sexta-feira, 2 de outubro de 2015

FLORES TARDIAS - Conto de Valéria Surreaux (Uruguaiana, RS)

FLORES TARDIAS

Alice distribuía fotografias emolduradas pela parede da casa. Ela, menina na primeira comunhão; ela, casando bela, com o vestido feito em São Paulo pela estilista de sua mãe; também debutando no Clube Comercial, em bailes de carnaval com as amigas. Ela, em viagens tantas com os filhos nos braços. Alice e seus vestidos impecáveis, sua piteira e os leques vindos da Espanha. Alice, sentada no sofá, não cansava de olhar as fotografias, fumando seu cigarro, um grande cinzeiro inox na sua frente, bermuda vermelha, camiseta de propaganda das tintas Renner. As mãos despidas, os olhos rasos. Quando um dos filhos entrava, apontava para a parede e dizia rindo, "Para eu não esquecer de quem eu fui", como se justificando.

Alice, na sua solidão, às vezes perguntava aos filhos quem compareceria ao seu velório, porque, afinal, não tinha mais amigos. Desde que perdera dinheiro e prestígio, a campainha parou de tocar, o telefone emudeceu e quando tocava, ela dizia direto: "Fala meu filho amado".

Os filhos riam. Maria Isabel pegava na sua mão e dizia "Que preocupação mais sem fundamento, preocupação póstuma", ela ria junto. Joaquim Francisco entrava na brincadeira e dizia que o seu José da farmácia iria. Ela concordava meio reticente, e completava: "talvez o Airton do armazém da esquina também, e o seu Laurindo..." (Que sempre parava para conversar sobre o tempo enquanto ela varria a calçada). Depois dizia: "Com vocês, minha nora, e meu genro talvez mais algum parente vá, não é? E meus vizinhos. Acho que pode chegar a quase dez pessoas." Depois limpava com a barra da camiseta uma lágrima que a traíra.


Assim vivia os dias, consumida pela doença e pela solidão. Os filhos ouviam, sem reclamar, histórias repetidas, porque sabiam que ela precisava conversar, e deixavam os netos com ela para que eles a aborrecessem e revirassem a casa para que ela pudesse arrumar, e pedissem bala, para que ela tivesse que sair, desviando-a assim da triste contemplação da mulher que foi e que a espiava dos retratos.
Na manhã da sua morte, os corações aflitos dos filhos pulavam em seus peitos, e eles não sabiam direito como começar as providências com a dor que traziam.

Escolheram um caixão dentro de suas possibilidades financeiras. Maria Isabel lamentava, queria um caixão mais pomposo; Joaquim Francisco dizia, chorando, que isso não importava. Uma parente distante foi a primeira a chegar para oferecer-lhes um protocolar abraço e perguntar, com alguma maldade, por que a capela estava vazia. Logo alguém há de chegar, respondeu Maria Isabel, com os braços enlaçando o caixão da mãe.

Um homem entrou com uma coroa de rosas vermelhas, a coroa mais bonita que Isabel já vira na vida. Isabel disse que talvez fosse engano, mas não era, e ele desceu com mais duas, imensas. Logo, outro homem minguado desceu com mais e mais flores, e a capela, tão pequena, a menorzinha que os filhos escolheram, lotou tanto que as pessoas não caminhavam, os perfumes se confundiam, as roupas eram impecáveis, os cabelos e as unhas das senhoras, tudo bonito. Muitas pessoas chegavam abraçadas em ramalhetes de flores e o depositavam, lacrimejantes, em cima do caixão. Eles poderiam jurar que era um engano se não fossem pessoas conhecidas. A rua lotou, não havia mais lugar para estacionar carros. Maria Isabel não conseguiu ficar ao lado do caixão da mãe quando ele foi conduzido ao túmulo, tentava em vão atravessar a multidão. Quando enfim chegou perto de Joaquim, ela o abraçou chorando e cochichou ao seu ouvido: a cidade inteira está aqui, inteira!


À noite, Maria Isabel quis amortecer a dor com um calmante e, sozinha na cama, falou alto com os olhos encharcados: "Viste mãe? Pensaste que iriam menos de dez pessoas ao teu velório, e foi o velório mais bonito, bem frequentado e florido que vi na minha vida." Fechou os olhos para puxar a imagem da mãe sorrindo, mas só o que conseguiu enxergar foi a mãe, de bermuda, fumando um cigarro barato e contemplando o telefone mudo e os retratos.

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