sexta-feira, 22 de abril de 2016

O DUELO - Conto de Márcio Estamado (Álvares Machado, SP)

O DUELO

É um contra o outro, frente a frente, sem cagaços e sem arrego. Assim é um duelo. E eu fui forçado a duelar pela primeira vez do jeito mais tradicional possível.
Eu estava com um pessoal do meu grupo, eles sempre andam comigo. Não sou daqueles donos de boca que andam escondidos, gosto de circular e isso dá trabalho pra eles, mas é pra isso que são pagos, muito bem pagos, aliás.
Enfim, eu estava com eles em um bar quando um sujeito de cabelos pelos ombros, grisalhos, de barba bem desenhada e grisalha também, começou a me encarar. Vestia terno bem cortado e estava acompanhado de uma loira que não devia ter mais do que vinte anos. Reparei que estava de minissaia, apesar da temperatura baixa. Eu boto o olho em quem eu quiser e ninguém pode me impedir. Mas o sujeito deve ter achado que podia, pois o olhar dele foi se tornando mais cheio de ódio a cada minuto. Nem os beijos da moça e a cerveja gelada distraíam o cara.
Quando eu tentava ver por entre as pernas da mulher, o grisalho não se aguentou. Levantou-se da mesa, derrubando a cadeira de bar, que ao cair fez um barulho irritante. Ao vir em minha direção, já o Pedrão e o Joca iam levando as mãos nos coldres, mas eu os impedi com um gesto, sem falar, bem como os caras fazem nos filmes. Eu esqueci de dizer que sou magro, quase tísico mesmo e acho que isso encoraja qualquer vagabundo.
O cara foi se aproximando. Estava de luvas, umas luvas pretas, bonitas, deviam ter custado uma nota. Tirou uma delas, a direita, e me bateu no rosto, com força. Fiquei olhando para ele, que nem um idiota. Até o Pedrão e o Joca, sempre ligados, demoraram pra reagir. Quando foram pra cima dele, eu me levantei.
-Deixa, Joca. Sai, Pedrão, fica na tua também. Vamos deixar o bacana aqui se explicar.
E eu já ia levando a mão na ponto quarenta e cinco quando ele começou a falar.
-Vejo que o senhor não tirava os olhos da minha acompanhante. Isso provocou minha ira, o senhor há de compreender. Mas compreende também o que acabei de fazer, meu senhor?
Ele tinha uma fala mansa, suave, que prendia a atenção. Encostei o cano da arma na cabeça dele e gritei que não, que ele explicasse logo se não quisesse ser queimado ali mesmo.
-Eu o desafiei para um duelo.
Olhei pro Joca e pro Pedrão, que não entendiam nada.
-Que porra é essa?
-Um duelo, meu senhor. O senhor olhava descaradamente para minha mulher. Eu me senti ofendido. E não há nada melhor para resolver a questão do que um duelo. Pistolas? Arma branca? Creio ser a primeira opção a melhor, já que é uma delas que o senhor tem na mão.
Tem muito babaca nesse mundo que fala bonito só pra confundir a gente. Isso é até coisa do demo, uma vez o pastor falou. O Joca e o Pedrão, que são dois armários, chegaram junto e imploraram pra que eu deixasse que eles transformassem o velhinho em peneira.
-Não. Agora a gente vai até o fim. Fala mais, velho.
-Sexta-feira. Na rua de cima, essa que fica atrás do bar. Se o senhor for um homem honrado, vai estar acompanhado de seus homens apenas como testemunhas. Somente eu e o senhor poderemos portar armas, que serão escolhidas no momento do duelo. Sim, ia me esquecendo. Às dezoito horas em ponto.
Ele deu as costas e eu fiz de novo o gesto pra que meus homens o deixassem em paz. Quando fui embora, passei por ele com os dentes rilhando e disse:
-Até sexta.
-Será um prazer, senhor.
Um chefe de boca de fumo tem lá suas vaidades. O golpe de luva nem foi o que mais me ofendeu. Fiquei puto mesmo com o jeito daquele velho, um
jeito de olhar e de falar de quem sabe tudo, como se todo o mundo ao redor fosse um bando de tapados. Ele tinha me tirado pra otário e eu ia provar que não era cagão. Nem ignorante. Naquela tarde eu dei ordem pro Joca e pro Pedrão irem até uma livraria no shopping para comprar tudo o que encontrassem sobre duelos. Voltaram com mais de mil reais em livros.
Foi assim que eu aprendi sobre uma tradição que remete aos tempos bíblicos: um exemplo clássico de duelo é o que ocorreu entre Davi e Golias. Em 1526, quando um tratado entre França e Espanha fez água, os monarcas daqueles dois países propuseram um desafio nesse estilo. O confronto não aconteceu, mas aí já era tarde: o duelo era uma instituição. Somente durante dez anos do reinado de Henrique IV, dez mil franceses morreram neste tipo de enfrentamento. A tradição dos duelos atravessou os séculos como símbolo de honradez, uma briga reservada às classes mais elevadas.
Duelos foram travados com vários tipos de armas, desde sabres até bolas de bilhar. O modo mais conhecido é aquele em que os participantes usam pistolas e, de costas um para o outro, contam os passos até virar-se e abrir fogo. Como eu disse, honra é tudo: os confrontos eram sempre acompanhados por segundos cavalheiros, cuja função era assegurar-se que as regras estavam sendo estritamente obedecidas. O fim de uma contenda (estranha essa palavra, “contenda”) se dava por diferentes motivos: podia ser por causa de uma gota de sangue, um ferimento mais grave ou até a morte, dependendo de quais tivessem sido as regras estabelecidas.
Com as guerras em grande escala, os duelos foram perdendo força. Isso não impediu que ele chegasse até nós. Em 1889, os escritores brasileiros Raul Pompéia e Olavo Bilac decidiram duelar acerca de discussões sobre a República recém-proclamada e outros barracos, principalmente através dos jornais. Armados de floretes, decidiram selar a paz, na última hora, com um aperto de mãos.
Durante o restante da semana, treinei a pontaria. Minhas televisões de plasma ficaram cheias dos buracos das balas. Era chegar uma da loja e já tinha que comprar outra.
A sexta-feira chegou, finalmente. Na hora combinada, fui para o local. O homem me esperava, com um terno melhor do que o primeiro. A única testemunha era o dono do bar, que abriu um estojo todo aveludado. Dentro, duas pistolas que se pareciam com garruchas, daquelas que a gente vê em filmes de piratas. Devo ter olhado com desconfiança, pois meu desafiante perguntou:
-Quer testar?
Eu disse que sim. O troço funcionava mesmo, apesar do aspecto antigo. Deixou um buraco na parede do bar. Fomos para a rua de cima.
Caía a tarde. O homem contou os passos. Dez ao todo. Quando o último número foi dito, nos viramos. O velho me acertou no ombro, eu errei. Tínhamos combinado que o duelo somente iria acabar em morte. Foi dada a ordem para que ficássemos de costas um para o outro, novamente. Cinco passos desta vez. Fui atingido no braço esquerdo. Era meu fim. Aí lembrei do assovio, que imediatamente chamou Joca, Pedrão e uns primos deles, todos armados de fuzis e escopetas. A artilharia foi pesada.
No chão, o cara ainda respirava. Peguei da pistola com a mão direita, cheio de confiança, porque era a mão boa. Mirei bem na cabeça dele e errei. Vi que ele sangrava pela boca, tossia.
-Chefe, acho que ele tá dizendo alguma coisa.
Me abaixei pra aproximar o ouvido daquele desgraçado.
-Ê-on-rado.
Não entendi porra nenhuma
-Desonrado!
E tossiu sangue.
-Joca, Pedrão, façam ele de uma vez.

Honra o cacete. Foi bom ver o corpo dele tremer de tanta bala que levou.

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