DESCARTE
O quarto era
pequeno. Muito pequeno. A janela de venezianas azuis estava entreaberta, para
que o sol se deitasse sobre os lençóis gastos, porém limpos. O criado mudo, o
abajur de miçangas coloridas e a imagem da santa. Tudo era simples, mas
arrumado com cuidado. No tapete puído repousavam chinelos delicados de pés
pequenos. O armário de duas portas, em pinho, e a penteadeira. No espelho oval,
dependurados recortes com fotos de artistas; o terço de contas em madeira e
fitinhas do Senhor do Bonfim. Paredes todas nuas, manchadas de mofo junto ao
teto, e uma cadeira.
A porta se
abre e Dora aparece. Os cabelos ainda estão molhados e a pele, fresca e morena,
brilha no vestido leve de algodão estampado. Com passos decididos, entra e vai
direto à gaveta da mesinha de cabeceira. Como de costume, consulta a caderneta
detendo-se por segundos em busca da página dobrada. Encontra o que procura na
letra delicada que mostra o apontamento. Precisa se apressar.
Abre o armário
e escolhe o melhor vestido. No espelho da porta se enxerga inteira enquanto
gira levemente o corpo esguio conferindo as formas. Prende o cabelo na nuca em
coque despojado e gosta do que vê. Senta na penteadeira, abre o estojo de
maquiagem. Ela é linda por natureza, mas seu trabalho exige a máscara sexy, os
olhos escurecidos pelo kajal e o batom vermelho. Em instantes, Dora se
transforma em mulher. Um perfume mais adocicado substitui o frescor da lavanda;
as sandálias de tiras, pelos saltos agulha.
O último olhar
ao espelho confirma: uma mulher pronta para ser consumida; um belo produto de
prazer. Prazer de minutos, talvez horas, não importa. Dora não se ilude com
sentimentos profundos, nem mesmo verdadeiros. Naquele momento, aquela é a única
verdade que conhece. Amor, só através das novelas na tevê, que assiste nas
tardes de descanso.
Depois de
pronta, pega a pequena bolsa de crochê que fora de sua mãe. Alisa o vestido
passando a mão pelo corpo, sentindo as curvas e o volume das coxas e seios. Em
seguida, verifica cada detalhe do quarto. Tudo em ordem. Estica a colcha de
cetim barato, fecha as venezianas e sai.
Um pouco mais
tarde, Dora retorna. Não conhece nada da vida a não ser o que se passa naquele
quarto. Na verdade, é só o que vale. Não existem nomes, cargos, nem laços. Quando tudo termina,
descarta os amores como descarta a água em que lava suas intimidades.
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