sexta-feira, 22 de abril de 2016

POEIRA - Conto de Gilka Coimbra (Uruguaiana, RS)

POEIRA

Não sei se falo ou não, mas eu ando perturbada, e se te conto é para endireitar os fatos, apesar de desconfiar que esteja condenada a um longo e lento martírio.

Não sei bem em que dia, o relógio despertou-nos no horário e, depois que servi o café, todos se encaminharam ao trabalho. Fiquei só. Como sempre, iniciei pelos quartos no andar de cima da casa. Abri as janelas, sacudi bem as cobertas, alisei os lençóis das camas, juntei a roupa para a lavanderia e desci as escadas em direção à cozinha. Foi com um duro golpe na cabeça, que percebi que havia caído e rolado escada abaixo. De um barulho infernal sobreveio um silêncio ensurdecedor e, sem saber bem o porquê, adormeci.

Acordei assustada, demorei alguns minutos para entender que já era quase noite e que o lusco-fusco invadia casa adentro pela janela da frente.

Quis apressar-me, precisava retirar o pó dos móveis. Todo o santo dia reviro os armários para passar um paninho. De tanto limpar aprendi a identificar a poeira em suas diferentes tonalidades – do branco gesso ao âmbar claro, dos tons do ocre ao verde musgo até o cinza escuro – e dependendo da cor, sei bem de onde vem aquele pozinho nojento que limpo, limpo e retorna todo o santo dia. Com habilidade, sempre fiz chegar o paninho às prateleiras onde guardo os brancos lençóis de linho bordados à mão; ao rodapé da escrivaninha de cedro; à lombada dos livros na sala de estar; por entre os desenhos externos da cristaleira e às caixas guardadas na parte de cima dos guarda-roupas – reduto preferido da poeira.

Refeita da queda, resolvi iniciar meu trabalho doméstico. Foi quando notei que não estava sozinha. Havia uma mulher de bruços no meu sofá. Cheguei mais perto. O rosto enterrado no assento, meio de lado, estava completamente desfigurado. Uma das pernas pendia em direção ao chão como prova de um último esforço. Senti náuseas e fiquei estonteada, virei de costas, pois aquela imagem me era insuportável. Respirei fundo e fiquei mais tonta ainda.

Como entrou, se a porta estava fechada? Se te conto é para achar uma lógica que me explique tudo pelo que venho passando.

Permaneci de costas para ela, por um bom tempo, mas precisava tomar coragem e ter certeza. Segurei o pulso sem olhar direito. Estava morta. Como explicar isso à minha família, todos trabalham tanto, mal param em casa. Não, não iria incomodá-los com aquela mulher deitada no meu sofá da sala e a casa por limpar.

Não sei bem quanto perdi ali, pois perdi também a noção do tempo, e o ar estava cada vez mais irrespirável. Uma exalação fétida começava a emanar do corpo inerte. Não suporto mais esse cheiro, essa sujeira toda na minha sala, com que tenho convivido e que me leva quase que à beira da loucura.
Há dias não tiro o pó, ninguém tira. A noite já desceu várias vezes e nenhum dos meus chega do trabalho, o que me deixa extremamente aflita. Numa massacrante rotina de espera não como, nem bebo, mas não me faz falta, só me incomoda mesmo essa poeira cinza, tomando conta do meu corpo. Invadindo tudo, esfarelando-se em mim.

Prisioneira nesta sala de luz bruxuleante, eu ando perturbada, e se te conto é porque preciso de resposta.

– Estarei morta, sem conseguir morrer?

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