POEIRA
Não
sei se falo ou não, mas eu ando perturbada, e se te conto é para endireitar os
fatos, apesar de desconfiar que esteja condenada a um longo e lento martírio.
Não
sei bem em que dia, o relógio despertou-nos no horário e, depois que servi o
café, todos se encaminharam ao trabalho. Fiquei só. Como sempre, iniciei pelos
quartos no andar de cima da casa. Abri as janelas, sacudi bem as cobertas,
alisei os lençóis das camas, juntei a roupa para a lavanderia e desci as
escadas em direção à cozinha. Foi com um duro golpe na cabeça, que percebi que
havia caído e rolado escada abaixo. De um barulho infernal sobreveio um
silêncio ensurdecedor e, sem saber bem o porquê, adormeci.
Acordei
assustada, demorei alguns minutos para entender que já era quase noite e que o
lusco-fusco invadia casa adentro pela janela da frente.
Quis
apressar-me, precisava retirar o pó dos móveis. Todo o santo dia reviro os
armários para passar um paninho. De tanto limpar aprendi a identificar a poeira
em suas diferentes tonalidades – do branco gesso ao âmbar claro, dos tons do
ocre ao verde musgo até o cinza escuro – e dependendo da cor, sei bem de onde
vem aquele pozinho nojento que limpo, limpo e retorna todo o santo dia. Com
habilidade, sempre fiz chegar o paninho às prateleiras onde guardo os brancos
lençóis de linho bordados à mão; ao rodapé da escrivaninha de cedro; à lombada
dos livros na sala de estar; por entre os desenhos externos da cristaleira e às
caixas guardadas na parte de cima dos guarda-roupas – reduto preferido da
poeira.
Refeita
da queda, resolvi iniciar meu trabalho doméstico. Foi quando notei que não
estava sozinha. Havia uma mulher de bruços no meu sofá. Cheguei mais perto. O
rosto enterrado no assento, meio de lado, estava completamente desfigurado. Uma
das pernas pendia em direção ao chão como prova de um último esforço. Senti
náuseas e fiquei estonteada, virei de costas, pois aquela imagem me era
insuportável. Respirei fundo e fiquei mais tonta ainda.
Como
entrou, se a porta estava fechada? Se te conto é para achar uma lógica que me
explique tudo pelo que venho passando.
Permaneci
de costas para ela, por um bom tempo, mas precisava tomar coragem e ter
certeza. Segurei o pulso sem olhar direito. Estava morta. Como explicar isso à
minha família, todos trabalham tanto, mal param em casa. Não, não iria
incomodá-los com aquela mulher deitada no meu sofá da sala e a casa por limpar.
Não
sei bem quanto perdi ali, pois perdi também a noção do tempo, e o ar estava
cada vez mais irrespirável. Uma exalação fétida começava a emanar do corpo
inerte. Não suporto mais esse cheiro, essa sujeira toda na minha sala, com que
tenho convivido e que me leva quase que à beira da loucura.
Há
dias não tiro o pó, ninguém tira. A noite já desceu várias vezes e nenhum dos
meus chega do trabalho, o que me deixa extremamente aflita. Numa massacrante
rotina de espera não como, nem bebo, mas não me faz falta, só me incomoda mesmo
essa poeira cinza, tomando conta do meu corpo. Invadindo tudo, esfarelando-se
em mim.
Prisioneira
nesta sala de luz bruxuleante, eu ando perturbada, e se te conto é porque
preciso de resposta.
–
Estarei morta, sem conseguir morrer?
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