quarta-feira, 30 de setembro de 2015

SENTINELA - Conto de Gilka Coimbra (Uruguaiana, RS)

SENTINELA

Ao errar pelas lentas galerias do antigo prédio, um sopro de ar frio lambeu os dedos que guardavam a chave. Acelerou o passo e só o silêncio preenchia o intervalo seco do andar. Na outra mão, a filha menor com quem fizera o mesmo trajeto, toda a semana, no último ano. Naquele dia, por três vezes errou o caminho que pensava saber de cor e, por três vezes, determinada, reiniciava a busca até que avistou o que procurava. Segurou firme a mão da criança. Carregava-a consigo para garantir o retorno e a lucidez cada vez mais escassa.

Aproximara-se da porta, alisou a saia, e girando a chave preparou-se para entrar. Deixou a filha do lado de fora, no corredor, com um livrinho de história nas mãos, e recomendou que não se afastasse. Teve a impressão de que a menina ia chorar. De uns tempos para cá percebia sinais de entendimento no rosto da criança. Desviou daqueles olhos espichados em sua direção e fechou a porta antes que ela pudesse dizer qualquer coisa. A brisa gelada e o cheiro amadeirado, que escapulia pela estreita passagem, anteciparam a presença, acelerando o desejo. Trancando a porta, acendeu a luz.

– Pensei que você não viria. Hoje tenho pouco tempo – disse-lhe o homem recostado na cama.
Com os olhos envenenados de lágrimas, foi em sua direção, desabotoando a blusa.

Do outro lado, como sentinela em lenta espera, a menina transformava-se num grande olho mágico, espiando a vida pelo avesso.

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