sexta-feira, 22 de abril de 2016

O MAR E O VENTO - Conto de Athos Ronaldo Miralha da Cunha (Santa Maria, RS)

O MAR E O VENTO

Gostaria de me apresentar.
Meu nome é Carlos. Na verdade, meu nome não é Carlos. Para narrar essa história, imaginei que ficaria mais fácil transformar-me em um personagem de conto. A história que eu vou contar é verídica, mas o personagem é fictício. Uma maneira de registrar esse pequeno drama que, para mim, é importante, mas para outros pode ser, apenas, mais uma história de maluco. Mas, convenhamos, isso é um problema meu e de quem vai ler. Então, a partir desse momento o meu nome é Carlos. Simplesmente Carlos, sem sobrenome.

Hoje, sou um pacato cidadão, um ancião com uma extensa jornada por esse mundo de Deus. Estou aposentado do serviço público e já faz um bom tempo. Cumpria meus compromissos com dedicação e denodo. Trabalhei com afinco e nos finais de semana também me diverti com afinco. Logo nos primeiros meses como trabalhador orgulhoso de carteira assinada, tomei uma decisão que hoje referencio como fundamental na minha vida. Um grande amigo me influenciou dizendo que deveríamos planejar nossa vida no futuro. Para quando estivéssemos aposentados. Chamava-se Alfredo e esse é o nome verdadeiro dele. Alfredo foi um parceiro das muitas estripulias, aventuras e um amontoado de desventuras.

Passei por momentos tristes quando sofri uma perda, mas também por momentos inesquecíveis de alegria e satisfação. Também devo dizer que fui acometido por uma doença. Não era uma doença grave, mas que me obrigou a repensar a vida e refazer alguns projetos. Nesses tempos de incertezas não é fácil fazer previsões. Confesso, eu tive mais sorte que juízo. O autocompromisso que fiz no início de minha carreira me deu estabilidade para ter uma vida sem atropelos. Possibilitou para que eu tenha segurança e encerre minha jornada nesse mundo com dignidade. Eu não sei por onde anda o amigo Alfredo. Faz um tempão que não o vejo, mas todas as noites eu rezo pela sua saúde. Aqui, diante do mar e do vento, não tem um dia que eu não agradeça as suas orientações acerca desse planejamento. Quando se é jovem, tudo é mais fácil e poucos têm um pensamento racional e uma educação financeira. Nesse sentido Alfredo foi meu mestre.

Já faz algum tempo que fico aqui nessa janela diante do mar. Esse foi o meu sonho de rapazote. Sempre acalentei o desejo de em algum dia morar em frente ao mar. E eu consegui realizar esse sonho. É o meu passatempo predileto. Olhar o eterno vaivém das águas desse imenso lago azul. As
ondas são uma terapia que me acalma, que regula meus batimentos cardíacos e me traz sossego. O mar me conta as minhas próprias histórias. Vez por outra me devolve o passado em reminiscências. Motivado pela saudade, considero-me um guardião dessas águas. Sou um observador atento de qualquer mudança desse ritmo marinho. Qualquer detalhe diferente nas águas ou no céu eu sei se choverá, fará sol ou uma tempestade que se aproxima. Adquiri esse dom, talvez pelo meu sonho de juventude de morar no litoral quando me aposentasse. Então, sou um atento observador do clima. Algumas poucas vezes o vento trouxe o cheiro de Carla. E nesse dia eu fico recluso, pois é o vento que me transporta no tempo para os braços de Carla, a única mulher que amei em toda a minha existência. Nesses dias me encerro em casa até que o vento passe. Eu quero o cheiro de Carla como uma singela e doce lembrança e não como uma leve brisa que não me compreende e me atormenta.
Também gosto de ler, leio muito e caminho todas as manhãs e todas as tardes pela orla da praia, logicamente, nos dias em que o vento não me traz a presença da Carla. Saboreio diariamente a minha cota de um vinho tinto maduro. Tomo muita água e sou um apreciador dos frutos do mar. Portanto, levo uma vida regrada e sem excessos.

Tenho poucos amigos. Nas minhas caminhadas matutinas e vespertinas, conheci algumas pessoas. Alguns vizinhos que tinham esse mesmo hábito. Fiquei amigo do funcionário da banca de revistas e conhecido de um mendigo que sempre estava pelas redondezas, embaixo da marquise, dormindo no banco da praça ou ao lado do quiosque surrupiando algumas frases dos vários jornais e revistas pendurados. Era uma pessoa introspectiva e arredia, falava pouco e percebia-se que também era um longevo amigo do tempo. Possuía uma longa barba branca e sempre estava de boné. Tinha um andar incerto, mãos trêmulas e olhos de súplica. A partir de um certo dia, que não lembro qual foi, comecei a levar um café da manhã para esse senhor. Um pedaço de pão com queijo e presunto e uma caneca de leite quente. Ele agradecia, mas nunca me olhou nos olhos. Era uma pessoa muito humilde.
Nessa vida a gente comete alguns erros, e só depois de passado algum tempo, às vezes anos, percebemos a gravidade e o tamanho. Quando constatamos esse erro, nos resta apenas lamentar... lamentar profundamente. E poderíamos ter evitado esse desconforto com um simples cumprimento, um bom-dia despretensioso chamando o amigo pelo nome. O que me conforta é que eu não sabia que estava cometendo uma injustiça, por uma falha na memória, por um descuido na educação e boas maneiras. Aliás, boas maneiras nunca foi o meu forte. A vida é assim mesmo, cheia de desafios, erros e acertos. Mas agora eu preciso contar sobre a Carla.

A Carla entrou em minha vida quando assumi minhas funções como funcionário público, e viria ser minha amada por muitos anos. Algumas coincidências também se fazem presentes nessa trajetória. Ela tinha o mesmo nome que eu. A linda Carla foi minha paixão, aliás, ainda hoje sou apaixonado por ela. Éramos o casal “Carlos” da repartição. Fomos felizes, mas nunca tivemos filhos. Tínhamos uma vida modesta e agitada, vivíamos em restaurantes, teatro e cinema, nas férias fazíamos uma longa viagem. Uma vez em Porto Seguro caminhamos de mãos dadas pela praia por várias horas. E foi naquele dia que percebi que Carla seria minha eterna paixão. Nossa vida era uma eterna lua de mel. Mas nove anos e quatro dias após nosso primeiro encontro – era a partir do nosso primeiro encontro que contávamos o tempo de nossas vidas – Carla sofreu um grave acidente. Foi um terrível acidente em uma estrada vicinal. O carro que Carla dirigia capotou inúmeras vezes em uma curva num dia de chuva. Foram trinta e quatro dias de sofrimento e Carla não resistiu. No dia em que Carla me deixou, o mundo acabou para mim. Eu jamais imaginei que iria resistir a sua ausência, mas eu sobrevivo nos meus sonhos e nos sonhos de Carla.

Eu pensei narrar esses dias de sofrimento e apreensão. Foram trinta e quatro dias de desespero e incertezas. Mas foi um dos períodos mais tristes de minha vida e não gostaria de transmitir essa melancolia que, ainda hoje, me faz chorar. Eu gostaria nesse meu breve relato confessar meus momentos diante do mar e do vento, eu gostaria de ser um otimista com o mundo embora as notícias que lemos nos jornais nos impelem para o pessimismo. Mas o fato é que após a morte de Carla eu virei um solitário. Nos primeiros meses, eu era um eremita na cidade grande. Um antissocial. Nada me causava prazer. Poucos assuntos me interessavam. Tornei-me um morto-vivo vagando por ruelas sem destino e esperança.

Após a morte de Carla eu entrei em depressão e comecei a beber. Tornei-me um alcoolista. Meus finais de semana eram diante de uma garrafa de uísque. Uma vez fui internado em coma alcoólico. Passei vários dias no hospital. Deprimido e doente e sem familiares, Alfredo foi mais prestativo que um irmão. Numa manhã de primavera, acordei e dei de cara com a janela aberta do quarto e vi como a vida lá fora era bela. Da janela do meu quarto de hospital eu vi um bem-te-vi cantando em cima de um moirão. E aquela cena bucólica me trouxe o desejo de viver, um renovado desejo de retornar à vida. Naquele momento percebi que eu estava de volta ao mundo dos humanos e pressentia que tudo poderia ser diferente. A saudade de Carla me machucava, mas decidi que, em homenagem a própria Carla, eu deveria pelo menos tentar ser feliz. E penso que sim. Fui feliz. Sou feliz, ao meu modo, do jeito que Carla me ensinou o que era felicidade. Por vezes em minhas caminhadas eu imaginava Carla caminhando ao meu lado e era tomado por um enorme bem-estar. Se alguém me visse sorrindo em meus momentos de introspecção, poderia saber que Carla estava em meus pensamentos.

Naqueles tempos em que renasci mudei algumas atitudes. Revi algumas práticas. E buscando novos caminhos e amizades, adquiri dois hábitos que mantenho até hoje. Leio, leio muito e tomo todos os dias um cálice de vinho. Li certa vez que um cálice de vinho por dia é um investimento em saúde, assim, comecei a formar uma pequena biblioteca e uma enorme adega. É claro, Alfredo, que ajudou a projetar o meu futuro, foi um amigo presente nas minhas horas tristes, dividia com ele meus vinhos e minha biblioteca.

Bem, como falei no começo dessa história que eu tive mais sorte que juízo e confirmo agora, pois foi lá no inicio de minha carreira que eu fiz um projeto de vida. Meio a contragosto, mas seguindo orientações de Alfredo, um grande amigo que há tempos não vejo. Depois que me aposentei resolvi morar no litoral – um sonho de infância – e nunca mais vi esse amigo. Muito tempo depois um conhecido comum disse que Alfredo também se aposentou e estava morando no interior. Comprou um sítio na fronteira e dedicava seus dias em revirar a terra. Nesse sentido eu e Alfredo éramos totalmente diferentes. Ele gostava do campo e eu gostava do mar. Mas sou eternamente grato a esse amigo, pois hoje eu vivo tranquilo contemplando o infindável vaivém das ondas dessa praia.
Estou encerrando meu relato e aqui começa uma das partes mais melancólicas. Certo dia de um inverno não muito distante eu desci para minha caminhada matinal, pegar o jornal na banca de revistas e levar o leite para o meu amigo mendigo. Perguntei para o garoto atendente sobre o amigo comum das nossas manhãs e percebi que, por detrás de um monte de revistas e jornais, o jornaleiro titubeou e me respondeu com a voz meio embargada.

– O seu Alfredo?

– É – respondi, pois eu sequer sabia o nome do amigo mendigo.

– O seu Alfredo faleceu ontem por volta das oito horas da noite. Enquanto agonizava, pediu que eu transmitisse um abraço para o amigo Carlos. Pois é seu Carlos, nosso amigo se foi...


Nesse momento revelo o meu grande erro nessa história: eu não reconheci Alfredo e por vários anos levei seu café da manhã. Naquele dia não caminhei e deixei todos os meus modestos afazeres de lado. Passei boa parte do dia na sacada de meu prédio numa velha cadeira de balanço. Era eu e o mar num vaivém sem sentido. Um bem-te-vi cantou em minha janela e o vento que soprou do mar me trouxe vívido o perfume de Carla.

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