quarta-feira, 30 de setembro de 2015

DESCARTE - Conto de Nara Accorsi ( Porto Alegre, RS)

DESCARTE

O quarto era pequeno. Muito pequeno. A janela de venezianas azuis estava entreaberta, para que o sol se deitasse sobre os lençóis gastos, porém limpos. O criado mudo, o abajur de miçangas coloridas e a imagem da santa. Tudo era simples, mas arrumado com cuidado. No tapete puído repousavam chinelos delicados de pés pequenos. O armário de duas portas, em pinho, e a penteadeira. No espelho oval, dependurados recortes com fotos de artistas; o terço de contas em madeira e fitinhas do Senhor do Bonfim. Paredes todas nuas, manchadas de mofo junto ao teto, e uma cadeira.

A porta se abre e Dora aparece. Os cabelos ainda estão molhados e a pele, fresca e morena, brilha no vestido leve de algodão estampado. Com passos decididos, entra e vai direto à gaveta da mesinha de cabeceira. Como de costume, consulta a caderneta detendo-se por segundos em busca da página dobrada. Encontra o que procura na letra delicada que mostra o apontamento. Precisa se apressar.
   

Abre o armário e escolhe o melhor vestido. No espelho da porta se enxerga inteira enquanto gira levemente o corpo esguio conferindo as formas. Prende o cabelo na nuca em coque despojado e gosta do que vê. Senta na penteadeira, abre o estojo de maquiagem. Ela é linda por natureza, mas seu trabalho exige a máscara sexy, os olhos escurecidos pelo kajal e o batom vermelho. Em instantes, Dora se transforma em mulher. Um perfume mais adocicado substitui o frescor da lavanda; as sandálias de tiras, pelos saltos agulha.

O último olhar ao espelho confirma: uma mulher pronta para ser consumida; um belo produto de prazer. Prazer de minutos, talvez horas, não importa. Dora não se ilude com sentimentos profundos, nem mesmo verdadeiros. Naquele momento, aquela é a única verdade que conhece. Amor, só através das novelas na tevê, que assiste nas tardes de descanso.

Depois de pronta, pega a pequena bolsa de crochê que fora de sua mãe. Alisa o vestido passando a mão pelo corpo, sentindo as curvas e o volume das coxas e seios. Em seguida, verifica cada detalhe do quarto. Tudo em ordem. Estica a colcha de cetim barato, fecha as venezianas e sai. 


Um pouco mais tarde, Dora retorna. Não conhece nada da vida a não ser o que se passa naquele quarto. Na verdade, é só o que vale. Não existem nomes, cargos, nem laços. Quando tudo termina, descarta os amores como descarta a água em que lava suas intimidades.

Nenhum comentário:

Postar um comentário