MISTER KING
Quando Mister
King lutava, ficava cego. Não via o sangue. Sabia apenas que tinha de
continuar, feito um trator, e partia para cima do adversário com uma gana de
morte. Calçar as luvas de boxe sempre foi um ritual; ele crescia por dentro. As
pupilas dilatavam, o peito abria, os músculos ficavam tensos e um ódio estranho
surgia ninguém sabe de onde, alimentando um violento desejo de vitória. Só
parava quando era impedido pelo juiz e voltava a si apenas quando o técnico
invadia o ringue para celebrar com ele o nocaute. Agora segura a vassoura com
as mesmas mãos que fizeram Gorila, vinte quilos maior, cair no chão feito um
saco de cimento. Fosse naqueles tempos, os capangas do Jorge não falariam com
ele daquele jeito.
– Tá escutando,
velho? O patrão quer te ver hoje lá no escritório.
– O que ele quer?
Já expliquei que meu ordenado atrasou. Pago ele assim que receber.
– Teu ordenado
não é problema dele. O dinheiro que tu tá devendo é.
O capanga que
falava mais era um nanico. Procurava compensar a baixa estatura com um tom de
voz arrogante.
– Olha, fala pro
Jorge…
– Que Jorge? Não
conheço nenhum Jorge.
Mister King
respirou fundo, apertou o cabo de vassoura até sentir os ossos das mãos doerem.
– Fala pro
Vampiro que vou dar um jeito. Até segunda eu…
– Não sou teu
moleque de recado, velho. Se tu não tem a grana agora, vai ter que te explicar
pro patrão no escritório. Oito horas. Ouviu?
– Eu não sou
surdo.
– Não é mas quer
ficar. Não banca o valentão comigo, que não respeito cabelo branco. Oito horas
no escritório. Ou eu mesmo te arrasto pra lá, tá entendendo?
Mister King
assentiu com a cabeça e os cinco capangas do Jorge desceram a rua, sumindo na
primeira esquina. O segurança do hospital estranhou a movimentação e desceu as
escadas para perguntar a Mister King se estava tudo bem. Estava. O ex-pugilista
continuou a varrer as escadas do pronto-socorro, empurrando para a grama as
folhas secas que caíam de uma figueira próxima. Era muito dinheiro. Não tinha
como pagar tudo o que devia. Sabia que era complicado se meter em negócios com
o Jorge, mas não teve escolha. O neto tinha passado no vestibular, o primeiro
da família a conseguir um feito desses, e a matrícula era cara. Depois vieram
os livros, as roupas para frequentar ambiente de gente rica e as mensalidades.
Jorge, o Vampiro, sempre soube que o dinheiro era para ajudar o garoto, mesmo
assim não perdoou.
No fim do dia,
Mister King tomou o trem para casa. Do lado de fora do velho casebre de
madeira, os netos menores corriam e a mulher conversava com as vizinhas. Os
cachorros latiam até a rouquidão. Na sala, a tevê ligada em volume máximo
concorria com as vozes das noras, que faziam as unhas umas das outras.
Encontrou o neto na cozinha, tomando café antes de ir para a faculdade. Os
livros estavam em cima da mesa. Eram grossos, de letra miúda, cheios de
gráficos e tabelas. Dava gosto de ver. Mister King sentia que um novo ciclo se
iniciava naquela família. A maldição estava prestes a acabar. O neto se formaria
bacharel, teria carro, computador, secretária. Não terminaria a vida com uma
vassoura na mão, ouvindo desaforo de qualquer um. Que se danasse o Jorge. Tudo
vale a pena quando se trata de acabar com uma maldição. Principalmente com a
maldição da pobreza.
– Aposto que tu é
o melhor da classe, guri. Mister King falou enchendo a voz de orgulho, depois
de refletir um pouco sobre essas coisas.
– Tem muita gente
boa lá, vô. Eu sou só mais um.
Passava das sete
quando o garoto se despediu. Mister King tomou uma ducha e começou a se arrumar
para o encontro com Jorge. Não apareceria mal enjambrado na frente daquele
vagabundo. Escovou os cabelos para trás com brilhantina, passou um pouco de
colônia no pescoço e vestiu o paletó do único terno. Desceu as ruas que levavam
ao Bar das Camélias, da mesma forma que havia feito muitas vezes antes, quando
era moço. De longe, pôde ouvir o samba que embalava a casa. A cuíca miava um
lamento que não acabava nunca e a voz trêmula de um mulato de terno branco, que
parecia estar sentado naquele boteco desde o começo do mundo, conduzia o ritmo,
a cadência das morenas que aos poucos se deixavam conduzir pelos quadris. Os
copos de cerveja suavam e molhavam o tampo das mesas de metal já enferrujadas e
mancas. Ninguém olhou para Mister King, o homem dos punhos de aço, quando ele
passou perto da roda.
Não reconheceram
o sujeito que nocauteou o descomunal Gorila ainda no primeiro round, numa luta
clandestina que acontecera ali mesmo, no subsolo daquele bar. Colocar um
peso-médio para enfrentar um peso-pesado era a graça do espetáculo. As apostas
rodavam, davam lucro, graças ao fascínio humano pelas catástrofes. Porque às
vezes as lutas eram catastróficas. Carcará sofreu uma fratura exposta, Hércules
ficou cego de um olho, Geringonça entrou em coma e voltou falando enrolado. Mas
Mister King era imbatível. Era tão ágil que deixava os adversários desnorteados
e diziam que seu punho tinha o peso de uma bigorna. Antigamente, quando chegava
no Bar das Camélias, era recebido com honra: os sambistas tocavam o que ele
gostava, os valentões olhavam com respeito e as morenas se derretiam que nem
manteiga. Agora era tratado feito um cão que veio pedir osso.
O nanico fez
questão de conduzi-lo até o escritório, que era nada mais que uma salinha
imunda nos fundos do bar. Não tirava o riso irônico da cara. Jorge, o Vampiro,
parecia mais magro que uma semana antes e o estava aguardando de pé, com os
braços abertos. Cumprimentou-o com um entusiasmo exagerado, que não
correspondia às circunstâncias. Depois pediu que trouxessem para o visitante
uma dose de conhaque e ordenou que o velho se sentasse do outro lado da mesa.
Gastou algum tempo falando de futebol, até entrar no assunto que levara Mister
King ali.
– A gente tem um
negócio e, que eu saiba, tu ainda não cumpriu com a tua parte.
– Já expliquei
mil vezes pros teus capangas que…
– Pros meus
funcionários?
– É. Pros teus
funcionários. Que meu ordenado atrasou, mas assim que eu receber começo a
pagar.
Vampiro levou
uma das mãos ao queixo. Ficou em silêncio. Sabia que isso impressionava.
– Tudo bem. Não
tem problema que tu acerte daqui uns dias. Só não entendi uma coisa. Começa a
pagar? Tu não vai me pagar de uma vez?
– É muito
dinheiro. O ordenado não dá pra tudo.
Mister King se
sentiu pequenino. O jogo do Vampiro estava funcionando.
– Infelizmente,
meu amigo, tu tem que pagar tudo. No meu ramo, não dá pra trabalhar com carnê.
Sabe como é.
– Eu sei. Mas tu
quer que eu faça o quê? Não tenho de onde tirar. Pode ir na minha casa, se
quiser. Tu vai ver que não tem nada.
Os três capangas
que estavam na sala, entre os quais o nanico, começaram a ficar agitados.
Farejavam a tensão do velho. Vampiro se levantou e se pôs a caminhar pela sala.
Acendeu um cigarro. Parou atrás da cadeira ocupada por Mister King, colocou as
mãos sobre os ombros do pugilista.
– Acho que tem um
jeito da gente se acertar, Mister King.
Fazia muito
tempo que ninguém o chamava pelo nome de guerra.
– Faço o que for
preciso. Desde que seja honesto. Tu sabe.
– Ah, não te
preocupe. O que tenho a propor é muito honesto.
Saiu de trás da
cadeira e ficou cara a cara com o velho.
– Tu vai lutar
pra mim.
Mister King
achou que fosse piada e começou a rir. Mas logo percebeu, pela expressão dos
capangas, que Vampiro não estava de brincadeira.
– Olha, eu queria
muito ajudar, mas isso não tem cabimento.
– Por que não?
– Porque eu sou
um velho. Não tenho mais condições de entrar no ringue.
– Tu era o
melhor.
– Mas isso faz
mais de trinta anos e…
– Então tu
prefere me pagar?
Desgraçado.
Sabia que aquilo era um absurdo, que os maníacos só queriam ver um velho
estraçalhado por um garotão do jiu-jitsu. Mas, outra vez, Mister King não tinha
escolha. Aceitou a proposta. Vampiro abriu uma gaveta, tirou um par de luvas de
boxe e um calção vermelho. Jogou para o pugilista.
– Não precisa.
Ainda tenho as minhas luvas.
– Mas não dá
tempo de ir buscar.
– Como assim?
– Tua luta é
agora.
Desceram as
escadas para o subsolo. Fazia uma eternidade que não lutavam boxe por ali. O
ringue do Bar das Camélias fora desativado havia muitos anos. Mas, dos degraus,
Mister King ouviu as vozes embriagadas da plateia e seu nome era repetido entre
palpites, apostas e gritos das morenas. O nanico acompanhou o velho para que se
trocasse num banheiro sujo. Mister King enfiou as mãos nas luvas, uma névoa
branca de talco ficou em suspensão no ambiente. Sentiu os dedos chegarem ao
fundo. Pediu que o nanico o ajudasse com os cadarços, o que, para sua surpresa,
fez com boa vontade. Deu alguns soquinhos no ar, depois na parede, para sentir
melhor as luvas e resgatar a memória dos músculos. No espelho rachado do
banheiro, viu um ancião travestido de boxeador. Não gostou. Mas agora era
tarde.
Assim que entrou
no ringue, a plateia foi ao delírio. Isso o animou um pouco. No entanto, o
calor e o cheiro de mofo o estavam deixando tonto. Era preciso resistir. Não
queria cair com o primeiro golpe que levasse. Logo chegou seu oponente. Estava
encapuzado feito um galo. Pelo corpo, se via que era um homem jovem. Erguia as
mãos para cima provocando a histeria do público, mesmo sem ver nada. Mantiveram
o sujeito assim até que os lutadores tomassem posição no ringue e o juiz
apitasse o início da luta. Então o próprio Vampiro puxou o capuz da cabeça do
lutador. Mister King sentiu um soco no estômago. Mas seu adversário não havia
saído do lugar. Continuava parado, tão perplexo quanto ele. O golpe fora
desferido por uma imagem aterrorizante. Aquele que seria bacharel e acabaria
com a maldição da família. Aquele que ele tinha certeza que era o melhor da
classe agora estava ali, num buraco escuro, pronto para lutar com o avô. O galo
de briga era o seu neto.
A plateia não
parava de gritar. Um locutor anunciou a luta entre Mister King e Prince. O
garoto era o príncipe no ringue. Sua nobreza era exercida na hora da aula, que acontecia
em alguma faculdade que nunca frequentou. Mas ele estava abalado, não conseguia
sair do lugar. E Mister King sentiu o cheiro do medo. O neto estava apavorado.
Aquele moleque desgraçado estava apavorado. De repente, as pupilas do velho
dilataram, o peito abriu, os músculos ficaram tensos e ele se encheu de ódio.
Partiu para cima do neto e o acertou com um soco frontal, direto, seguido de um
cruzado no lado esquerdo da cabeça. O garoto já começava a cambalear, mas
Mister King deu outro golpe, um uppercut que o atingiu no queixo e fez com que
alguns dentes saíssem voando. Havia cheiro de sangue. Vampiro estava em
frenesi. E o pequeno príncipe amoleceu as pernas, caiu no chão inconsciente,
enquanto a plateia extasiada gritava em uníssono: Mister King! O velho estava
cego.
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