CÃES E ÉBRIOS - Conto de Cícero Silveira Christino (Alegrete, RS)

DE CÃES E ÉBRIOS

Ia negociando noções de equilíbrio com a parede, ao caminhar. Completamente bêbado. A roupa suja, o cheiro a vômito, a ardência na garganta. A personalidade em trapos. Limpa, apenas a memória, mas, ainda assim, lhe rondava uma sensação desconfortável de que algo voltaria a atormentar, de que a trégua se iria junto com o porre.

A noite era úmida, mas, não chovia. Ao passar, a caminho de casa, pelos bares mais badalados, do centro da cidade, começara a ouvir os risos e gritos debochados proferidos pelos jovens boêmios. Riam, apontavam, detalhavam seus destroços como se ele os desconhecesse. De repente alguém gritou, às gargalhadas:

– Não se sabe quem é o cachorro ou quem é o bêbado!

Foi somente aí que ele percebeu a presença do cãozinho que o seguia. Era baixinho, de cinzentos pêlos crespos, rabo levantado e orelhas caídas. Fugia de qualquer padrão racial.

– Deixa de andar com este animal… – bradou um gaiato, prosseguindo após uma breve pausa: – cachorro!

Todos riam. E todo este riso,
toda esta troça, invadia seu corpo e o atordoava mais que a cachaça. Foi ficando irritado, se sentindo impotente. Vontade de chorar. Ânsia por correr, certeza de não comandar mais as pernas. Virou-se para o cão e lhe atirou um chute. As pernas não eram mais suas, pertenciam à raiva. Errou. Se não fosse a grade de um edifício teria caído diretamente no chão: bateu com as costas e foi escorregando, até conseguir se recompor. Pôs-se em pé e continuou a caminhada.

Notou que, apesar de sua grosseria, o cachorro continuava o seguindo. Tentou afastá-lo de si, mas, a única coisa que o animalzinho fazia era latir e chorar. Acabou desistindo e prosseguiu seu caminho.

Ao chegar em casa foi deixando um rastro de esquecimento: portão aberto, porta encostada, luzes acesas, vida arruinada… Atirou-se na velha cama de mola e apagou.

No dia seguinte, antes que se anunciasse a ressaca, entreviu, ao lado de sua cama, o cãozinho de pêlo crespo e cinzento. Estava o bichinho deitado com a cabeça sobre uma pequena poça de sangue. Viu que o sangue saíra da boca. Estava morto. E morreu com os pequenos olhinhos vagos, como se ainda procurasse por ajuda.


Quando chorara aos uivos na noite anterior, o cachorro apenas implorava por ajuda, assim como o ébrio. Ambos vagavam sozinhos na noite, de alma envenenada e com o ego dolorido. Ambos morriam aos poucos por conta das asperezas do mundo, da maldade dos outros, da carência de afeto, dos demônios ocultos nas sarjetas. Os cães são assim, morrem sempre mais cedo. Os ébrios ressuscitam cada vez mais mortos, a cada ressaca.

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