sexta-feira, 22 de abril de 2016

A CURTA VIDA DE ESCRAVA DE LOURDES MARIA - Conto de André Bolivar (Porto Alegre, RS)


A CURTA VIDA DE ESCRAVA DE LOURDES MARIA
I

Era de manhã e o sol queimava o asfalto, o ar, os pneus do Mitsubishi, e as retinas de Lourdes Maria Coutinho de Campos.
Vinha pela estrada que a levaria de Laranjeiras ao sítio novo que comprara, próximo a Bangu.
Teria que se livrar dos porcos, havia três que o antigo dono deixara, mais os móveis.
Teria que se livrar dos móveis, também.
Pelo acordo firmado, era agora proprietária de um pequeno sítio; ali escaparia dos clientes, dos litígios, das reclamatórias, dos problemas diários da família, do fórum com suas escadas sujas, das dores e alívios que ali aconteciam como num grande palco de ganância.
E justiça, pensou.
Foi a última coisa na qual se lembra de ter pensado no ano de 2015, antes de ouvir o estouro do pneu e ver o asfalto se aproximar e recuar, várias vezes, o carro capotando, o matagal, o sol.

II
Quando voltou a si, estava caída de bruços, o maxilar machucado enterrado numa junção de terra e capim, o peito e a cabeça doendo.
Tentou não entrar em pânico, dizendo para si mesma: foi acidente, estou bem, estou bem, graças a Deus, estou consciente, cadê o carro?
Ao sentar, reparou que tinha perdido as roupas, os sapatos, o relógio. Estava nua, com os joelhos vermelhos, sangue brotando dos arranhões nos braços e pernas. Colocou a mão perto da testa, o sol flutuava tão alto que não conseguia reconhecer onde estava, apenas os morros pareciam os mesmos, mas não via seu carro, não via a estrada, nem sinal das suas roupas.
Tocou seu corpo, assustada, quanto tempo teria ficado desmaiada? Poderia ter sido furtada, até mesmo roubada, arrastada até ali, estuprada.
Sabia que estava tonta, sabia o motivo, não viu sinal de abuso sexual, procurou ficar em pé e começou a caminhar lentamente em direção ao local onde deveria estar a estrada,
tentando esconder o corpo nu por trás do mato alto.
- Te achei, negra fujona - gritou um homem nas costas de Lourdes.
Antes que se pudesse virar para ver quem havia gritado, sentiu a pele sendo arrancada ao mesmo tempo que ouvia um estalido, como se uma cobra lanhasse suas costas, acima dos quadris.
Depois nas nádegas, na nuca.
O homem a chicoteou seis vezes.

III
Estava em uma propriedade feita de madeira, o teto alto, seus pés acorrentados a um grosso tronco de árvore, que saía da terra de chão batido, bem no centro da casa.
Não estava só. Com ela havia mais de trinta mulheres, crianças e homens.
Reparou que ali, no mesmo cômodo - era como se estivesse em um galpão – havia camas, grandes panelas, roupas penduradas, buracos que, pelo cheiro, serviam para as necessidades fisiológicas; tudo isso misturado a um cheiro de suor insuportável.
- Cárcere privado, agressão, injúria, crime racial! Gritou Lourdes Maria, antes de ter a boca tapada pela mão de uma mulher.
- Quer apanhar mais? As chibatadas não bastaram? Quer que todo mundo aqui apanhe também? Disse-lhe ao ouvido, com a voz entrecortada, a negra magra usando um vestido verde claro que lembrava uma camisola rasgada.
Calou-se ao ver um negro alto e forte abrindo a porta.
Tinha uma cicatriz em forma de v no rosto e usava sapatos, ao contrário de todos ali que encontravam-se descalços. Parecia que tinha certo poder sobre os outros, pois ninguém falou durante os poucos minutos que ele ali esteve, deu algumas ordens e retirou-se, sem dar um único olhar para Lourdes.
- Abre teu olho com esse safado, é pau mandado do Coroné. É o capataz, fode a gente achando que um dia vai conseguir a alforria, negro idiota.
- Que Coronel?
- Que Coroné? Teu dono, sua besta. Dono de tudo isso aqui, moveu o queixo a negra magra. Até de Leocádia, que te fala.
- Contrabando de mulheres? Onde estamos?
- Contrabando? Que diabo é isso, tonta? Nós tamos no Rio de Janeiro, na fazenda do Coroné Antônio Albuquerque.
- E a polícia? Há quanto tempo vocês estão aqui? Perguntou incrédula Lourdes Maria, não acreditando no que estava acontecendo.
- Que tem a polícia? Tu tá bêbada, mulher? Eu tou aqui tem 22 anos, desde que nasci. E vosmecê, tava fugindo de onde, quando o Caolho te caçou?
- Fugindo. Bela metáfora. Eu estava vivendo a minha vida, apenas vivia, balbuciou Lourdes.
Pensava no absurdo da situação, no carro, no acidente, na pequena chácara, nas escadas sujas do Fórum, na sua irmã sempre cheia de problemas.
- E desde quando escravo vive?
- Desviver é ingerir, diariamente, cápsulas de suicídio, sussurrou Lourdes.

IV
Olhou ao redor e algo no seu cérebro começou a acontecer, como uma dormência acompanhada por mil perguntas sem ter quem as respondesse.
As roupas de todos, o aspecto da região totalmente diferente, a falta de estrada, o querosene, o chicote, o capataz, a linguagem.
Se deu conta de que todos dentro do galpão eram negros.
Alguns minutos depois chegou à doce conclusão de que estava sonhando, talvez em coma ou quem sabe ainda desmaiada dentro do carro.
Sonhava estar na época da escravidão, onde os negros eram tratados como se valessem menos que animais, eram como animais sujos que viviam enquanto tivessem força para arar, capinar, carregar, juntar, forjar, puxar, levantar.
Exatamente iguais aos cavalos.
Pendeu a cabeça, olhou nos olhos de Leocádia, quase sorrindo.
Quase chorando.
Capítulo Final
- Leocádia, os tempos mudaram. Eu sou uma advogada, os negros hoje em dia estão em posições que, se eu contasse, você não acreditaria. Aliás, estou falando com você sabendo que é apenas um pesadelo. Um maldito e demorado pesadelo. Interessante isso. Quando criança eu costumava saber que estava sonhando, acontecia várias vezes.
- Escuta, vosmecê pode ser doida varrida o quanto quiser. Mas isso não é um pesadelo, senão eu tava vivendo um há 22 anos. Toma tento, daqui a pouco vão te levar pra servir de exemplo aos que tavam pensando em fugir. Aguenta firme, tu é bonita e nova, o Coroné vai querer deitar contigo, tu aguenta firme que talvez batam pouco. Melhor tu fechar o bico, apanha quieta como todo mundo aqui.
- Quem sabe apanhando muito eu acordo, não? Riu Lourdes, já despreocupada com sua situação.
Era um sonho, então ia urinar sentada, ia morder a mão do capataz, ia saltar e flutuar para que não a pegassem, quando a porta se abriu, e sem dizer uma palavra, Caolho foi em direção a ela, agachou-se e retirou as algemas dos seus calcanhares.
- Agora vai te arrepender, cadela, disse o capataz enquanto a levantava.
- Vai à merda, babaca.
Imobilizou seus braços com violência e a arrastava com facilidade, como se ela fosse um retalho de pano.
Foi arrastada e presa a um poste de madeira, amarrada pelas mãos de modo que ficasse como abraçada ao poste e suas pernas foram presas, cada uma em um toco separado, fazendo com que ficasse com as pernas abertas, suas nádegas e suas costas a mercê da chibata que estalava, por enquanto apenas medindo a distância.
Centenas de negros estavam lado a lado, uns olhavam para baixo, outros choravam encarando a cena. Vários brancos estavam sentados, dentre eles um velho de bigode amarelado, baforando calmamente um charuto.
Olhou-a da cabeça aos pés, prolongando seu olhar nas nádegas negras e duras de Lourdes, depois fez um sinal movendo a cabeça e indicando o número cinco, com as mãos.
-Vão me tratar como um pedaço de carne, eu sou escrava por ser negra, é isso?
Ora, cambada de brancos analfabetos, acham que estão falando com quem, ignorantes?
Seu velho fedido, vai tomar no seu cu, racista filho da puta!
Deus, quero acordar logo!
Viu o velho enrubescer, avermelhar, entrar em chamas e gritar:
- Cinquenta chibatadas nessa negra desbocada, filha do demônio!
As cinco primeiras chicotadas ela aguentou, esperando despertar logo; quando contou vinte sentia sua carne desgrudar do corpo, seu corpo desgrudar do espírito, suas costas e pernas e nuca e suas nádegas deviam já estar espalhadas pelo chão, que dor, pensou antes de morrer.
Não conseguiu morder o Caolho e muito menos teve força para saltar e flutuar.

Apenas urinou-se.

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