MARIA PEGA 7
Esse era o seu
nome: Maria pega 7. As crianças a chamavam apenas de “pega 7”, mas nunca sabiam
ao certo porque tinha esse nome. Ela morava na Rua João Reis, numa casinha
branca simples, com dois cômodos, de chão batido, janelas azuis e telhado
enfumaçado pela fuligem do fogão à lenha. Na frente da casa tinha um terreno
elevado, que escorria para a rua sem calçamento. Ao lado da porta havia uma
roseira de rosas claras, um pé de arruda, uma moita de espada de São Jorge e
alecrim, que era para espantar o “maloiado”, como ela mesma dizia. A escada de
acesso à sala-dormitório, era cavada no chão duro, com alguns poucos degraus.
Um portão e uma cerca de taquaras separavam o misterioso mundo daquela
velhinha, com aparência de bruxa dos contos de fadas, das crianças que
brincavam e jogam bola na rua. O maior desafio para a garotada era ir buscar a
bola no quintal dela, caso o chute fosse mais forte, o que não era raro
acontecer.
Maria teria mais
de cem anos, nas suas contas, e apenas um dente grande do lado debaixo, com o
qual mascava fumo sem parar. Usava o mesmo vestido todos os dias. Um vestido
cumprido, que ia quase até a canela, feito de saco de linhagem branca, e já bem
encardido, com um bolso enorme na frente, onde ela colocava os pedaços de fumo,
uma caixa de fósforo, algumas chaves velhas e mais alguma coisa que precisasse,
no decorrer do dia. A casa era muito simples e na sala ficava uma cama improvisada com troncos e um
velho colchão de capim, encapado por tecido riscado de cores fortes, em tons
avermelhados e azulados, bastante gasto. O travesseiro estava amarelado e era
recheado de painas já bem esfareladas.
Logo acima da cama havia uma prateleira, um baú velho, uma lamparina, um
chapéu de palha, dois quadros de fotos antigas, um oval e outro quadrado, com
fotos de parentes que já não viviam mais e, curiosamente, uma bandeira do Divino, com as fitas de papel de seda bem
desbotadas. No colo ela sempre trazia um gato meio remelento, o seu maior
companheiro dos últimos tempos. Ela mesma cozinhava as suas refeições e vez ou
outra fazia uma espécie de bolo. As mães sempre advertiam seus filhos para não
comerem nada lá, pois que as suas vistas eram fracas e as vasilhas mal lavadas.
No fundo do
quintal havia uma cisterna, de onde ela tirava a água para os afazeres diários
e para regar os canteiros de couve e os remédios caseiros que se espalhavam por
ali, em montinhos espaçados. E era nessa cisterna que os garotos,
despistadamente, jogavam os pedaços de bolo que, por ventura ela os oferecia
quando iam visita-la, ou buscar a bola que por lá caia. Poderia não parecer,
mas ela era muito gentil com todos eles e, aqueles que tinham coragem e se
aventuravam a ir ver como era a vida da D. Maria Pega 7, voltavam falando bem
dela, contando os detalhes da casa e dizendo que, apesar da vassoura de bruxa
que ficava na cozinha, ela não metia medo neles e, pelo contrário, até lhes
contava algumas histórias antigas que eram bem engraçadas.
E assim vivia
Maria, com seus mistérios, seu gato e seu baú de lembranças, com olhos esverdeados a espiar o movimento da
rua por trás da velha cortina da janela de madeira. Até que um dia, por tanta
insistência do filho, Aranildes resolveu revelar o porquê do “pega 7” que
acompanhava o nome daquela velhinha desdentada, tal qual um sobrenome de
família. E, com ar de quem não tem malícia nas palavras, disse ao garoto que
ela havia se casado 7 vezes e enterrado os seus 7 maridos, e fora essa a razão
do apelido. O grande segredo que aguçava a criançada fora revelado. Como não haveria de aparecer mais nenhum
homem que se interessasse por esse destino, Maria seguiu em frente, com seus
passos miúdos a arrastar o chinelo de tiras de couro pelo chão batido da
cozinha, a respingar água para varrer o pó solto do seu piso e a afundar os
sulcos das rugas que lhe cobriam em dobras a face magra... e cada manhã era
dedicada a saudar a vida que se espichava pelos fios dos anos, nos seus cabelos
brancos, ralos e amarrados com um barbante de saco de açúcar cristal.
Maria não tinha documentos
e nem sobrenome certo, morreu aos supostos 107 anos, abraçada com seu gato
acinzentado e, com certeza, mascando um naco de fumo. Na sua lápide fora
gravado: “Aqui jaz Maria Pega 7 e seus 7 maridos”, e em cima do túmulo caiado
de azul, ainda se vê um vaso com flores
de plástico rosa claro, desbotadas pelo tempo.
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